domingo, 31 de dezembro de 2023

"Natureza-Morte"

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

SONETO DAS PEQUENAS COISAS


De braços ao alto e mui erecto pau,
Em sua concha Neptuno se rende,
Mas sem marinhos cavalos nem tridente
De que nos serve esse deus dos mares?


Ora, trouxe esse suave e liso calhau
Que vais rolando por entre os dedos,
E sonhos e visões e fúrias e medos
De noites frias e sofridos despertares...

E a maré traz ainda coisas pequenas,
Como essas azeitonas ressequidas
Na noite da amora festiva caídas...


E com isso tudo as memórias plenas
Das pequenas coisas que te prestam
Salvam os tristes dias que te restam...
 



J.C.
(Poeta de Valmedo)

sábado, 30 de dezembro de 2023

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXX 


UM POTE CHEIO DE BOA COMIDA

Ali está ele, o pote, ao lado da porta de entrada e quem o vê do outro lado da estrada que corta os Campelos a meio não imagina o reduzido espaço do interior, pequeno mas acolhedor e sempre cheio, e se mais lugares houvesse... Convém pois reservar porque quem ali abanca gosta de comer, de usufruir com tempo os prazeres da boa comida e de conviver ou não fosse um sítio ideal para jantares de grupo e reuniões familiares, desta vez ali pousaram os Snookerentos que já há alguns anos, em épicas disputas, abrilhantam com tacadas de génio e outras avarias as cálidas noites passadas na Associação do Nadrupe...



E por entre acesos debates e partilha de vivas memórias de aventuras passadas (eles foram os extintos Tálentos que já não correm, ainda são Pedálentos mas têm a bicicleta pendurada na garagem e agora combinam-se projectos de futuro enquanto Radicálentos) lá foram chegando em doses generosas as iguarias para a mesa... No POTE tudo merece ser provado e se o bacalhau à casa me encheu as medidas não pude evitar uns olhares de inveja para as costeletas de bovino com que outros se deliciavam ou para o bacalhau com broa mesmo à minha frente... E claro, várias outras opções ficaram prometidas para futuras visitas...




No final, e depois de um banho de simpatia por parte do António Fortunato, o proprietário e chefe de sala, ainda enderecei os parabéns à sua esposa, Dina, cozinheira e doceira, à conta de um dos melhores pudins que já comi, um fantástico pudim de café! E claro, outras doces opções ficaram por lá à minha espera...



João Ratão

(Chef de Valmedo)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

domingo, 24 de dezembro de 2023

 

"Beco do Félix" - Lisboa

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

ESCRITO NA PAREDE - XXX


Paço da Rainha, Lisboa

"Vénus com a murta e Febo com o loureiro,
A ambos suplanta o chá, que ela se digna louvar.
A melhor Rainha, a melhor planta, devemo-las
À intrépida nação que abriu caminho
Até à bela região onde o sol nasce
E cujas ricas produções tão justamente apreciamos.
Amigo das musas, o chá anima a nossa fantasia,
Desfaz as névoas que a cabeça invadem
E mantém sereno o palácio da alma
Pronto a saudar a Rainha no seu dia de anos."

Edmund Waller, 1663 (no 25º aniversário de Catarina de Bragança)



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

O PAÇO DA RAINHA DO CHÁ


Depois de nos termos admirado com o Beco do Petinguim e com o Beco do Félix subimos a Rua de Santa Bárbara e chegamos ao Largo do Conde Pombeiro onde impera o belo edifício da Embaixada da Itália e aproveitamos para recuperar um pouco de fôlego enquanto dizemos no melhor italiano que arranjámos e em voz alta que ninguém ouve "questa città è belissima!"...
Do outro lado da Calçada do Conde Pombeiro e a separar-nos do Campo Mártires da Pátria espera-nos o Paço da Rainha, uma rua larga, quase uma praceta assim chamada porque ali está instalado o Palácio da Bemposta, mandado construir por D. Catarina de Bragança quando regressou a Portugal em 1693 depois de ter enviuvado de Carlos II, rei de Inglaterra... 




Apesar de hoje no palácio estar instalada a Academia Militar ainda se sente por aquelas bandas a atmosfera real do tempo da rainha que deu a conhecer e instituiu a tradição do chá das cinco na Inglaterra, quem por ali deambular encontra-a imortalizada num busto que faz lembrar a Pipi das Meias Altas... 




Em contraponto, do outro lado da rua, fruto dos modernos tempos, abundam casas devolutas, prédios em ruínas e outros, muito poucos, em recuperação... E por entre os sem-abrigo que dormitam nos bancos de jardim a única coisa que destoa é o Observatório Astronómico da Bemposta, ainda bem conservado e popularmente conhecido como a Torre do Relógio, construído no século XIX para que os futuros militares complementassem os seus estudos científicos, já então o Palácio servia de sede à Escola do Exército e da Guerra...




João Conde Valbom

(Olisipógrafo de Lisboa)

 

UM PORTUGUÊS CALCANDO A CALÇADA!


"Este mundo-cão está cheio de macambúzios ambulantes!", tenho a mania de dizer em voz alta para mim mesmo sempre que me ponho a observar quem passa e correndo o risco de alguém que me ouça declarar-me maluquinho... De facto assusta a quantidade de pessoas que por aí caminham ensimesmadas de olhas fixos no chão, sem um olhar sequer para as árvores, para as aves, para o céu, para as flores, para os animais e sobretudo para as outras pessoas que com elas se cruzam e se, dizem os psicólogos e outros especialistas em postura corporal, quem tem o hábito de andar de carranca com a cabeça baixa e olhar fixo no chão são pessoas tímidas, outras tristes e outras solitárias que se recusam a encarar o mundo de frente, então concluo pela amostragem que a saúde mental anda muito por baixo... 




Mas agora que estou sentado num austero banco em pleno jardim do Campo dos Mártires da Pátria, rodeado de árvores pejadas de pássaros, de bancos ansiando pelos velhos e mães recentes de carrinho à ilharga, de mesas de ping-pong à espera de um duelo, de mesas e cadeiras cimentadas para receber os reformados para os torneios da sueca, do ginásio de manutenção para cães ainda vazio, de galinhas e de patos que ora nadam ora passeiam à volta do lago, penso que quem não anda bom da cabeça é quem por aqui passa e não o faz lentamente e de cabeça baixa e olhar fixo no chão, como eu fiz há pouco...




Está de parabéns a Junta de Freguesia de Arroios que em 2006 inaugurou a calçada portuguesa que reveste os corredores do jardim, num autêntico labirinto que nos desafia a descobrir os motivos nele plantados, eles são cães, como não poderia deixar de ser, mas também há galinhas, patos, pombos e outras aves, afinal a fauna que ali habita, para além de um cavalo, um sol e vários desenhos florais... Mas noto que todos os que por aqui passam, uns em ar de passeio outros nem tanto, muitos de telemóvel na orelha, vêm de cabeça levantada, olhar recto e passo decidido, espalhando confiança e coragem por entre a bicharada e no entanto sem reparar na beleza daquela arte que vão inocentemente calcando...




"A partir de agora sempre que vir alguém de cabeça baixa a olhar fixamente para o chão vou olhar também!" - decido mentalmente, desta vez em silêncio, afinal olhar para o chão tem algumas vantagens em relação à postura altiva, pode salvar-nos de tropeçar em obstáculos imprevistos e de dar um sério trambolhão, podemos ter a sorte de achar uma nota de 20 perdida ou então, e não menos relevante, evitamos dar de caras com tantas trombas assustadoras que por aí vagueiam...


João Conde Valbom

(Olisipógrafo de Valmedo)

domingo, 17 de dezembro de 2023

 

TEM MEDO? COMPRE UM JAMES!


"Quem tem medo compra um cão!". A cada dia que passa, o velho provérbio ganha mais sentido e pouco falta para ser considerado uma verdade absoluta deste louco mundo-cão tantas são as evidências que o comprovam, desta vez foi validado por um estudo sueco de 2018 em que durante 12 anos se estudaram 3,4 milhões de pessoas entre os 40 e os 80 anos de idade e as conclusões apuradas apontam inequivocamente para a realidade de que "ter um cão reduz o risco de morrer de doença cardíaca!"...  
De facto, parece que as pessoas que têm apenas como companhia um cão têm menos 23% de hipóteses de morrer de ataque cardíaco, enquanto que na generalidade das pessoas, aquelas que vivem com outras pessoas e um cão também, a probabilidade de morrerem do coração se reduz em 20%! Raios, é muita coisa! Já sabíamos há muito que ter um cão como companhia anulava os riscos do isolamento social e prevenia estados depressivos mais ou menos graves, agora que fazia tão bem ao nosso coração é uma excelente notícia, basta apaixonarmo-nos por um cão e assim vivermos mais tempo e mais felizes e isso é a coisa mais fácil neste mundo tantos são os cães dispostos a amarem-nos e a cuidarem de nós! 
 



E este estudo não é inocente pois segundo uma das suas autoras, sueca, claro, a Suécia é um dos países com mais baixa taxa de propriedade de cães! Tudo bem, pensamos nós que já desconfiávamos que os suecos eram altos, louros, de olhos azuis e com muita queda para a depressão!... Tem medo que o seu coração pare sem aviso? Arranje um cão!!!


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

"My self(ie)"

James

(Cão de Valmedo)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

 


CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLVI


MEDO, ESSA BOA SENSAÇÃO!


Parece que afinal o medo é uma coisa boa! Dizem os entendidos que, na medida certa, o medo é uma reacção instintiva saudável do comportamento humano pois permite-nos que evitemos situações de ameaça iminente para a nossa sobrevivência... Por exemplo, ao explorarmos o topo de uma falésia se não tivéssemos receio de cair de uma grande altura e esborracharmo-nos lá em baixo isso nos daria uma falsa sensação de segurança que nos levaria a não termos tanta cautela em cada passo que se dá e a queda no abismo tornar-se-ia muito mais provável e o mesmo se aplica a milhentas de outras situações em que é percecionado pela mente humana uma situação de perigo!  O que acontece então no nosso organismo quando é disparado o modo de alerta que nos activa para uma reacção de luta ou fuga?
Quando nos sentimos em perigo o nosso Sistema Nervoso Simpático simpaticamente activa uma série de respostas fisiológicas em cascata e que começa com o aumento da produção de adrenalina e outras hormonas que desencadeiam o aumento da frequência cardíaca, a dilatação das paredes musculares dos brônquios, a vasoconstrição dos vasos sanguíneos e a estimulação do sistema gastrointestinal, aquilo a que chamamos um friozinho no estômago ou dores de barriga que podem levar àquilo que é conhecida como diarreia emocional, afinal está provado cientificamente que o nosso cérebro tem uma sucursal no intestino, o que explica porque é que muitas das ideias que temos numa situação de pânico são verdadeiramente ideias de merda, embora muita gente não precise sequer de sentir uma ameaça para as ter e em grande quantidade!


"O Grito" - Munch, 1893


Ora, se já dizia o outro "Quem tem cú tem medo!" e se agora nos diz também a ciência que é bom de vez em quando apanharmos um cagaço, então qual o problema de armarmo-nos em caguinchas de vez em quando, quase morrer de cagunfa ou então borrarmo-nos todos? Afinal tudo descamba na luta pela sobrevivência e herdámos estas estratégias dos tempos ancestrais em que éramos animais selvagens, ao sentirmo-nos em perigo cagámos por onde fugimos para depositar bactérias e toxinas que possam aniquilar quem nos caça (já para não falar do cheiro fétido que pode enjoar o inimigo) e as nossas veias e artérias contraem-se ao máximo para reduzir o perigo de hemorragias se formos feridos, afinal essa é a lei da selva, a maior parte das mortes no mundo selvagem devem-se a hemorragias provocadas por feridas infligidas pelas garras dos predadores...
Mas o medo também pode ser artístico, que o diga Munch que assim relatou no seu diário as sensações que o levaram a pintar um dos quadros mais famosos deste maravilhoso mundo-cão: "Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza."

Viva então o medo, desde que não seja patológico, e desde que não se tenha medo de viver...

João Butterfly

(Analista de Valmedo)

domingo, 3 de dezembro de 2023

 

"Coragem é a resistência ao medo, é o domínio do medo e não a ausência do medo!"


Mark Twain

sábado, 2 de dezembro de 2023

 

TERAPIA M𝄞SICAL


Começo por declarar que a culpa desta crónica hospitalar não é minha, antes é da música, não apenas de uma música em particular mas da música em geral que, estou desconfiado, parece ser o cimento que liga toda a beleza, todo o mistério e todas as incongruências deste mundo-cão e ao qual que lhe dá muitas vezes não só um sentido mas também um refúgio para expiação dos meus pecados... Querem um exemplo? Reparo agora que, enquanto matraco este pobre teclado e as palavras vão aparecendo no monitor, o faço ouvindo Vanessa Daou cantando um poema da feminista Erica Jong numa gravação dos "Muitos Mundos" na Antena 3 e de facto, se estivermos atentos, todos somos confrontados diariamente com muitos mundos, como foi o caso quando ela, carregando o seu mundo, entrou na Sala de Colheitas para fazer análises...

Ela era uma grávida vinda da Consulta de Bem-Estar Fetal e assim que entrou na sala agitada eu cheirei-lhe algum nervosismo, ela ali, estacada de senha na mão aguardando um sinal, e então eu disse: "Bom dia, o seu nome completo?". Depois viriam as perguntas e as observações oficiais da minha cartilha: "Ponha aí as suas coisas e depois sente-se aqui nesta cadeira, por favor"; depois seria "Qual o braço melhor para o castigo, onde tem a melhor veia?"; depois "Feche a mão, não mexa agora!"; "Pronto, pode abrir, carregue aqui com força!"; e passados dois ou três minutos enquanto ponho o penso rápido "Pode tirar, bem disposta?; finalmente, "Pronto, despachada! Tenha um bom dia..."
Felizmente na maioria dos casos o atendimento é assim, rápido e eficiente para satisfação de todos e especialmente daqueles utentes que se querem ver dali para fora o quanto antes mas nem sempre é assim, há casos em que a estratégia tem de ser outra como nas situações de veias difíceis ou inexistentes em adultos ou então crianças que entram em pânico e o estendem aos pais, gente que não pode ver sangue ou com fobia a agulhas, ou ainda nos muitos idosos que se pudessem por ali ficar a manhã toda a trocar conversa e assim apaziguar a solidão... Muitas vezes perco demasiado tempo mesmo sem tempo para tal, as pessoas não podem ser apenas números para estatísticas, às vezes um pouco de atenção torna-se uma poderosa terapia e mais eficaz que muito comprimido... E não é que assim corro grande risco de ser pouco produtivo?!  Ainda me lixo um dia destes... 



Mas no caso da Ivania, assim se chamava a grávida sentada na minha cadeira, a cartilha foi imediatamente posta de parte quando me mostrou o braço tatuado para a picada e eu leio em voz alta para ela também ouvir: 

"I'll tell you
 my sins and you
 can sharpen your
 knife"

- "Bem, - disse eu com a borboleta na mão e com alguma esperança de ter piada - não tenho faca mas afiei a minha agulha, vamos a isto?
Felizmente ela sorriu, sinal de que o nervosismo estava controlado e depois, já com a seringa atestada, não resisti:
- "Donde é que vem isto? Um poema?" 
- É de uma música... do Ozier... - responde-me ela de olhar desafiante...
E eu que, completamente às aranhas, não me lembrava de nenhum Ozier, quem seria, um artista novo? - interrogava-me - ainda tive que ouvir alguém do outro lado da sala a dizer pomposamente:
- "Take me to the church", é o nome da canção!
- Isso mesmo! - disse uma sorridente e aliviada Ivania... 
E eu, metendo a ignorância musical no saco, despedi-me da Ivania com um sorriso retribuído e imaginando que mundo ela carregaria, seria aquele um poema de amor ou de catarse religiosa? Que seja feliz, é o que importa...
Infeliz tenho eu andado depois de descobrir o "Take me to the church", editado há dez anos (!) e que me passou completamente ao lado... Bem, mas a distracção e a alienação também fazem parte do mundo-cão, ou não?




OZIER - Take me to the church


João Butterfly

(Analista de Valmedo)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023