O que faz um profissional de saúde atravessar o portão da escola e dirigir-se a uma aula, de modo livre e consciente, e ademais sabendo que o aguarda um sala repleta de jovens, irrequietos e exigentes alunos?
Esta questão, que coloquei a mim próprio diversas vezes e com maior assiduidade à medida que se aproximava a hora da verdade, ficou muitas vezes sem resposta, embora no íntimo a soubesse desde sempre: a paixão pelos livros!
E embora estejam os poetas cansados de me avisar que a paixão pode levar à felicidade mas também a actos tresloucados que a toldada razão não consegue refrear, não resisti ao estimulante desafio. Assim, e especificando melhor, no âmbito do programa "Ler, lazer e aprender" da Profª Rosalina Nunes, fui convidado para falar sobre livros aos alunos do 8º ano (Turma A) da Escola Dr. João das Regras.
E assim começou esta aventura....
Se a resposta ao desafio foi imediata, afinal nenhum outro assunto alheio à minha área profissional me levaria a apresentar uma exposição do género, as dificuldades começaram no instante seguinte. Falar sobre que livros? Falar sobre que escritores? Ou apenas sobre leitura? A única certeza era a de que não se pretenderia qualquer programa de sugestão de leituras ou de determinadas obras.
Alguns dias a matutar, meio desconsolado pela indecisão, e a resposta estava ali mesmo, era óbvia!: tinha que falar de mim, do modo como os livros nunca me abandonaram na conturbada fase da adolescência, e como me ajudaram a perceber e a encarar o mundo e os outros, mas acima de tudo como ajudaram a entender-me a mim próprio, e de uma forma tão arrebatadora que nunca mais me separei deles! Afinal, se falasse de mim, falaria de livros e de como, sem eles, nem eu hoje seria o mesmo, nem a vida seria assim, nem o mundo seria igual....
Tudo seria pior....
E eu seria menos feliz.....
Bom, nesta fase já tinha uma ideia, mas pensei "estás a levantar muitas expectativas, estás febril e entusiasmado, mas sabes bem que é impossível atingir esses objectivos numa simples conversa, porque é disso que se trata, de uma simples conversa..." "E com jovens de 14 anos ainda por cima,, não te iludas, mais complicado se vai tornar", alguém me lembrou...
Entretanto o tempo escoava e tinha de me decidir, portanto, mãos à obra, falemos então de livros, ou antes, de mim e dos livros, correndo o risco de não passar toda a mensagem mas confortava-me a ideia que assimilei com a leitura: vale sempre a pena, porque se restar eventualmente algo por dizer ou demonstrar também se ganhará sempre muito coisa com aquilo que se conseguiu dizer... Afinal, à semelhança dos livros, em que nenhum é tão mau assim que não possa ser útil sob algum aspecto (como dizia Plínio) também da palestra mais desastrada será certamente possível retirar algo de positivo, ou não?
Voltando às dificuldades, comecemos pelo título.... Algumas ideias, nenhuma sobreviveu mais de 2 horas, fosse devido à extensão ("Eu, os meus livros, os outros e o mundo"), ou por levantar muitas expectativas (As minhas aventuras com os livros") ou até por parecer presunçoso demais ("Nós somos os livros que lemos"), Até que, fatalmente, seria com a ajuda de um dos meus livros que teria a ideia perfeita: dei com os olhos nele, sereno na estante, comunicamos mentalmente e eis que as suas desventuras e a beleza das suas palavras me fizeram viajar no tempo e sentir novamente a magia da sua leitura, e definitivamente pensei que se a leitura é paixão se tornaria inevitável transformar o "
non se puede vivir sin amar", a máxima existencial de Malcolm Lowry e do seu cônsul inglês no México, no título desta singela dissertação?
"NÃO SE PODE VIVER SEM LIVROS"
Assim ficou.
Nasci e cresci em casa onde não havia livros. Mas como a leitura não se faz apenas de livros, é importante referir que havia jornais, especialmente a "A Bola", o único que o meu pai comprava e cuja dissecação me ocupava vários dias. Naquele tempo, os jornais desportivos eram muito diferentes dos actuais, primeiro porque eram trissemanários, portanto cada edição era mais rica e cuidada, segundo porque tinham muito mais reportagens e crónicas sociais, e ainda terceiro porque não havendo a competitividade comercial de hoje eram mais rigorosos e menos especulativos. O jornal, ainda que desportivo, foi o meu primeiro atlas e o meu primeiro compêndio de geografia e sociologia, para além da diversão inerente aos pormenores futebolísticos, claro; e foi graças às excelentes crónicas que eram feitas do estrangeiro aquando das viagens dos clubes portugueses para jogos internacionais que fiz "a minha primeira volta ao mundo: capitais e monumentos, dados demográficos de cada país. costumes característicos de cada povo, curiosidades políticas, económicas e culturais, até o modo de vida das comunidades lusas emigrantes, tudo isso "A Bola" me deu, para além, evidentemente, das grandes vitórias do glorioso e do Eusébio.
Naquele tempo também não havia computadores pessoais, nem
internet, nem
playstation; além disso, a televisão era a preto e branco e resumia-se a dois canais com programação pouco apelativa à curiosidade e exigência juvenis, embora isso não signifique que a infância e adolescência dos 70 fossem obrigatoriamente infelizes, antes pelo contrário....
Havia mais tempo livre (as férias grandes chegavam aos quatro meses), havia mais liberdade (as brincadeiras ao ar livre duravam horas) e acima de tudo havia um contacto saudável com a natureza, quase obrigatório para quem nasceu numa aldeia à beira da serra e da cidade.... E, essencialmente, cresci num mundo de índios e
cowboys! Nos livros de banda desenhada, nas séries televisivas (Bonanza, O Maioral, Daniel Boone...), nas brincadeiras.... nós os
cowboys de pistola na mão mão e eles os maus....
E sempre que íamos a Torres Novas em dia de mercado, lá tentava convencer a minha mãe a comprar um livrinho de índios e
cowboys.... Foram as primeiras aventuras partilhadas com os livros....
Depois, um dia, a biblioteca veio até nós! E quando a carrinha da Gulbenkian se vislumbrava ao longe, a excitação assaltava-nos, organizava-se a fila de atendimento por ordem de chegada, afinal os primeiros iriam requisitar os livros de aventuras mais desejados... E se assim não fosse, restava-me a possibilidade de convencer algum amigo a fazer umas trocas, o que nem sempre era fácil...
E graças a esses livros itinerantes conheci heróis e aventuras mil, do Robin dos Bosques à Ilha do Tesouro, do Sandokan aos Três Mosqueteiros, e acima de tudo as aventuras deslumbrantes de Júlio Verne, um génio muito à frente do seu tempo. Com ele fui à Lua, desci ao centro da Terra, fiz milhares de léguas submarinas e fiz a minha "segunda volta ao mundo", para além de muitas outras viagens....
E apesar de um dia os livros terem deixado de vir de carrinha até mim, passei eu a ir de autocarro até eles, em Torres Novas...
Deixei a escola primária para trás e lá fui eu iniciar a vida de estudante na cidade. Outro mundo, outras aventuras e especialmente, muitos e outros livros... Um dia, um colega de turma, preocupado com o estado lastimável dos meus joelhos e das minhas sapatilhas Sanjo, aquando de um furo inesperado por falta de um professor, convence-me a trocar o futebol do costume por uma visita à biblioteca municipal. Não foi fácil, o futebol é uma doença genética - ainda hoje faço uma perninha com os amigos- e ainda para mais a biblioteca ficava longe e lá no alto, paredes meias com o castelo, mas naquele dia foi diferente tomar de assalto aquela colina sobranceira ao jardim e ao rio Almonda e acabei por fazer uma importante e bela conquista.... Tinha entrado num admirável mundo novo, fascinante, milhares de livros espalhados por inúmeras estantes e várias salas, à espera de um leitor com que partilhar histórias e mistérios, segredos e maravilhas ocultas, pessoas e vidas estranhas, e ali, naquela reconfortante tranquilidade, não havia limite ao prazer da escolha, era só querer desfrutar...
Mas naquele dia, e durante algum tempo. fiz companhia ao meu amigo na sala de banda desenhada, género pelo qual ele era louco, e fui apresentado ao Astérix, ao Tintin,, ao Lucky Luck e ao Michel Vaillant. Quem disser que a banda desenhada não é obra de qualidade meritória é porque nunca conheceu estes heróis. E tem graça, noto agora, foi preciso esperar trinta anos para ver estes heróis imortais transformados em personagens de carne e osso, em acções cinematográficas de um realismo sobrenatural e ainda a três dimensões, nunca imaginei tal ser possível; e quando hoje vejo esses filmes, sinto-me com doze anos outra vez. Só por estas memórias valeu a pena este compromisso e assim continuo com mais um pouco de motivação.
Mas o tempo não espera por nós e revejo-me poucos meses depois na mesma biblioteca, não na secção de banda desenhada mas antes a investigar as estantes de livros policiais e romances.
Como aconteceu?
A alguns membros da família mais distante tinham chegado rumores sobre o meu gosto pela leitura e, num Natal velho de quarenta anos, decidiram presentear-me, de uma assentada, com dois livros que ainda hoje ocupam um cantinho especial na minha pequena biblioteca. Foram os meus primeiros "romances" e de tal forma catalisaram a minha relação com os livros que merecem, cada um a seu modo, a homenagem que se segue.
O primeiro foi o volume inicial da colecção integral das de Agatha Christie, sem duvida o maior génio do romance policial. E foi avassalador conhecer o detective das "células cinzentas", o universalmente famoso Hercule Poirot, de tal forma que dei por mim a requisitar praticamente todas as suas aventuras na biblioteca, devorando-as a um ritmo alucinante.... Graças a ele também me muni de uma lupa, tornei o meu olhar observador e sagaz, dei uso incessante às minhas células cinzentas, debrucei-me sobre os mais ínfimos detalhes na cena do crime, tudo numa busca incessante na solução do mistério, revirei os álibis de alto a baixo, anotei todos os pormenores no meu caderninho, esforcei-me que nem um louco na captura do criminoso mas, debalde, nunca consegui acertar nos suspeitos certos. A culpa foi dessa tal senhora Agatha, que parecia brincar com o jovem leitor,fazendo-o sentir-se impotente perante finais tão surpreendentes como espectaculares. Por isso, foi ela quem primeiro me demonstrou que se pode amar e odiar a mesma pessoa ao mesmo tempo, amei-a sempre que começava a ler outra obra sua porque era genial e me oferecia puro prazer na leitura e odiei-a sempre que me enganava e surpreendia no final. Devido a isso decidi, aos catorze anos, que era melhor não arriscar uma carreira de detective, mas há muito que lhe perdoei todas as afrontas. E estou-lhe grato por me ter obrigado a fazer as minhas primeiras requisições de livros numa biblioteca pública pois graças a elas e às suas obrigações foram-me exigidas responsabilidade, pontualidade e estima pelos livros, sendo um ponto de honra a entrega dos volumes a tempo e horas e num estado de exemplar cuidado.
O segundo livro é o exemplo perfeito de como um má escolha pode ser a melhor, embora até prometesse pela capa e porque era obra de um Prémio Nobel (apesar de hoje eu pensar que isso dos prémios literários não é o mais importante, basta atentar nos milhares de obras-primas que por aí há e que nunca foram distinguidas). Acontece que para descansar da trabalheira que o Poirot me tinha dado, tentei lê-lo, e confesso que me esforcei, mas deu tudo numa grande confusão de personagens e situações que não conseguia entender por mais que lesse e relesse. E acabei por desistis, desgostoso e inseguro quanto à minha capacidade para entrar naquelas obras mais "sérias" e adultas. Mas a teimosia levou-me a tentar outra vez e passado algum tempo arrisquei novamente mas tudo continuava do mesmo modo, aquele drama continuava inacessível. Até que, desesperado e vingativo, e calculo que pela única vez na minha vida de leitor, decidi espreitar as últimas páginas e eis que deparo com um nota, mesmo por debaixo da palavra "FIM": Este
romance completa, com os dois volumes que lhe antecederam, também nesta colecção, a famosa trilogia que granjearam para a autora o Prémio Nobel"
Curioso como, se lermos uma trilogia pela ordem completa dos volumes, tudo se torna mais claro e lógico, não é? E foi o que aconteceu quando mais tarde assim fiz, mas o mais importante nesta história nem foi o facto de, após ter recuperado a autoestima ter lido e gostado da obra completa, foi antes o facto de cada volume da colecção (Dois Mundos, Livros do Brasil) apresentar nas badanas duas sinopses: uma da obra em questão, outra do próximo volume, e isso fez a diferença pois apelou à minha curiosidade para ler outros autores, fosse pelo título apelativo, fosse pelo resumo atraente. Além disso, na contracapa vinham todos os títulos da colecção entretanto publicados e daí a requisitá-los na biblioteca foi um ápice; graças a essa prenda tresmalhada que um dia recebi conheci algumas das obras que mais me marcaram e me fez inclusive chegar àquela que posso considerar a minha preferida, até hoje. Mas isso fica para depois...
E agora chegou a hora de dar um salto no tempo e no espaço. Após vários anos de leituras assíduas,estamos em Mafra, em 1983, para onde transferi a minha residência, em pleno Palácio Nacional de Mafra, mais concretamente no antigo convento que hoje serve de Escola Prática de Infantaria.
E acerca do Palácio, e da sua importância e magnificência arquitectónica a nível europeu e mundial, não me vou alongar muito, são sobejamente conhecidas e facilmente pesquisáveis, até porque neste caso o interesse reside no facto de, nas horas livres das tarefas do serviço militar obrigatório, eu ter descoberto a Biblioteca do Palácio.
E se já sentia um fascínio pelas bibliotecas comuns com esta fiquei deslumbrado, pelo espaço e pelas curiosidades: cerca de 4000 volumes encadernados a couro e gravados a ouro, as estantes de madeira exótica do Brasil, os mármores ímpares de Itália e aqueles que o Baltazar Sete Sóis ajudou a trazer na carroça, as estratégias que os monges do antigo convento arranjaram para cuidar das obras, das quais a mais curiosa e genial foi a criação de uma colónia de morcegos que se alimenta dos insectos devoradores de livros e que ainda hoje tem um papel importante na conservação do espólio. Mas outras curiosidades existem e muito vale a pena descobri-las, afinal estão a pouco mais de meia hora de viagem da Lourinhã, o que é uma benção em relação àqueles milhões de bibliófilos espalhados pelo mundo inteiro que ficam limitados a visitas virtuais e que tanto desejariam visitar uma das bibliotecas mais imponentes do mundo.
E já agora também não desdenhariam conhecer Coimbra e a Biblioteca Joanina, outra jóia da nossa coroa, ou então a livraria Lello, no Porto, por muitos considerada a mais bela do mundo. Para um pequeno país de ilustres poetas e homens de escrita, em que se tem tornado moda tudo denegrir, não está nada mal, só temos que nos dar ao trabalho e ao prazer de o explorar e com isso descobrir também a nossa história e riqueza cultural, será talvez o suficiente para não entrarmos amiúde em depressão nestes tempos críticos.
Bom, mas chega de devaneios e passemos a uma das leituras que mais me marcou, já adivinharam certamente, José Saramago e o seu "Memorial do Convento", publicado em 1982. "Que especial há nisso?" poderão perguntar, milhões de pessoas também o leram e bastantes até nem gostaram por aí além. Certo, mas gostos e prazeres não se discutem e a minha especial emoção advém do facto de ter lido a obra enquanto "morava" nos antigos aposentos dos monges do próprio Convento, o que me transportou para outras dimensões, passado e presente, fazendo-me sentir por vezes personagem do enredo, testemunha da paixão transcendente de Baltazar Sete Sóis e Blimunda Sete Luas ou companheiro de aventuras do Padre Bartolomeu de Gusmão e da sua Passarola Voadora pela Serra de Montejunto.
Anos mais tarde viria o Nobel para o autor, viriam muitas mais obras de referência mas nenhuma dessas leituras alcançou a delícia de ter lido o Convento instalado na cela monacal, paredes meias com os aposentos de D.João V e com a biblioteca real enquanto era embalado pela musica celestial emanada pelo maior carrilhão do mundo.
Poderia agora contar outras histórias, porque livros chamam livros e outras histórias, como seja falar do livro de culto, ou do livro inacessível que um dia espero conseguir, ou da busca incessante pelo livro que me falta para completar aquela colecção ou ainda do livro misteriosamente desaparecido... Mas não cabem aqui, ficam eventualmente para outras conversas sobre livros que esta já muito me exigiu, e se é verdade que entrei um pouco ansioso para esta apresentação também dela saí mais rico e grato porque me obrigou a conversar com livros que não via há muito, a viver outros tempos da minha vida sob outro prisma e com isso a redescobrir-me. E a meu ver essa é uma das maiores virtudes dos livros, abrem portas para outras dimensões e põem-nos a sonhar, a viver outras vidas e a reinventar-nos. Concluindo, os livros, aqueles bons livros, não são apenas para serem lidos, devem também ser conversados como aconteceu nesta hora de convívio com o 8º A. Feliz ficaria se para estes alunos aquele tempo de partilha tivesse valido metade do que valeu para mim....
João Carlos Ferreira
2012
(Este texto, para quem estranhar, e exceptuando os eventuais erros de ortografia, foi escrito em português ancestral porque sou convictamente objector de consciência em relação a acordos ortográficos)