sábado, 31 de dezembro de 2022

"Terras do Demo", Celorico - Jean-Charles Forgeronne

 

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER- XXII


ISCAS DE FÍGADO OU BACALHAU?


E quando a simpática Dona Emília anunciou que um dos pratos do dia e a sair eram iscas de fígado acompanhadas por batata frita não hesitei:

- Venham então lá elas! 

A N., indecisa, optou por uma grelhada mista em vez do bacalhau e observou:

- Reparaste que ela falou em iscas de fígado? Mas as iscas não são sempre de fígado?

- Pois, também notei, talvez aqui por estas bandas chamem iscas a outras coisas também... Tenho que investigar...



Estávamos bem guardados do frio, da chuva intermitente e do nevoeiro que reinavam lá fora, as ruas da cidade estavam quase desertas apesar de ser um dia de semana, ao contrário daquele refúgio que estava cheio e com fila para sentar... "A TASQUINHA" fica em pleno centro da cidade situada a mais de mil metros de altitude e há mais de 50 anos que eleva bem alto a arte beirã de bem receber a quem busca o prazer da comida tradicional portuguesa, seja ao almoço, ao jantar ou um petisco a qualquer hora como está anunciado à porta, desde os carapauzinhos fritos aos ovos verdes, da feijoada ao caldo de grão, da bela sardinha assada na época ao arroz de tamboril ou às enguias e por aí fora, é conforme o clima e o apetite...




As iscas estavam deliciosas, temperadas a preceito e a cheirar a vinagre como convém, as batatas surgiram exemplarmente crocantes e sequinhas e o tinto da casa esteve à altura... Mais tarde ficaria a saber que gastronomicamente se pode chamar iscas a qualquer pequena porção de alimento e que na região do Porto é o nome dado a pequenas lascas de bacalhau... Mas as iscas, com ou sem elas, que é como quem diz batatas cozidas, apareceram em Lisboa nos meados do século XIX e rapidamente se tornaram um sucesso ou então uma necessidade, é que, por ser barato, era um prato ou petisco associado a comida de gente pobre e não havia tasca ou taberna que não o servisse. Não admira pois que muita gente, especialmente do Ribatejo para baixo, ainda hoje associe as iscas exclusivamente ao fígado da vaca ou do porco...



E depois à saída o senhor Firmino ainda nos presenteou com uma ginginha caseira para nos aquecermos do frio que nos espera lá fora, diz ele... E é então que já estamos com saudades e que um dia certamente ali voltaremos...


João Ratão

(Chef de Valmedo)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

"Passadiços do Mondego"

Jean-Charles Forgeronne 

(Fotógrafo de Valmedo)

 

PODE SER PASSADIÇO MAS É INESQUECÍVEL...


Passadiço é algo que passa rapidamente, algo passageiro, transitório, tinha-o lido há pouco tempo no insuspeito Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e que ainda lhe juntava outro significado: passagem ou qualquer corredor de comunicação... E ali estava ele, de câmara em baixo, olhando com mais atenção e tentando ouvir o mais sumido som que lhe comprovasse o instinto: alguém o observava, tinha a sensação forte e desconfortável de que não estava só! E no entanto, se alguém chegasse ali naquele instante poderia com legitimidade desconfiar da sua condição mental porque ele, de facto, estava natural e fisicamente só! Estaria a ser vitima de algum desfasamento emocional ou neuronal? Seria que alguma reacção química cerebral aleatória estaria a interferir com os seus sentidos? 

 

"Passadiços do Mondego" - Jean-Charles Forgeronne

Jean-Charles Forgeronne sentou-se antes que uma vertigem o fizesse cair daquele penhasco sobranceiro à Cascata Rosa, uma magnífica queda de água com cerca de 50 metros de altura que tornava aquele local mágico e cujo barulho da água a castigar as rochas ainda lhe era um pouco perceptível ali em cima... Lá em baixo, numa extasiante paleta de cores outonais, vislumbrava-se o vale ainda adormecido sob esparsos farrapos de nevoeiro, o Mondego por lá serpentearia na sua custosa e paciente viagem indiferente aos magotes de curiosos que tomavam de assalto os Passadiços, a novel atracção da montanhosa Beira Alta... Entretanto outro bando de barulhentos espanhóis (haverá povo que falará mais alto e sem pudor?) invadiu sem pedir licença o seu espaço de contemplação e de lá se veio não sem antes disparar mais algumas fotos mas ainda carregando aquela estranha sensação de que algo o transcendia, quem sabe se a mesma que Jesus Cristo terá sentido no Monte da Tentação?  Andaria o Diabo por ali?




Dois dias mais tarde, regressado a casa e quase esquecido da transcendental experiência em plenos Passadiços do Mondego, Forgeronne sentiu um calafrio invadir-lhe o âmago ao ver com mais pormenor as fotos que tinha tirado, pormenores que então não tinha reparado ali surgiam na tela do computador em toda a sua nitidez... Fincou as mãos nos braços da cadeira para não cair, ali estava ela, a criatura seja lá o que for, bem visíveis os olhos, o nariz, a boca, até a orelha e os braços! Afinal tinha razão! Alguém o tinha observado, talvez um guardião da natureza, petrificado mas poderoso, ainda bem que assim era, um segredo a ser descoberto por quem se aventure por aquelas "Terras do Demo" magistralmente descritas pelo grande Aquilino Ribeiro há cem anos... Uma coisa era certa para Forgeronne, aquele mistério não era passadiço, iria acompanhá-lo até ao último dia...


"Cascata da Ribeira do Caldeirão" - Jean-Charles Forgeronne

João Iniciado

(Ocultista de Valmedo)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022


LENDAS E NARRATIVAS - XIV


O SANTO, O DIABO E A CABRA...


Baptizado com o nome próprio de Fernando e de sobrenome duvidoso, aquele que mais tarde seria elevado a doutor da igreja católica e conhecido como Santo António ainda teve tempo nos seus parcos trinta e seis anos de vida para se tornar um grande viajante, não só por Portugal mas também pela França e pela Itália, onde de resto viria a morrer em Pádua... Viveu em Lisboa e em Coimbra no início do século XIII e, segundo a lenda, também terá andado a afugentar os demónios dos montes e vales da serra e de Linhares da Beira em particular... 



"A casa amaldiçoada" - Jean-Charles Forgeronne

 

Quem descer do castelo pela primordial Rua dos Penedos em Linhares irá encarar a casa de granito ancestral onde há séculos habitou Dona Lopa, uma nobre viúva que vivia apenas com a sua criada e a quem, quem sabe se por inveja, a vizinhança atribuía alguns hábitos pouco católicos e outros nada recomendáveis... E num luminoso dia quem haveria de lhe bater à porta? Claro que teria que ser o nosso querido amigo e protector Santo António, quem melhor para farejar o enxofre a milhas de distância?


"A cabra" - Jean-Charles Forgeronne

- Então que é feito da sua criada? - terá perguntado o santo à dissoluta dama...
- A minha criada saiu ainda não há muito tempo - respondeu a surpresa senhora...
- Estou a ver que a senhora não desconfia que vive com o demónio!
-Mas, santo deus, como é isso possível se com ela estou tão satisfeita e se em tudo ela me apraz?
- Então, se nela acredita como ouço faça o seguinte e depois tire as conclusões que achar: logo à noite, quando ela se deitar e estiver em sono profundo, espalhe cinzas ou farinha pelo soalho e observe as pegadas quando ela sair pela manhã... 



"Rua dos Penedos",  Linhares da Beira - Jean-Charles Forgeronne

E manhãzinha cedo lá estavam as marcas feitas pelos pelos pés de cabra, a desesperada Dona Lopa, convencida que vivia com o Diabo, não tardou em expulsar de casa a criada e esta, de rastos porque teve de abdicar de uma alma quase perdida, nunca mais foi vista... Entretanto Santo António tinha feito as suas orações e o Diabo foi arrebentar junto de uma figueira existente perto das muralhas do castelo e que nunca mais deu figos...  Mas outros e muitos demónios continuam por aí a atazanar as frágeis almas desde então, é o que consta... Quanto à Dona Lopa, começou a frequentar a igreja e penitenciou-se até ao dia da sua morte pelos seus pecados! E coitada da inocente e generosa figueira, que mal  fez ela para ser conhecida como a árvore do Diabo?


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

"The Bee" - Bordalo II, 2016 - LXFactory

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

 

O AMOR, A FIDELIDADE E O OSSO...


É mesmo um mundo-cão este em que vivemos, amigos caninos, e se duvidas houvessem para mim elas teriam sido desfeitas pelas coisas extraordinárias que aprendi ontem num bate-papo com o J.C... Tudo começou quando, numa rara distracção da parte dele, dei com a porta aberta como se um convite para entrar fosse e assim fiz, pata ante pata invadi o sacrossanto espaço dele onde o encontrei a ver no computador um desenho muito curioso em que se via alguém a dar um osso a um companheiro nosso...

- Como é que entraste aqui? - gritou ele irritado quando ao voltar-se deu pela minha presença... E então, surpreendentemente, em vez da esperada ordem para me pôr a andar para a rua ouço: - "Já viste, James, a pinta deste gajo? A cruel mensagem que ele transmite neste grafitti?" 


"Homem com cão" - "The World of Banksy", Lisboa

E eu que à primeira olhadela achei a coisa ternurenta respondi de instinto: "Então, mas qual é o problema de alguém a dar um osso ao seu animal de estimação?" E ainda provoquei mais um pouco para ver se ele acusava o toque: "Alguns donos semíticos deveriam era aprender com esta obra e dar ossos mais vezes aos seus melhores amigos, isso é que era!"... 

- "Mas repara bem, James, já notaste que o osso que está a ser oferecido ao teu amigo canino é dele próprio? É uma parábola acerca da fidelidade cega que podemos ter por alguém e que para além de não a merecer só nos está a utilizar para proveito próprio e a prejudicar-nos..."   




E depois, amigos caninos, ao ouvir isto e ao olhar com mais atenção para a cena bateu-me com tal intensidade a realidade que ainda estive para ali uns bons minutos a digerir a mensagem, de facto nós, que somos considerados os melhores amigos do homem e o símbolo maior da fidelidade e do amor que mais ninguém nutre assim por aquelas inconstantes e por vezes estranhas criaturas, talvez sejamos vitimas da nossa dedicação extrema, não acham?...  Bem, amigos caninos, vou ter que desligar, amanhã falamos porque apareceu-me agora aqui o J.C de osso na mão...


James

(Cão de Valmedo)

sexta-feira, 25 de novembro de 2022




Isto é o que acontece a uma pintura da dupla Pichiavo sobre uma placa de gesso feita em 2020 quando nela  Vhils esculpe, isto é, "pica"...  Actualmente em exposição na Galeria Underdogs...



"TRIUMPH" - Pichiavo e Vhils - ( Foto - Jean-Charles Forgeronne)

João Plástico

(Artista de Valmedo) 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 

A UM PEQUENO PASSO DA EXTINÇÃO...


Um viveu há muitos milhares de anos na era do gelo, o outro, o seu descendente e o maior animal terrestre da actualidade, sobrevive a muito custo e em perigo de extinção na savana africana... Falamos claro do MAMUTE, Mammuthus primogeniuse e do ELEFANTE-AFRICANO, Loxodonta africana, separados por um pequeno passo evolutivo deste mundo-cão que leva lá 4,5 mil milhões de anos de existência...


"Extinto!" - Jean-Charles Forgeronne

Também estes dois exemplares estão a um pequeno passo um do outro, apenas 115 anos e 1240 quilómetros os separam, no Parc de la Ciutadella encontra-se o mamute reproduzido à escala natural em 1907 por membros da Junta de Ciências Naturais de Barcelona e escondido numa parede subterrânea de um viaduto pedonal no bairro de Telheiras está retratado o elefante... Esperemos não encontrar um dia destes uma réplica do extinto elefante num qualquer parque de Lisboa!


"Em extinção..." - Foto de João Andarilho

João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

 

FEITIÇO


É um artista catalão, nascido em Girona, a 100 quilómetros de Barcelona, onde estudou... SERGI CADENAS enfeitiça-nos os sentidos apresentando a realidade sob novas perspectivas... Sem mais palavras...



João Plástico

(Artista de Valmedo)

 

El PARC qui morts la CIUTADELLA...


Em 1878 a mui odiada cidadela foi finalmente demolida após 153 anos de existência, tinha sido mandada construir por Filipe V em 1715 para albergar soldados incumbidos de manter a ordem como resposta à forte oposição de Barcelona à sucessão e ao poder dos Bourbons que exalava de Madrid, tinha a cidade entretanto resistido a um cerco que durara mais de um ano... E para justificar o ódio popular pela fortaleza basta lembrar que foi transformada em prisão durante a ocupação napoleónica e onde seriam executados dezenas de patriotas catalãos...      


"Arc del Triomf" - Jean-Charles Forgeronne

Nasceu então aí um parque de 30 hectares que passados apenas dez anos seria palco da Exposição Universal de 1888, visitada então por 2 milhões de pessoas! A entrada principal tomou a forma de um Arco do Triunfo em tijolo cor-de-rosa em estilo mudejár e com esculturas  alegóricas à industria e ao artesanato locais... 


"Cascata" - Parc de la Ciutadella - Jean-Charles Forgeronne


Neste popular parque e por entre laranjais e muitos papagaios que vivem nas palmeiras destaca-se a monumental fonte que inclui uma cascata monumental inspirada pela romana Fonte de Trevi e que teve a participação do então ainda jovem estudante Antoni Gaudí...



"O lago" - Jean-Charles Forgeronne

Além disso, também o sereno lago e as tranquilas alamedas merecem um tranquilo passeio ao entardecer.... E depois, como esquecer o Floquet de Neu (Floco de Neve), o único gorila albino conhecido até hoje e que desde 1966 até 2003 viveu no jardim zoológico de Barcelona, situado na parte meridional do parque, e que era a emblemática mascote da cidade ? 



João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

 

O PROGRESSO, A MEMÓRIA E A HOMENAGEM...


Tinha-as já visto ao longe do alto de Monjuic e do Parc Guell mas agora ali estavam elas mesmo à minha frente, imponentes dos seus setenta metros de altura, as três chaminés da era industrial e que são a memória da central eléctrica a carvão que no principio do século passado fez da sempre modernista Barcelona a primeira cidade espanhola a ser iluminada... Àquela zona do bairro Poble Sec chamam a propósito Tres Xemeneies e actualmente está transformada numa zona de lazer à medida das tribos urbanas que cultivam os desportos radicais e a arte mural...


"Tres Xemeneies" - Jean-Charles Forgeronne


E naquele solarengo domingo muita actividade havia por ali, muita gente de volta dos muros transformados em telas virgens prontas a receber novas mensagens e novas expressões artísticas, umas já a meio e fazendo adivinhar o que dali sairia, outras ainda no início e na minha voltinha exploratória fui atraído pela pintura ainda inacabada que um jovem aí pelos vinte anos ia pincelando enquanto olhava para aquilo que parecia ser o esboço da obra e então desavergonhadamente não evitei forçar a conversa...   



"Jaume i bisabuela" - Jean-Charles Forgeronne

Chamava-se ele Jaume e tendo que repetir porque não percebi à primeira explicou à boa maneira catalã que era o equivalente a Jaime, só que ali na Catalunha trocaram o "i" pelo "u" e diz-se "jaume" e não "rrrraime" como em castelhano... "Ah! - exclamei - Como em português, eu chamo-me João". Foi um belo desbloqueador de conversa porque então ele abriu os olhos e disse : "Ah, és português, muito bom, somos muito parecidos, por aqui também dizemos "juan" e não "rrrrruan", não arranhamos como os de Madrid"... "E o que vai ser isto?", perguntei-lhe já com pena de não poder ver a obra acabada porque nessa tarde estaria de regresso a Lisboa e ele explicou que o que estava por ali a acontecer era um "Festival Internacional de Pintura Mural" e apontando ali mesmo para o lado disse "aqueles ali são colombianos"... 



"Memória" - Jean-Charles Forgeronne


E acenando para a sua pintura esclareceu que estava a homenagear a sua bisavó porque o  tema do festival era a emigração e depois mostrou a fotografia da sua bisavó no dia em que para fugir da Guerra Civil partiu para França... "Até nisso somos parecidos, de Portugal também muita gente foi para França só que foi para fugir da miséria!", "Bom, alguns também fugiram da Guerra Colonial e do fascismo - acrescentei." Trocados os votos de sorte e felicidades deixei as três chaminés para trás e entrei pelo bairro seco adentro, assim chamado porque que só no século XIX teve água com a construção de uma fonte... E ainda hoje quem se aventure por aquelas ruelas ainda sente a atmosfera do tempo da guerra civil... 

João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

"Port Vell", Barcelona

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo) 

 

RAMBLAR AO SOM DE RAVAL...


Não são apenas más as surpresas que por vezes assaltam o viajante numa cidade estranha, quantas vezes dá ele de caras com um monumento fechado para obras ou com as fachadas cobertas com andaimes que impedem a icónica foto, ou então aqueles problemas inesperados com os transportes que impedem a visita programada para aquela manhã, por vezes também acontecem boas surpresas... Imaginem então este surpreendido escriba a retomar a descida da Rambla depois de ter feito um pequeno desvio e ter encontrado a catedral não só entaipada mas também a sugerir divinalmente para que nos conectemos com a galáxia onde mora o Criador usando o novo Galaxy Z Fold 4, que delícia, não  acham?     


"Chamada para o Céu" - Jean-Charles Forgeronne

Imaginem também que após ter pisado com gosto o Miró na calçada este escriba entra agora na Plaça Reial, construída em 1850 e que já foi considerada a mais movimentada de Barcelona, famosa pelos candeeiros de iluminação pública da autoria de Gaudí... Retrato tirado ao candeeiro nota então que ao fundo da praça uma azáfama que capta a curiosidade dos turistas que por ali deambulam, algo de especial está prestes a acontecer naquela tarde amena de sábado, mas o quê? 


"O candeeiro de Gaudí" - Jean-Charles Forgeronne


Uma curiosa orquestra preparava-se para daí a pouco entreter a populaça, vinha de muito perto, mesmo ali do outro lado da Rambla, do bairro de Raval e chamava-se, claro, RAVAL'S BAND, e como uma plateia de cadeiras convidava os passeantes a sentaram-se e a desfrutarem de um concerto inesperado debaixo das icónicas palmeiras ali se sentou este escriba para relaxar também do frenesim citadino... E que bem que soube aquela música assim caída do céu, não era nada de sinfonias eruditas, não era Ravel mas sim Raval embora se tenha ouvido também uma bela versão do Bolero, para além de jazz, blues e canções populares, tudo intercalado com o bom humor catalão... 


"Raval's band" - Jean- Charles Forgeronne




Culpa da sua banda e depois do inesperado concerto lá teve que ir este escriba dar uma voltinha pelo El Raval, bairro outrora situado fora das muralhas e cujo nome deriva do árabe arrabal e que significa subúrbio ou arrabalde em bom português moderno... Como típico bairro portuário, Raval, para além de abrigar durante séculos uma numerosa e miserável população operária que vivia sem condições de higiene tornou-se também numa concorrida zona de prostituição e de bares duvidosos que atraíam não só os noctívagos mas  também os ladrões... Mas não era tudo mau, no início do século XX no bairro também havia das salas de espectáculos mais concorridas da cidade e era lá que existia o antigo  hospital da cidade e para onde levaram a pessoa mais célebre de Barcelona depois de ter sido mortalmente atropelada por um eléctrico em 1926, Gaudí...   


"El gat", Rambla de Raval - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

 

LAS RAMBLAS, ou antes, LES RAMBLES!


RAMBLA, ou antes RAMBLE em catalão, tem origem na palavra árabe ramla e que significa "o leito do rio" e tudo ganha sentido se soubermos que no não muito distante século XVIII a Rambla actual não  passava de uma rua estreita que seguia o traçado da antigas muralhas de Barcelona construídas no século XIII e de braço dado com um curso de água malcheiroso a que chamavam o Cagalell, que à falta de melhor etimologia pode significar o "cagatório" ou o "caga-nele"... E foi só em 1776, ao mesmo tempo que os americanos se entretinham a declarar a sua independência, que nasceu o projecto de reconverter a Ramble numa larga avenida que ligasse a Plaça de Catalunya ao porto, num comprimento de 1,2 quilómetros e tornando-a na artéria central da cidade e uma das mais famosas do mundo depois de se acrescentar a edifícios históricos já existentes muitos sumptuosos palácios e outras obras arquitectónicas ímpares...



"Ramblando à sombra dos plátanos" - Jean-Charles Forgeronne


Embora seja apenas uma única avenida gostam os ciosos de pormenores históricos de dividir a grande RAMBLE em cinco e à primeira, logo à saída da Plaça de Catalunya, chamam-lhe Rambla dels Canaletes devido à famosa Font dels Canaletes, virtuosa devido à água tão boa que dela brota e daí dizer-se que quem dela bebia haveria de voltar sempre a Barcelona... E dela bebi, claro...


"Font dels Canaletes" - Jean-Charles Forgeronne

De dia ou de noite, sob as luzes da agitação nocturna ou à sombra dos plátanos, descendo ou subindo a REMBLE e com vagar como convém não faltam motivos de êxtase ao passeante, exemplos como a Reial Acadèmia de Ciències i Arts, o Palau de la Virreina, o Mercat de Sant Josep, mais conhecido como "La Boqueria" ou então a Plaça Reial que dizem ser a mais movimentada de Barcelona, já para não falar que ali a um pé de semear espera-nos a Catedral, basta um pequeno desvio... Depois, retornando, pormenores deliciosos podem escapar aos mais distraídos, enquanto vão andando de nariz no ar podem estar a pisar sem saber um mosaico de Miró ou passar ao lado do seu dragão art-decó idealizado para uma antiga loja de guarda-chuvas... 


"Pisando Miró" - Jean-Charles Forgeronne


Resumindo, LES RAMBLES  (parece francês não é?) não se descobre num simples passeio, é preciso lá voltar e voltar e voltar e sempre que se lá voltar vai-se acabar por descobrir outros pormenores e outras maravilhas, daí o tal ditado de que quem passa pela Font dels Canaletes e da sua água bebe lá voltará... Não é do meu jeito  mas aqui vai uma dica para aqueles armados em turistas que se limitam a passar pelas atracções mediáticas: para vós, quando decidirem ir à RAMBLA para ver como é que e a despachar que se faz tarde, e até porque há que pôr o visto no plano de viagem, para vós especialmente e para poupar tempo, convém começar o vosso passeio mais a norte da Plaça de Catalunya, no início do Passeig de Gracia, passem pelas famosas "La Pedrera" e Casa Battló", tirem as fotos e depois então comecem a descer as grandes e magníficas  Ramblas, não esquecendo que estão pisando um antigo esgoto a céu aberto...


"Se chover..." - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

domingo, 6 de novembro de 2022

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXI


MARCELINO, 16 RAZÕES PARA LÁ IR


Deixada para trás a dama com o pássaro de Miró e depois de dez minutos sentados no parque a observar os enxames de estridentes papagaios a voar de palmeira em palmeira avançamos pela Calle de la Deputació à procura do número 41, morada do recomendado MARCELINO 16 que se apresenta como um restaurante de comida típica de origem galega e mediterrânica...  Casa simples e pequena mas de bom ambiente familiar e cinco minutos chegam para perceber que os clientes são habituais e que não tarda muito não haverá mesa, convém pois chegar cedo e ainda bem que o fizemos...


"O 16 do 41" - Jean-Charles Forgeronne

Seguindo o conselho do Martim iniciamos o menu do dia com um caldo galego de boa consistência e com uma fideuá à marinheira, prato típico da costa valenciana que não conhecia mas que me encheu as medidas...


"Caldo galego e fideuà" - Jean-Charles Forgeronne

Se parássemos ali a coisa seria suficiente mas ainda vieram os segundos pratos, uns deliciosos boquerones fritos, sequinhos e estaladiços, e depois um saboroso entrecot de terner a la brasa, grelhado no ponto  e acompanhado de patatas fritas irrepreensíveis...


"Boquerones e Entrecot" - Jean-Charles Forgeronne

Tudo somado deu um belo almoço numa zona sossegada da fervilhante Barcelona e para demandar o Marcelino não será difícil arranjar 16 razões, de entre as quais a comida saborosa, a simpatia do atendimento e a excelente razão qualidade/preço... Sem dúvida uma experiência a repetir!  


João Ratão

(Chef de Valmedo)

sábado, 5 de novembro de 2022



Infinitas serão as vistas e as perspectivas da "Dona i Ocell", de Joan Miró, esta  é a minha...



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

SUBIR AO MONTE DOS JUDEUS


À colina que delimita Barcelona a sudoeste chamam-lhe MONTJUIC, para alguns significando o "Monte dos Judeus" porque aí terá existido outrora um cemitério judaico, actualmente é dos locais mais entusiasmantes e de visita obrigatória, seja pelas vistas magníficas que oferece para a cidade e para o grandioso porto, seja pelos museus ou por um passeio por parques e jardins à beira do Mediterrâneo... Além disso respira-se por aquela colina a história da Catalunha e da Europa desde que aí se instalaram os Iberos muito antes dos Romanos terem fundado lá em baixo a sua colónia Barcino, futura Barcelona, porto estratégico fundamental para o comércio mediterrânico, depois no século XVII construiu-se nela um castelo para resistir às tropas castelhanas e mais tarde uma fortaleza, utilizados por Franco como prisão e local de execução de opositores do regime. 


"Vista do teleférico" - Jean-Charles Forgeronne

Depois de ter acolhido a Exposição Universal em 1929, MONTJUIC ganhou outro e decisivo fôlego ao ser escolhido como palco dos Jogos Olímpicos de 1992 com a construção do Estádio Olímpico e de inúmeros outros edifícios ultramodernos... Depois de subir ao castelo de teleférico é obrigatória ainda outra coisa: uma visita ao imponente Palau Nacional, principal edifício construído em 1929 e que alberga o Museu Nacional d'Art de Catalunya...


"O imponente Palau Nacional" - Jean-Charles Forgeronne

Que belo entardecer foi depois aquele nas escadarias do Palau Nacional, bem alinhados com as torres de tijolo de 47 metros de altura inspiradas nas torres da Basílica de Veneza que assinalavam a entrada da Exposição Internacional de 1929 e com a majestosa Plaça d' Espanya, aguardávamos o início do show sonoro e luminoso da Font Mágica, mesmo ali a meio e a olho de semear... Ainda faltava cerca de uma hora para o espectáculo e ainda bem que um artista de rua tomou o palco com a sua guitarra e desatou a tocar e a encantar com canções crepusculares, valeu a pena e as moedas que iam sendo lançadas para o chapéu até porque depois toda aquela gente começou a dispersar, afinal saberia eu depois tinham estado ali pela vista e não pela mágica fonte, essa estava em manutenção até 2023... Percalços de viajante, pensei em voz alta, triste mas contente ao mesmo tempo, Montjuic valera muito a penosa subida...


"Fonte seca" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

 

A TORRE QUE É BALA, PEPINO, GÉISER...


A primeira bela visão de Barcelona que tive foi a da TORRE GLÒRIES, ao subir o último degrau da estação de metro da Plaza des Glòries Catalanes lá estava ela ainda iluminada apesar de serem quase seis da manhã e o dia ir rompendo, um bálsamo para tanto tempo perdido nos bunkers da TAP... Mais tarde, mesmo à luz do sol, manteria o seu magnetismo embora seja à noite que revela todo o seu esplendor ao brilhar com as cores da cidade, azul e grená...  


"Vista do Metro" - Jean-Charles Forgeronne

Ao arranha-céus de 145 metros de altura inaugurado em 2005 pelo rei Juan Carlos há quem lhe pareça uma bala, outros há quem lhe chame um pepino mas para desempatar nada melhor do que imaginar um géiser expulsando água para o ar pois foi essa a ideia do arquitecto que idealizou a obra, o francês Jean Nouvel. Construída em betão, alumínio e placas de vidro colorido, a Torre funciona hoje como um edifício de escritórios mas possui um miradouro no seu trigésimo andar de onde se alcançam vistas magníficas da cidade e a 360º de perspectiva...


"Vista do hotel" - Jean-Charles Forgeronne


Polémica depois de inaugurada, coisa estranha em terra que sempre foi em termos estéticos contra a corrente, a Torre é hoje uma das principais atracções de Barcelona, um verdadeiro ícone turístico e cultural e a sua localização é privilegiada, fica apenas a um breve passeio da Sagrada  Família, por exemplo... 


"Vista matinal" - Jean-Charles Forgeronne


Do alto de qualquer uma das montanhas que rodeiam Barcelona se avista aquela bala, aquele pepino, aquele géiser, aquilo que se queira...


"Vista de Montjuic" - Jean-Charles Forgeronne


João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Quinto incidente transfronteiriço

 

ERRAR E MUITO NO AEROPORTO...


"Um grande erro!" dizia João Palmilha em voz alta sem esperar resposta de quem o ouvisse, a verdade é que já ninguém ouvia ninguém e todos desabafavam, uns como ele em modo solitário, outros com os companheiros de viagem mas a maioria, sentados de ombros caídos e olhar desesperado faziam-no ao telemóvel... Aquelas quase três centenas de pessoas que ali penavam outra vez numa fila para serem atendidas tinham estado duas horas antes sentadas no avião já com o cinto colocado e motores em aquecimento para a descolagem quando, no último momento, se abrira a porta da cabine para de lá sair um jovial comandante a informar que lamentava muito mas que por motivos técnicos o avião não poderia descolar e que todos os passageiros teriam que sair  para serem encaminhados para outro avião! Surpresa geral, muito embasbacamento, seria uma piada? Mas não era, poderia ser apenas um pequeno incidente, "atrasos quem não os teve alguma vez" disse Palmilha para a sua companheira em jeito de conforto e motivação depois de terem passado pela sorridente tripulação que ia distribuindo a cada passageiro um animador "até já"...   



O Luís Vaz de Camões, uma das aeronaves da frota da TAP, ao recusar-se a partir para Barcelona iria proporcionar a toda aquela gente um dia muito diferente daquele que tinham idealizado, ali naquela fila, por enquanto calma e ordeira, ainda ninguém sonhava que iriam esperar 15(!) horas para iniciar a sua viagem, primeiro o voo seria remarcado para as 22:40, depois para as 23:05, depois 00:15, 00:40 e finalmente 01:05 do dia seguinte... Cada mensagem recebida no telemóvel tornava-se cada vez mais dolorosa após tanta espera, "Se é para cancelar que cancelem já, porra!" alguém gritara e com razão, ouviam-se impropérios e palavras de ordem em português "TAP nunca mais" ou "Qual privatização qual quê, acabem é com esta merda de empresa!", também rondava por ali um personagem curioso de boina e rastas à Bob Marley que exalava um suspeito odor adocicado, de calções e botas cardadas de caminhante, "um verdadeiro errante como eu" pensou Palmilha, e que num inglês arrastado a denunciar a sua origem irlandesa fez um comício em plena fila: "Fuck TAP! Fuck this country! Fuck Portuguese! Fuck this all!"... 



Com vouchers para comida deu para enjoar de tanta sandes e pizza a que era impossível escapar devido aos preços praticados no aeroporto mas, ao menos, enquanto se comia não se cronometrava nem se pensava como gastar o tempo, abusava-se da mesa achada a custo, observava-se os outros companheiros de aventura e ia-se deitando um olho às notícias on-line... Tirando isso, que fazer? De vez em quando andar para cá e para lá, uma simples ida aos lavabos dava para quebrar o marasmo e sentado nas cadeiras desconfortáveis Palmilha gastava com gosto a maior parte do tempo a observar quem passava, imaginando que vida levava aos ombros cada criatura que por ali desfilava e por vezes era cá cada figura... "Aqui estou eu armado em sociólogo!", disse para si mesmo...



Mais uma mensagem a informar de novo atraso, mais uma ida aos quadros de informação para saber do estado do voo, mais um pequeno alívio por não ter sido cancelado, mais uma errância para desentorpecer e enquanto a noite se aproximava o fluxo de pessoas ia diminuindo e os voos também e nos painéis informativos a realidade assumiu-se: a maior parte dos voos com atraso e outros cancelados eram todos da TAP! E enquanto outros passageiros que iam para Barcelona pela Vueling não tinham tido qualquer problema ali estavam eles, suspensos em terra de ninguém, ansiosos pela próxima actualização... Já noite, Palmilha entretia-se agora a fazer contas, quando iriam chegar a El Prat e que transporte do aeroporto para o centro da cidade teriam já de madrugada, já se combinava a partilha de táxi com uma tradutora espanhola a viver há anos em Lisboa e desesperada porque estava em vias de perder reunião importante mas como iria ela entretanto tentar arranjar a expensas próprias voo noutra companhia também se combinava com um casal madeirense em lua-de-mel e também em vias de perder o cruzeiro em caso de cancelamento... 



Tantos dramas à parte, haveriam de aterrar em Barcelona pelas quatro da madrugada, ainda por cima obrigados a esperar pela recolha de bagagem que a TAP vende como de cabine e não de porão, chegaram ao hotel perto das seis, uma noite de alojamento perdida, a visita a Montserrat programada para  essa manhã já tinha ido para o galheiro e todo o plano de estadia teria de ser reequacionado... Tudo culpa do Camões!


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)