domingo, 31 de outubro de 2021

Primeiro incidente transfronteiriço

 

ARE YOU MARIA? YOU'RE NOT MARIA!


Quem com ele priva reconhece em João Palmilha três grandes qualidades: tem um óptimo e inato sentido de orientação, possui um sentimento de grande desconfiança em relação às tecnologias e, para além disso, é metódico e exigente na preparação das suas viagens... Quanto ao sentido de orientação Palmilha socorre-se das suas três regras de oiro que aprendeu ainda menino: a numeração dos edifícios começa sempre de nascente para poente e de sul para norte, os rios são uma referência crucial em qualquer lugar e por último há que analisar com a devida antecedência a planta de uma qualquer cidade estranha que se queira conhecer! Assim, estudo prévio feito, acontece muitas vezes a Palmilha ter a sensação de já ter estado em sítios aonde nunca houvera ido de tal forma se misturam as referências geográficas que leva na cabeça e a orientação espacial de um qualquer lugar e isso dá-lhe uma confortável segurança pois embora não encontre por vezes à primeira uma rua ou um monumento ele sabe que o que procura não pode estar muito longe, tudo se resumirá a uma questão de tempo ou de perspectiva e perdido ou desorientado são estados que não lhe assistem... Ademais, é comum encontrá-lo por aí vagueando de cabeça no ar em busca dos pontos cardeais no sol ou nas estrelas, afinal que melhor bússola existe?





Palmilha acabou agora de sair do avião, a viagem decorreu com a esperada tranquilidade e enquanto pega no telemóvel para desactivar o modo de voo segue atrás de Maria e no meio da coluna de passageiros que se dirigem para o controlo de entrada no aeroporto de Viena.    

 - Next! - ouviu-se alguém gritar... Era para ele, tinha chegado a sua vez, diante de si tinha um jovem mas imponente soldado do exército austríaco, de cabelo louro e acutilante olhar claro que só não o intimidou porque estava à vontade, tinha todos os documentos à mão, o certificado de vacinação, o cartão de cidadão e o bilhete de voo...  

 - Your documents, please! - disse o militar que tinha algumas parecenças com o Tintim. Palmilha entregou os papéis e já se preparava para dar um passo em frente mas o torniquete não fora aberto, o jovem olhava para ele, olhava para o certificado de vacinação, voltava a olhar para ele, virou e revirou o cartão de cidadão até que disse:                

- Are you Maria? You're not Maria!   Palmilha não estava a perceber nada do que estava a acontecer, que raio quer este tipo, pensou...            

 - What's the problem?perguntou enquanto levantava os ombros para a Maria, a verdadeira Maria, que o esperava já do outro lado e lhe lançava um olhar de interrogação.     

 - This is not yours! You're not Maria! - quase gritou o soldado enquanto lhe dava o certificado para a mão e então compreendeu, em vez do seu tinha posto por engano na carteira uma cópia do certificado de vacinação da Maria, estupidez tamanha, afinal ele que não confiava nas tecnologias e salvaguardando qualquer problema com o telemóvel tinha impressas três cópias de cada certificado não fosse acontecer algum extravio, uma para andar na carteira, outra para ficar de reserva no hotel e outra tinha ficado no carro...                                                                                                                                       


"Franziskaner Platz, Viena" - Jean Charles Forgeronne

Já impaciente, Palmilha afastou-se para o lado para deixar passar as pessoas que esperavam curiosas atrás de si e fez sinal para o soldado que ia ligar o telemóvel para aceder ao certificado. Ligou os dados móveis e puxou a aplicação do Ministério da Saúde mas a informação que obteve gelou-o da cabeça aos pés e fez-lhe sair boca fora um sonoro:

- What a fuck!? - Estava com roaming mas sem internet! Raios, razão tinha ele para não confiar nas tecnologias! Agora era o soldado que lhe fazia sinal para ter calma, agora também a Maria se tinha aproximado perguntando-lhe novamente o que se passava, que não, não tinha com ela nenhum certificado dele, ela que já estava com os pés em Viena e ele ainda em espaço de ninguém correndo o risco de ser deportado se não arranjasse o certificado. Depois, tentando ludibriar os nervos dirigiu-se ao soldado para lhe dizer que não tinha net e perguntar-lhe se ali naquela parte do aeroporto não haveria wi-fi mas não foi preciso, caiu-lhe do céu a lembrança de que tinha outra cópia bem dobradinha arrumada num compartimento secreto da carteira não fosse o Diabo tecê-las! Aliviado, finalmente de papel na mão, Palmilha não se livraria ainda de ouvir do agora sorridente mas irritante soldado:

- Next time bring the correct document or I call you Maria again...

O sacaninha...


João Pena-Seca

(Escritor de Valmedo)

 

FAUSTO.    


Filosofia, Leis e Medicina,

Teologia até, com pena o digo,

Tudo, tudo estudei com vivo empenho!

E eis-me aqui agora, pobre tolo,

Tão sábio como dantes! É verdade

que sou mestre, doutor, e há já dez anos

Que discípulos levo, a meu talante,

À esquerda, à direita, ao sul ou norte,

Mas conheço que nada nós sabemos!

Rói-me isto o coração! Sinto-me acima

De mestres e de padres e de escribas;

Não me perseguem dúvidas nem escrúpulos,

Nem do demónio ou do Inferno tenho medo

Mas também nunca tenho uma hora alegre!

Nem chego a imaginar que haja ciência

Em que deveras creia, nem que saiba

Coisa alguma ensinar que aos homens sirva,

E convertê-los possa ou melhorá-los.

Também não possuo eu nem bens, nem ouro,

Nem grandezas ou glórias deste mundo.

Um cão não suportara uma tal vida!

Por isso me entreguei todo à Magia,

para ver se do espírito as potências

Alguns arcanos revelar-me podem,

Por que não haja com suor amargo

De ensinar o que ignoro, o que sustenta

Do mundo interior conhecer logre,

Veja as forças activas, veja as causas

E cesse o traficar com vãs palavras.

(...)


in Fausto, Goethe

sábado, 30 de outubro de 2021

Mefistofelices

 

ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - VI


GOETHE


Quem atravessa o Burggaten em demanda do Opernring e vira à esquerda não consegue evitar ser esmagado ao dar de caras com a imponente estátua de GOETHE, o poeta, romancista, dramaturgo e cientista que foi o mais importante dos escritores românticos e máximo expoente da literatura alemã... Embora ali esteja ele confortavelmente sentado a olhar o mundo que corre a seus pés pregou-lhe uma partida o irónico destino: os pombos e os corvos desta cidade que não é a sua, talvez influenciados pela magia negra do Mefistófeles, tratam de o presentear sempre que podem com insultuosas defecações! Ainda assim, desrespeitado e esquecido, de alvos rios de dejectos a escorrerem-lhe pela nobre face abaixo, mantém o nosso GOETHE a postura de enorme carácter enquanto continua tentando descobrir sobre as cabeças dos comuns mortais apressados o sentido último da existência, tal qual o seu Fausto...  




"Goethe em Viena" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Traum

"Jana&JS" - Viena - Jean-Charles Forgeronne

 

A valsa

 

O DANÚBIO AZUL


Embora muitos afirmem convictamente que o DANÚBIO não é azul mas sim amarelo, por exemplo os húngaros chamam-lhe "a szoke Duna", ou seja o louro Danúbio, Johann Strauss (filho) tratou de em 1866 o eternizar como azul na sua mais do que celebérrima valsa  "An der schonen, Blauer Donau"... 




"Johann Strauss no Sdadtpark" - Jean-Charles Fogeronne



                                                                               Danúbio Azul


João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

As escadas mais belas de Viena

 


ESCRITO NA PAREDE - XVI


"Strudlhofstiege" - Jean-Charles Forgeronne



Heimito Doderer foi um escritor austríaco do início do século XX, galardoado com o Grande Prémio Literário da Áustria e cinco vezes nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, serviu no Exército Austro-Húngaro na I Guerra Mundial acabando como prisioneiro de guerra durante anos na Sibéria e onde começou a escrever... Reza a lenda que conseguiu escapar da prisão e que fugiu até à Áustria natal a pé!



 

"Descendo as Strudlhofstiege"

"Quando as folhas coroarem as escadas 

sentirás o suspiro do Outono

e, passo a passo, todos aqueles

que vieram e que foram...

Uma vez a lua nasceu para alumiar íntimos abraços,

e vê como consegues ouvir claramente

o mais suave passo e o sapato mais barulhento,

rondando a musguenta taça 

e desarmados de guerra para guerra

o nosso luto aumentou com tamanha queda,

mas ao menos e acima de tudo 

a beleza permanece..."


                                                                                                                                  Heimito von Doderer


João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

Canal

"Passeio ao longo do Canal" - Viena

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

 


FOTOBIOGRAFIA DE UM RIO - V


O DANÚBIO - I


Deixadas as incertas nascentes da Floresta Negra para trás, o DANÚBIO bordeja Viena sem entrar no centro da metrópole, vá lá saber-se porquê, talvez tivesse havido uma razão de força maior para construir a uma razoável distância do rio a imponente Stephansdom, que é como quem diz a Catedral de Santo Estevão, e ao redor da qual se urdiu a cidade medieval... Mas os austríacos são orgulhosos e querendo o rio passar ao largo trataram então de o obrigar a passar pelo centro, vai daí construíram um Danúbio alternativo, o Canal do Danúbio que com os seus mais de 17 quilómetros de extensão, ele sim, beija o coração da cidade...



"Canal do Danúbio" - Jean-Charles Forgeronne

O canal confunde-se com o rio, afinal é tudo Danúbio, o grande alimentador de expectativas da metrópole, afinal quem não precisa de um passeio junto ao rio? Talvez até o grande Freud tenha aconselhado a muitos dos seus pacientes um relaxante passeio ao longo das margens do canal, quem sabe? E não deixa de ser curioso que o rio Wien, um modesto riozinho que desagua no Canal do Danúbio, se tenha tornado tão célebre quanto a ponte Zollamtssteg graças a um célebre filme romântico...



"A ponte do filme" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

Muito mais do que um rio...

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXVI


Há três décadas CLÁUDIO MAGRIS viajou ao longo do DANÚBIO, desde a nascente ao delta num percurso de quase três mil quilómetros e em que atravessou a Alemanha, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria, a Croácia, a Sérvia, a Roménia e a Bulgária... Tamanha aventura só poderia resultar numa obra-prima da literatura e que é muito mais do que um livro de viagens, pode ser encarado por esse prisma, sim senhor, mas é também ensaio, roteiro paisagístico e cultural, romance e diário e tudo isso junto constitui um autêntico e maravilhado hino ao segundo maior rio europeu...  



Tal como o Danúbio-rio flui imparável ao longo de vales e planícies, delimitando fronteiras e alimentando e definindo a cultura de diversos povos, também o Danúbio-livro oferece uma fluida e riquíssima viagem pelo centro da Europa e que permite ao leitor uma compreensão da cultura europeia. Além disso, Magris, germanista de formação, demonstra nesta obra toda a sua erudição, ele que para além de um escritor reconhecido e premiado sempre na antecâmara do Nobel é também professor na Universidade de Trieste, a sua cidade Natal...   


"As janelas dão para o Danúbio, assomam sobre o grande rio e sobre as colinas que o sobrepujam, uma paisagem marcada pelos bosques e pelas cúpulas em cebola das igrejas; de Inverno, com o céu frio e as manchas da neve, as suaves curvas dos montes e do rio parecem perder corpo e peso, transformam-se em leves linhas de um desenho, numa elegante melancolia heráldica. Linz, a capital da Áustria Superior, era a cidade que Hitler amava acima de todas as outras e que queria transformar na mais monumental das metrópoles do Danúbio."


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Será o Apocalipse vulcânico?

 

A RAIVA DO VULCÃO - X


O ACORDAR DA VELHA MONTANHA...


Há vinte e seis dias atrás e após décadas de disfarçado sono a velha montanha decidiu acordar e fazer prova de vida, o Cumbre Vieja desatou a expelir cinzas e lava como se não houvesse amanhã e, pensando bem, que amanhã teremos se as forças subterrâneas deste planeta se unirem para um grande apocalipse? Afinal, por estes dias, três vulcões se revoltaram em simultâneo na Europa, nas Canárias, na Sicília e na Islândia, será uma conspiração vulcânica? Por enquanto a importância do fenómeno que ocorre nas Canárias limita-se a um parco minuto no alinhamento dos telejornais e é apresentado como uma curiosidade excêntrica da natureza, um fait-divers para encher tempo de antena e quota de mercado audiovisual... Ainda assim, os rios de lava incandescente embora lentos mas imparáveis queimam tudo à sua frente e já cobriram 600 hectares de terra e aumentaram a ilha em 20 hectares, para além dos mais de 1300 edifícios destruídos, muitos deles casas de habitação, para não falar das mais de 6000 pessoas retiradas da zona de catástrofe... E se pensarmos que os especialistas admitem que a erupção do complexo vulcânico pode durar ainda mais dois meses então é caso para perguntar: até onde pode descambar o fenómeno?



 

Mas acontece que o até agora tímido e desconhecido vulcão das Canárias tem sido desde há muito referenciado como o possível epicentro de uma catástrofe de consequências apocalípticas e que afectaria todo o planeta... E tudo começou há cerca de vinte anos com os estudos de dois cientistas, Stephen Ward e Simon Day, que concluíram  que o futuro colapso do flanco ocidental do Cumbre Vieja poderia causar um mega-tsunami que atingiria o litoral oeste da Europa, ou seja nós, mas também a África e a América, afinal seria toda a vertente sudoeste da ilha estimada em 500 mil milhões de toneladas a colapsarem mar adentro! Podem alguns sossegar porque os peritos do Instituto Vulcanólogo das Canárias têm vindo também há muitos anos a desmentir esse cenário, acham eles impossível que tal tragédia ocorra mas, porque não duvidar, alguém pode mesmo garantir a segurança de um planeta ameaçado?




Yellowstone, inferno disfarçado?


Estão referenciados 20 supervulcões no planeta, sistemas vulcanosos gigantescos que podem a qualquer momento entrar em convulsão e extinguir a vida deste mundo e onde apenas algumas bactérias poderiam sobreviver, afinal outro recomeço, certo? Exemplo célebre é o vulcão de YELLOSTONE, situado no parque nacional homónimo e que se sabe ter uma cratera a rondar os 100 quilómetros de extensão, afinal toda aquela natureza superficial e exuberante do parque disfarça uma caldeira que pode explodir a qualquer momento! As profecias nem sempre se cumprem, felizmente, teorias do fim do mundo fracassadas já se contam às dezenas mas cada vez mais há gente convencida de que o Apocalipse não virá do céu, nem sob a forma de meteorito nem por invasão alienígena, nem sequer será provocada por um vírus mortal arrasador mas sim virá das profundezas, uma revolução vulcânica global... Talvez seja exagero ou ansiedade mas fiquei um pouco preocupado ao saber que no passado sábado desabou o cone norte do Cumbre Vieja, e se tivesse sido o ocidental, como alertou a teoria do mega-tsunami? Aguardemos, mas já agora e como isso pode mesmo vir a acontecer, com vagas de 50 a 100 metros na Madeira e 10 a 20 metros na costa oeste lusitana, já decidi, amanhã não me aproximarei muito da Praia da Areia Branca nem de Vale de Frades...


João Lava

(Vulcanólogo de Valmedo)