sábado, 30 de maio de 2020



EFEMÉRIDE # 76


QUEM QUER CASAR COM A PRINCESINHA?



Recuemos exactamente 358 anos no tempo, estamos em Portsmouth, sul da Inglaterra, à época a grande porta de entrada do reino, é uma terça-feira cinzenta em que ora cai uma borriça ora espreita um efémero e tímido raio de sol, e naquele 30 de Maio de 1662, apesar de tudo, o ambiente é festivo, todos têm motivos para estarem contentes com este negociado casamento entre a princesa D. CATARINA DE BRAGANÇA e o rei CARLOS II DE INGLATERRA: primeiro, os portugueses porque assim veriam reconhecida pelas principais potências europeias a ainda frágil independência da reconquista de 1640 e que além disso ainda receberiam o generoso apoio de 2700 soldados ingleses de elite para defender o Alentejo contra o ainda aceso azedume castelhano, e também os ingleses porque o dote da princesa incluía a oferta da cidade e fortaleza de Tânger e ainda a ilha de Bombaim com todas as suas riquezas! Que belo negócio...



"Catarina" - Peter Lely 



Mas se a coisa terá corrido aparentemente bem para ambos os países acabou por ser uma desgraça  pessoal para a infeliz Catarina, aliás o negro presságio e que lhe terá passado despercebido começou logo na viagem para o altar pois, apesar de viajar com todo o luxo e mordomia a bordo do navio Royal Charles comandado por Edward Montagu, o conde de SANDWICH, e escoltada por 20 barcos de guerra da frota de Sua Majestade, quando chegou ao destino, não só o seu noivo não a esperava no cais como ainda por cima uma infecção na garganta da princesa iria atrasar a cerimónia por mais uma semana... A coisa lá acabou por se realizar com pompa e circunstância mas na seca manhã seguinte logo Catarina se apercebeu do que a esperava, o rei exibia despudoradamente as suas inúmeras amantes que lhe iriam fazer a vida negra, pobre criatura que apesar de todos os vexames e humilhações a que foi sujeita sempre se manteve digna ao lado do seu amado rei! Sim, é curioso, apesar de todas as lágrimas que lhe terá causado e de ter sido um emérito putanheiro, Carlos II, dizem,  sempre foi amado por Catarina, vá lá perceber-se porquê?!





"CATARINA" - Parque das Nações


Os dois grandes pecados de CATARINA foram ser católica e estéril, para além de não conseguir dar um herdeiro ao seu estranho marido que entretanto ia semeando bastardos pelas suas amantes e após três sofridos abortos, a rainha ainda se viu abocanhada pelo veneno protestante duma corte contaminada pelo ódio religioso... Parece que a ala protestante da corte usava todos os truques para denegrir a rainha portuguesa, desde pintá-la como uma mulher feia, roliça e de dentes salientes, exagero porventura pois o rei era exigente até terá gostado dos retratos que recebera de Lisboa e nos quais, eliminadas propositadamente algumas imperfeições como era hábito quando se tratava de arranjar casamento real, eram enaltecidos uma linda cabeleira negra e uns doces olhos pretos que conquistaram Carlos II, embora houvesse um pequeno desgosto ao qual teve que se habituar: a rainha era muito pequenina para o seu gosto... E depois, Catarina já tinha curriculum, desde os 8 anos de idade que os reis de Portugal tentavam a todo o custo arranjar-lhe um bom marido, consta até que esteve quase para desposar Luís XIV! Mas o seu destino acabou por ser mesmo a Inglaterra, onde, apesar de sofrer humilhações e tortura psicológica em terra esquisita e estranha, CATARINA irá brilhar, alimenta-se do seu orgulho lusitano e vai literalmente educar os ingleses a comer, a estar e a ser, pois terá ensinado aqueles atrasados a beber chá como deve ser, em bule e acompanhado de bolos, de preferência pela tardinha, o desde então célebre FIVE'O'CLOCK TEA, eliminará com a conivência do rei a mania de os beefs serem comidos em pratos de ouro e prata, até então sempre ridiculamente frios, substituindo-os por pratos de porcelana, há muito em uso por terras lusitanas... E finalmente, introduz na velha Albion o uso de talheres, é verdade, uma simples colher e um simples garfo, é que até aí eles comiam animalescamente com as mãos! Já para não falar da introdução da marmalade, originalmente uma compota de laranja feita a partir de uma muito milenar receita de Vila Viçosa, terra sua e dos seus avós...
Afinal quem eram os atrasados e incivilizados? Não admira pois, que entre muita azia, haja ainda alguns ingleses que reconheçam o mérito desta infeliz princesa, afinal ela superou as suas dores com sabedoria e mestria, e até estátuas e nome de bairros famosos lhe atribuíram pela América!



João Alembradura

(Historiador de Valmedo) 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

segunda-feira, 25 de maio de 2020



"Não havia maneira de deixar de querer, por isso, um dia, ela disse «até amanhã» e nunca mais voltou. Encontraram-se  trinta e seis anos mais tarde, nos jardins da Gulbenkian. Deram as mãos, como dantes só faziam no cinema - e mesmo assim, só nos que não tinham intervalo, que eram os favoritos - e encaminharam-se para trás do palco do auditório ao ar livre. Há quem diga que ainda lá estão." 


in "Um Amor na Cidade", Inês Pedrosa





João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

domingo, 24 de maio de 2020



A ÁRVORE DA POMBA ROXA...



     
Ontem, finalmente e de uma só cajadada, matei a barriga de misérias e as saudades da minha  secreta LISBOA, desconfinei-me por completo e ao deixar-me perder pelos bairros mais esconsos e mais genuínos da enorme cidade abri o grande baú das pandóricas lembranças e hoje, inevitavelmente, acordei ressacado de tantas memórias visuais, sonoras, olfactivas, orgânicas...
E voltei a viver em todo o seu esplendor aqueles estudantis e maravilhosos finais anos 80 em que sempre que o sábado era livre e o tempo me convidava e para isso bastava apenas ele não ter acordado com ar de chuva, lá descia eu do meu ancestral ninho pelas escadas de grossa e imortal madeira rangente do tempo da monarquia e, antes da medicinal meia-de-leite directa da máquina e do ansiado mil-folhas transbordante de creme na pastelaria Valbom, lá atravessava eu a avenida para comprar o jornal e me dirigir aos jardins suspensos da babilónica Gulbenkian... E se há coisas simples mas maravilhosas que só valorizamos passado muito tempo desperdiçado, no meu caso, é esse  pequeno mas prazenteiro desvio primaveril que fazia pela Miguel Bombarda para me deixar inebriar pela deslumbrante côr dos JACARANDÁS que enxergava da minha pacata janela e que tornavam o meu horizonte púrpura...




"Visão matinal da Valbom" - Jean-Charles Forgeronne



Claro que agora sei que há santuários de JACARANDÁS muito mais imponentes e com árvores muito mais antigas e frondosas, por exemplo as do Parque Eduardo VII ou as de Belém, mas estes são os meus, aqueles que via da minha janela e que aturavam as minhas alucinações e aos quais perguntava como seria o futuro, e ontem, passadas tantas primaveras, lá os encontrei, igualzinhos na mesma exuberância, dizendo-me como antes que tudo há-de correr bem, que os exames não são demónios e que é tudo uma questão de tempo, não do tempo corrido e contado mas sim do tempo que, ainda que pouco, damos aos pequenos pormenores, como é o caso desta extraordinária e esperançosa beleza que nos é proporcionada por um olhar, basta abrir os olhos e desfrutá-la... 
Mas depois vem o desconforto da ignorância, reparo agora que pouco sabia sobre estes meus fiéis companheiros de sonhos e aventuras, também tenho uma boa desculpa, afinal naquele tempo não passava de um jovem ansioso com outras prioridades e preocupações, e vai daí tive hoje uma veneta e de um modo compulsivo pedi encarecida ajuda ao meu grande amigo JOÃO ATEMBORÓ, o célebre naturalista aqui de Valmedo e que me enviou há pouco as seguintes notas que com reverência transcrevo:




"O meu jacarandá" - Jean-Charles Forgeronne


"Esta árvore é originária da América do Sul e a espécie que ornamenta muitos locais de Lisboa, o sul de Portugal  e a Madeira é originária do sul do Brasil, tendo sido trazida pelo Jardim Botânico da Ajuda no início do século XIX, com muitas reservas pois eram poucas as probabilidades de sobrevivência neste clima lisboeta, mas o certo é que a planta se adaptou e hoje, para muitos daqueles que lidam com jardins, ela tornou-se a mais bela das árvores...  O jacarandá detesta o frio, por isso que me desculpem os meus amigos portugueses a norte de Lisboa, se quiserem ver a mais bela das árvores ornamentais terão que vir cá abaixo, pelo menos até à capital do reino mouro. Uma curiosidade preciosa do jacarandá é que ele nunca nos deixa a nu, é que apesar de ser uma árvore de folha caduca ela não chega a estar verdadeiramente nua porque é então, nesse curto período em que não tem uma única folha e que está a acontecer neste preciso momento, que a floração exuberante surge... A enorme beleza que ressalta dos 15 metros de altura da árvore ressalta da copa que faz lembrar uma gota de água invertida, das folhas recompostas por mais de uma centena de folíolos e pelas flores que lembram uma pomba roxa de cauda branca..."



"Pombas Roxas" - João Plástico


E agora fecho os olhos e sinto-me novamente a desbravar caminho através dos eternos patos que são os verdadeiros donos do jardim, juraria mesmo que ainda são os mesmíssimos patos com que me cruzei décadas atrás,  mas volto a sentir-me em harmonia com as cósmicas vibrações do além quando me sento num canto superior do anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian, lendo as desgraças que reinam pelo mundo, tal qual hoje, mas depois, quando entro pelo suplemento das artes do DN adentro a coisa ameniza-se um pouco e depois de feitas com sucesso as palavras cruzadas, quando farto de ler e de olhar para o palco e para o lago tranquilo lá atrás me lanço ao regresso a casa para um almoço tardio que ainda não sei o que vai ser, não resisto, volto a ir pelo caminho mais longo, pelo caminho da sombra dos JACARANDÁS...



João Conde Valbom

(Olisipógrafo de Valmedo)


ESCRITO NA PAREDE - VII







Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

sexta-feira, 22 de maio de 2020



EFEMÉRIDE # 75


OS DIAS CONTADOS DO PARAÍSO...


Onde fica e como é o original e verdadeiro PARAÍSO? Pois parece que após milhares de anos de loucas buscas ainda ninguém o terá encontrado, embora haja algumas aproximações meritórias como é o caso de Sean Connery, ou antes,  Robert Campbell, um cientista e investigador que fugindo da esquizofrénica civilização se refugiou na selva amazónica em busca da cura para a peste do então século XX... A verdade é que já estamos no século XXI, o qual, a meu ver, não difere muito do anterior e ambos nos mostram que a tendência aponta para que tudo vá paulatinamente piorando, e neste especial cenário de estúpida pandemia que hoje virou o mundo do avesso ressalta o óbvio: não estamos nem estaremos nunca a salvo em nenhum lugar e em nenhum tempo, não há um único paraíso, e mesmo que houvesse teria ele os dias contados, existem sim pedaços de paraíso por aí e quando um paraíso deixa de o ser há que encontrar outro!
Desculpem, deixei-me levar pela emoção, pecado menor, espero, mas quem o não cometerá depois de ver ou rever passadas quase três décadas o filme de John McTiernan "THE MEDICIN MAN"? Afinal é disso que estou a falar, do filme que em Portugal levou o título de "Os Últimos Dias do Paraíso", redutor na minha opinião e que talvez seja um dos poucos casos em que a tradução brasileira de títulos de filmes nos levou a melhor, chamaram-lhe eles e com muito mais propósito "O Curandeiro da Selva" porque isso nos transporta para um nível transcendente, para conhecimentos, práticas e mistérios ancestrais que naturalmente escapam à aburguesada e fanfarrona civilização europeia do ocidente... 




in "Público" - 22 de Maio de 1992



Bom, mas está na altura de pôr as ideias em ordem, passam hoje exactamente 38 anos, como é possível interrogo-me eu, que nas páginas interiores do jornal PÚBLICO é feita publicidade numa folha inteira à exibição de "Os Últimos Dias do Paraíso", estreado onze dias antes, no São Jorge, nas Amoreiras da moda e até no saudoso Nimas... E não deixa de ser curioso que, tal como hoje, 22 de Maio, era aquela uma sexta-feira de um ano bissexto! Conjugação astral?
O filme, e é isso que importa aqui, coloca em confronto dois mundos aparentemente inconciliáveis, a natureza e a civilização, dirão uns que a primeira será sempre vítima da segunda, mas também haverá muitos outros que dirão que a segunda pode progredir respeitando a primeira, enfim, no fim tudo se resume a uma questão de consciência e de humanidade, tal qual nas aventuras do nosso herói que tendo por acaso achado a cura para o cancro se apercebe de que a perdeu depois... E agora, que fazer? Recomeçar tudo de novo noutro paraíso, é o que nos diz um filme que, apesar de tudo o que se lhe possa apontar, tem o grande mérito de nos presentear com uma beleza paradisíaca, e que por acaso é real, por enquanto, é a Amazónia... Quanto ao romance e à guerra de sexos, sinceramente é o menos importante, o que conta é mesmo o paraíso e parece que em relação a isso, por mais tempo que nos seja dado, não enxergamos mesmo nada...






João Película

(Cinéfilo de Valmedo)

quarta-feira, 20 de maio de 2020


CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - XXIV



AS IMPERFEIÇÕES DA REALIDADE...





"SERPENTES" - Akiyoshi Kitaoka


Calma, amigo leitor, não é caso para entrar em pânico, está tudo bem consigo, não está a alucinar nem a ser vitima da sua desregrada imaginação e nem sequer padece de nenhuma doença degenerativa dos seus olhos só porque ao olhar com atenção para a imagem acima e deu por si a ter a estranha sensação de que a coisa se mexe, isso é perfeitamente natural porque ela mexe-se mesmo, ou antes, ela não se mexe nada mas o seu cérebro é que lhe transmite a ideia de que ela se mexe! Confuso?
Pois é, o nosso cérebro por vezes prega-nos pequenas e grandes partidas, como se fosse um insensível traidor, mas fá-lo por boas razões, afinal ele é um excepcional equipamento biológico programado para tomar decisões rápidas, grande parte delas instantâneas, com um único objectivo: a sobrevivência! E nessa vital missão que tão bem desempenha não há tempo nem espaço para grandes sentimentalismos...
Se é daqueles que pensa que o mundo que vê pelos seus olhos é uma cópia fiel do mundo real desengane-se, é mentira, aquilo que vemos é uma imagem depurada do ambiente que nos envolve pois o nosso cérebro "limpa" pormenores que não interessam muito à sobrevivência da espécie, tal qual quando vemos numa televisão mal sintonizada uma imagem suja com "grão" e som distorcido e noutra televisão mesmo ao lado e bem sintonizada é-nos apresentada a mesma imagem límpida, a primeira, em bruto, é o mundo real, a segunda, processada, é o "nosso mundo"! Por exemplo, aqueles milhares de grãos de pó que andam pelo ar ao sabor das correntes de ar e que muitas vezes dão boleia a milhares de bicharocos que são invisíveis para nós e que só conseguimos vislumbrar quando, sentados no sofá  ao entardecer, um oblíquo raio de sol nos invade a sala, eles estão sempre à nossa volta, simplesmente passam-nos ao lado porque o cérebro os retira da imagem que nos apresenta para proporcionar uma maior nitidez e profundidade do aspecto do palco da sobrevivência...
E se com o olfacto e com a audição acontece o mesmo, o nosso cérebro "trabalha" e selecciona os cheiros e os sons que nos interessam, é no entanto no processamento da informação óptica que o cérebro mais investe, segundo a segundo vai processando dezenas de milhares de estímulos sensoriais e resolvendo equações para apresentar as melhores opções para nos tornar o mundo seguro... Por isso, o OLHO humano, devido às suas hipersensíveis células da retina, é considerado o maior prodígio do processo evolutivo e tornou-se numa estrutura tão eficiente que até há quem diga que tem a capacidade de detectar um único fotão de luz! E muitos neurocientistas consideram-no mesmo como uma extensão do cérebro e não como um orgão independente...






Tromp l'oiel - Gant - Jean-Charles Forgeronne


Esteja onde estiver, feche os olhos durante uma dezena de segundos, agora abra-os e observe: aquilo que está a ver não é real porque enquanto ajustava o seu olhar ao meio ambiente e sem se aperceber, instantâneamente, o seu cérebro já lhe devolveu uma imagem trabalhada após ter processado  numa região chamada cortex visual toda a informação sobre a cor, a profundidade, o movimento, a escala... E essa imagem é única, é a sua, ninguém mais tem essa visão porque o seu cérebro é único e só seu, uns vêm melhor ao perto, outros não conseguem analisar correctamente o horizonte, outros não têm perspectiva, uns são mais sensíveis a uma cor e outros até daltónicos são, já tinha imaginado? Tantos mundos diferentes que é caso para dizer que cada um tem o seu próprio mundo...
Por isso, tudo está bem consigo se jurar que vê o movimento das "serpentes" inventadas pelo psicólogo japonês Akyioshi Kitaoka ou se ao observar uma pintura trompe l'oeil tiver a sensação de uma profundidade que afinal não existe, afinal não passa de um alerta do seu cérebro que lhe está a dizer para ter cuidado porque, num caso, matematicamente é possível e plausível os círculos rodarem como numa engrenagem e no outro, é desejável e prioritário ver o mais longe possível, ainda que neste caso se possa bater com o nariz na tela ou na parede, não é por acaso que a técnica inventada pelos pintores renascentistas significa  ilusão de óptica ou erro de observação... Afinal, o que é a realidade?




João Abelhudo

(Pesquisador de Valmedo)

domingo, 17 de maio de 2020

"PLAYGIRL in HAIDDRESS"





Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)
"PLAYBOY by MOSS"



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)


TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO - XI


O REINO, O MEU REINO POR UM CORVO!


Construída logo após a sua vitória na batalha de Hastings de 1066 por GUILHERME, o Conquistador normando, a TORRE DE LONDRES é não só uma das mais famosas e lendárias fortalezas do planeta inteiro como carrega desde sempre o estigma de ser um dos sítios mais terríveis e odiados de sempre, e só de ouvir o seu nome é bem capaz de ainda hoje levar o mais tranquilo súbdito de Sua Majestade ao desespero de se lançar da vizinha TOWER BRIDGE para as profundezas do Tamisa para evitar destino mais cruel...
De facto, durante a maior parte dos seus quase mil anos de história e até 1952 a torre serviu de prisão e foi motivo de TERROR para todos aqueles que ofendiam o monarca ou que disso eram acusados, até bastas vezes por uma mera questão de "dá cá aquela palha", sem qualquer julgamento ou piedade aí eram aprisionados, torturados e, claro, a maior parte não sobrevivia porque não aguentava as condições estarrecedoras do local... Mas também foi palco de cruéis execuções de algumas personagens ilustres, como por exemplo Ana Bolena, uma das seis mulheres de Henrique VIII ou Thomas More, filósofo, diplomata, escritor e homem de leis, enfim um dos grandes humanistas do Renascimento, autor da "Utopia" e que por não subscrever a tirânica política do rei acabou decapitado e com a cabeça exposta durante um mês na Tower Bridge! E também há relatos de que quando Jane Grey, a rainha de nove dias apenas e na beleza dos seus quinze anos, aí foi executada, um CORVO foi visto a debicar os olhos da sua cabeça decapitada!




London Tower & Tower Bridge


Tantas foram as atrocidades que não surpreende a revolta dos injustiçados que, ainda que lançados para o além, ainda cá vêm clamar por vingança, daí ser natural o testemunho de muita gente que jura que pela Torre vagueia muita alminha danada do outro mundo, como é o caso do rei HenriqueVI que aparece rezando tal qual o fazia quando foi apunhalado pelas costas pelo seu assassino sucessor, Eduardo IV...
Mas para além dos fantasmas, a TORRE DE LONDRES também é famosa pelos seus CORVOS, não se sabe muito bem porque e quando apareceram, alguém com senso comum disse que os bichos foram atraídos ali para a beira do Tamisa pelo cheiro intenso dos muitos cadáveres inimigos abatidos pela Coroa. Também não se sabe como e de onde surgiu a LENDA mas reza ela que a Torre desabará e o reino acabará quando os CORVOS abandonarem o castelo, o certo é que a coisa é levada muito à letra desde o reinado de Carlos II quando ele em 1660 decreta que deverão existir sempre 6 corvos dentro da Torre, decreto que na boa linha da tradição britânica ainda hoje vigora!  Não há, portanto, país onde os CORVOS sejam mais protegidos do que a Inglaterra, e a própria Rainha, temendo essa terrível conspiração contra o seu reino, se encarrega da preservação das aves sagradas ao atribuir-lhes em exclusivo um RAVENMASTER, que é como quem diz um dedicado mestre tratador... E a primeira coisa que o mestre tem que fazer a um novo exemplar que entre para a companhia dos corvos salvadores da pátria é cortar-lhes as asas para que o pássaro não voe para demasiado longe...



RAVENMASTER

À semelhança do corcunda e sanguinário Ricardo III que em plena batalha se viu sem cavalgadura e em apeada aflição desatou a gritar "UM CAVALO, O MEU REINO POR UM CAVALO!", como genialmente nos relatou o grande  Shakespeare, é caso para gritar hoje em dia "UM CORVO, O REINO POR UM CORVO!"
Mas a Torre, para além dos fantasmas e das aves, ainda alberga outra preciosidade: as fabulosas joías da Coroa Britânica! Foi HENRIQUE III que assim o decidiu, ele que curiosamente foi pela segunda vez coroado no dia 17 de Maio de 1220, passam hoje exactamente 800 anos...



João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

terça-feira, 12 de maio de 2020



EFEMÉRIDE # 74


AFINAL OS NEGROS CORVOS CANTAM!


Passam hoje 28 (!) anos sobre o lançamento do segundo álbum dos BLACK CROWES, "The Southern Harmony and Musical Companion, o sucessor do fabuloso debut "Shake your money maker"... E para mim, são as duas melhores obras da banda dos manos Robinson que em contra-corrente agitou os anos 90 do passado século, tanto em estilo como em volume sonoro... Um remédio para aqueles que como eu tinham saudades do simples, puro e bom rock, inspirado e inspirador...






E se o fim da banda era inevitável devido às desavenças pessoais entre os egos dos irmãos, uma coisa de bom gosto fizeram os corvos negros: quando acabaram em 2015, fizeram-no definitivamente, fugindo àqueles regressos estéreis apenas para ganhar uns cobres para as despesas... É que há coisas que não têm remédio!


                                                                                             Remedy - THE BLACK CROWES



João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

segunda-feira, 11 de maio de 2020



O CORVO E A RAPOSA - II


O VICENTE E A MANHOSA


Numa árvore de copa majestosa 
estava um belo corvo pendurado,
e cá em baixo a raposa manhosa
olhava para o petisco desejado...

Um bem cheiroso pedaço de queijo
Tinha no bico o belo do Vicente,
Disse olá, até lhe mandou um beijo
mas não foi a raposa convincente...

Disse então: "Estou aqui pensando
que se fosses assim tão bom a cantar
como vistosa é a tua figura voando
serias eleita a ave mais bela, sem par!"

Então, sereno, o corvo o petisco engoliu,
"Ó minha velha velhaca que tens a mania, 
desaparece, vai para a puta que te pariu,
a mim não enganas, seja noite seja dia..." 


João Fábula, (Contador de Histórias de Valmedo)



Esta é uma versão recente e actualizada da célebre fábula do corvo e da raposa e que difere bastante das versões anteriores porque quer ESOPO, que a inventou, quer LA FONTAINE, que a recriou passados muitos séculos, quer ainda BOCAGE que depois dela fez belíssima tradução, todos eles foram vítimas do seu tempo, do preconceito e da falta de conhecimento científico sobre as qualidades do CORVO... De facto, desde tempos ancestrais e até há pouco tempo que o corvo carregava às costas o estigma da sua brilhante e assustadora cor negra e do seu rouco grasnar que parece soar desde as profundezas, simbolizando para muitas culturas a ave agourenta, a morte, o azar, valeu-lhe mesmo assim a simpatia de outras gentes que lhe associaram a astúcia, a cura, a sabedoria e a esperança, ou seja, é um bicho para o qual não há meio termo, ou se odeia ou se idolatra...
Pois bem, hoje em dia nos meandros da comunidade científica os corvídeos são conhecidos como  os "macacos com penas" tais são a sua inteligência e poder de comunicação, por exemplo, em 2017, cientistas de uma universidade sueca puseram à prova um grupo de corvos que perante armadilhas e desafios demonstraram grande capacidade de planeamento e de escolha da melhor estratégia para alcançar o sucesso! Os corvos, para além de conseguirem fabricar ferramentas com três paus, conseguem prever o que irá acontecer no futuro se adoptarem um determinado comportamento e não se deixam seduzir facilmente: os cientistas colocaram-lhes à frente uma caixa recheada de alimentos e iam-lhes apresentando vários utensílios, um que eles descobriram que abria a caixa, outros que não tinham utilidade e ainda outros que garantiam um pequeno prémio imediato: pois bem, depois de analisarem a situação, eles recusavam o prémio imediato e preferiam esperar pela "chave" do grande prémio, denotando uma inteligência superior à de uma criança de 4 anos de idade, o que não é estranho se atentarmos que os corvos possuem um cérebro extraordinariamente grande para o seu tamanho!




"Vicente" - Jean-Charles Forgeronne


Além disso, os CORVOS possuem uma prodigiosa memória, conseguindo lembrar-se ao fim de um mês das pessoas que foram justas ou injustas com eles, e essa é outra característica fantástica que possuem, a da justiça e da solidariedade, se numa interacção algum companheiro de experiência é prejudicado eles recusam-se a cooperar! Para além disso, partilham informações sobre predadores e outras ameaças e entreajudam-se em caso de grande ameaça...
Mas como mostrou o meu colega DAVID AATTENBOROUGH num documentário da BBC, fantástica foi a estratégia usada por um bando de gralhas-pretas, primas dos corvos, que num cruzamento na cidade japonesa de Akita se penduravam nos fios telefónicos à espera que o semáforo  ficasse vermelho para os carros pararem; então, largavam as nozes que traziam no bico e ficavam à espera que, quando o sinal ficasse verde, ao arrancarem os carros lhes passassem por cima... Quando  o sinal ficava vermelho novamente, lá desciam as aves para recolher o miolo de noz!
E agora, ainda pensarão Esopo, La Fontaine e Bocage que a raposa é mais inteligente que o corvo?




Gralhas inteligentes                                             
                                                                     



João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)



"Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente."

in BICHOS, Miguel Torga, 1940



ESOPO, LA FONTAINEBOCAGE...



O CORVO E A RAPOSA

É fama que estava o CORVO
Sobre uma árvore pousado,
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a RAPOSA matreira,
A qual, pouco mais ou menos,
Lhe falou desta maneira:

«Bons dias meu lindo CORVO;
És glória desta espessura;
És outra fénix, se acaso
Tens a voz como figura!»

A tais palavras o CORVO
Com louca, estranha afoiteza,
Por mostrar que é bom solfista
Abre o bico, e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho,
E diz: «Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem desta para teu uso.»
Rosna então consigo o CORVO,
Envergonhado e confuso:

«Velhaca! Deixou-me em branco,
Fui tolo em fiar-me dela;
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.»


(Tradução de BOCAGE de uma recriação por LA FONTAINE de uma fábula creditada a ESOPO, escravo e escritor contador de histórias que viveu na Grécia nos anos 600 a.C...)



João Vírgula

(Leitor de Valmedo)


LIVROS 5 ESTRELAS  - XXI


NOÉ, OS BICHOS E O CORVO...




O meu velhinho exemplar dos BICHOS de MIGUEL TORGA acusa há muito as dores do tempo mas, embora pintalgado de sardas castanhas infligidas por longos invernos, apesar de a capa ameçar descolar e até de algumas folhas se irem aguentando já debilmente unidas pela frágil cozedura de uma assustadoramente fina linha, ainda está inteiro e orgulhoso ali perdido entre muitos outros companheiros muito mais modernos, vistosos nas suas capas coloridas e impressos em papel de muito melhor qualidade... Talvez por isso os meus BICHOS tenha um valor especial, afinal faz parte da 8ª edição de 1977, comprado porque a escola assim o obrigou, mas ainda bem, e afinal já tem a idade de um homem maduro e já passou por muita coisa neste mundo, desde logo no nosso primeiro dia de convivência em que à falta de corta-papéis me lembro de o torturar com uma navalha porque todas as folhas vinham unidas quatro a quatro e por isso ainda hoje alguns dentes de papel espreitam das folhas serradas, já para não falar dos rabiscos e gatafunhos fruto de uma juventude inquieta e rebelde que tornam este livro um objecto único...








Em BICHOS existem histórias extraordinárias de muitos bichos, entre outros Nero, o cão, Mago, o gato, Morgado, o burro, Bambo, o sapo, Tenório, o galo ou Farrusco, o melro, mas é no último conto que Miguel Torga deslumbra com a melhor prosa da obra ao relatar as aventuras de VICENTE, o CORVO, claro, o único animal da Arca de Noé que não tendo aceitado o injusto castigo divino decide revoltar-se e fugir, preferindo morrer em diluviana liberdade do que viver subjugado pela degradante tirania divina...



"Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo."










João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

domingo, 10 de maio de 2020



LENDAS E NARRATIVAS - XI


O GAGO, O MÁRTIR E O CORVO...


"São Vicente na cruz em aspa" -  Nuno Gonçalves
Longa foi a viagem de VICENTE, coitado, segundo a lenda a sua saga durou quase nove séculos, desde a sua morte em 304 até se tornar padroeiro da cidade de Lisboa em 1173! O aragonês natural de Huesca morreu mártir e moço às mãos dos Romanos de forma bastante inglória, e arrisco-me a dizer devido à sua ingenuidade própria da idade, era ele diácono aprendiz de ofício na cidade de Valência ao serviço de um tal bispo Valério quando este, de tão  GAGO ser e de não se lhe perceber o que dizia entregou a VICENTE  o papel de pregador e divulgador das suas ideias, o bispo pensava e ditava mas não falava, o pregador falava e talvez sem pensar muito no que dizia... E o rapaz terá desempenhado de tal forma a função, adivinha-se que com êxtase e arrebatamento, que as suas palavras  tiveram o efeito de terem sido ambos chamados para interrogatório pelo governador romano às ordens do imperador Diocleciano!  Vai daí, o perverso bispo ter-se-á fechado novamente em copas e VICENTE, fiando-se talvez na virgem e ignorando que os romanos não eram para brincadeiras, continuou a assumir as responsabilidades do discurso e falando pelo seu chefe, e se no princípio era o verbo no fim acabou o bispo por ter sido desterrado, leve castigo porque ainda gaguejou mais alguns anos, sorte bem diferente e injusta teve o diácono MÁRTIR que acabou por não resistir aos tratamentos a que foi sujeito: picado com garfos de ferro, deitado sobre brasas, flagelado num cavalo de estiramento e rasgado com ganchos de ferro sobre uma cruz em aspa...
Continua a lenda que o despedaçado VICENTE  foi lançado no campo para ser devorado pelas feras mas jurou quem viu que um CORVO protegeu o cadáver dos ataques de lobos, abutres e outras criaturas maléficas, e claro aquela bendita ave só podia ser um anjo assim disfarçado! Mas não são só os santos que são teimosos, os romanos também o eram, e então para resolver a questão de vez, o cadáver é atirado ao mar numa praia de Valência com uma pedra de moinho atada ao pescoço para que fosse ao fundo e para que os peixes se banqueteassem mas, milagrosamente como convém, ou o serviço foi mal feito, ou o calhau se transformou em esferovite ou por forças inatingíveis aos olhos de um ser humano pecador, fosse pelo que fosse VICENTE  acabou por boiar e dar à praia, sendo recolhido por cristãos de boa alma e sepultado em segredo, tornando-se obviamente alvo de devoção e peregrinação... E assim as coisas continuaram durante 400 anos até os muçulmanos terem chegado àquela região e então os cristãos, receando a profanação do santuário, transportam os restos mortais do santo dali para fora e depois de muito tempo à deriva pelo mar chegam ao promontório de Sagres, onde os depositaram num sítio conhecido como PONTAL DOS CORVOS e bem perto do cabo que se passaria a chamar Cabo de São Vicente...  E ali repousaria o mártir por mais 400 anos...







Vinte anos depois de ter conquistado LISBOA, D. AFONSO HENRIQUES, tendo-lhe chegado aos ouvidos que as relíquias de Vicente de Saragoça estavam em perigo de profanação por parte dos muçulmanos algarvios, decide enviar uma nau para resgatar o santo e é então que a lenda sobe de tom, durante toda a viagem pela Costa Vicentina acima dois  CORVOS  acompanharam o féretro até à capital do reino, onde terá chegado a 15 de Setembro de 1173! No dia seguinte, os restos de SÃO VICENTE entraram na Sé de Lisboa, a sua última morada até agora que isto nunca se sabe, tornando-se o padroeiro oficial da cidade, e são também lendários os corvos que habitam as torres catedrais, descendentes daqueles dois aventureiros que velaram pelo santo...  Mas não foi fácil na altura a Lisboa tornar-se a cidade conhecida como a legítima depositária das relíquias do santo, muitas outras desde o sul de França, passando pela Itália ou pelo sul da Grécia reclamavam possuir o corpo de VICENTE, ou pelo menos parte dele, como foi o caso de Bari que dizia possuir um braço, coisa normal naquele longínquo século XII em que era intensa e fervorosa a descoberta de corpos de santos e relíquias com o objectivo de santificar lugares e promover a peregrinação e o prestígio de determinadas regiões, Braga e Compostela são disso exemplo e parece que foram várias as contendas pela posse de coisas tão magníficas como unhas ou cabelos de santos! Felizmente que não houve guerra por causa disso, mas nunca fiando, muito menos na virgem como fez o coitado do VICENTE...  E desde aí e para sempre LISBOA será  o reino dos CORVOS...


João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

sexta-feira, 8 de maio de 2020

quinta-feira, 7 de maio de 2020



A AVE DE MAU AGOIRO...



- Que fazem aqui, canalha? - tal qual assim naquela voz rouca e tenebrosa nos recebeu o imponente Augusto do carro de praça...
E eu, que não gostava nada da criatura porque sempre que ele se cruzava com algum gaiato numa rua da aldeia desatava a fazer caretas a um ritmo diabólico e ainda hoje consigo ver aquela bocarra aberta que mostrava uns sujos e enormes dentes lupinos e que tinha o condão de me dar corda às pernas ligeiras para fugir dali a sete pés!  Brincadeira, diziam-me uns, até é engraçado, lançavam outros, tens medo daquilo? perguntavam-me todos a rir, o certo é que encontrar o homem das caretas era um pesadelo para mim... Até a minha avó me fazia lembrar que ele não era assim tão má pessoa quanto isso e que eu deveria até estar-lhe grato porque se não fosse ele e o seu carro de praça anos antes a  altas horas da noite a servir de ambulância não estaria agora aqui a contar estas aventuras devido a uma apendicite quase peritonite, mas mesmo assim isso não me sossegava... E a culpa toda era do Márito dos Plásticos, alma danada e orfã que vivia com o avô negociante dos antepassados pré-históricos dos recipientes tupperwarerianos, era um deleite ver passar o velhote com ar achinesado na sua motoreta ensurdecedora de dois lugares a caminho das feiras, com o Márito à pendura e rebocando os plastificados utensílios ainda estranhos numa era em que no país profundo ainda imperavam os tachos de barro e os fornos a lenha... Dias antes tinha-me ele confessado:
  - Sabes, o Augusto do carro de praça tem um CORVO numa gaiola!
  - Um corvo? - repeti apesar de ter ouvido muito bem logo à primeira...
  - Sim, não acreditas? - e sem dar tempo para resposta - Fui lá com o meu avô entregar-lhe uma caixa daquelas que ele vende e ele mostrou-nos o bicho!









E o Márito, que de tão inocente e puro que era não sabia inventar nem mentir, ali estava dois passos à minha frente a encarar o terrível homem das caretas, vínhamos nós de fisga na mão após uma excursão exploratória pelos campos primaveris e ao passar pelo barraco do Augusto até me arrepiei quando vejo o meu amigo a bater no portão de lata e virando-se para trás encarou-me e disse:
  - Não é tarde nem é cedo, vamos ver o CORVO!
  - Encontrei-o lá em baixo ao pé do ribeiro, muito quieto e encolhido... Tem uma asa partida... Se ele recuperar e conseguir voar hei-de libertá-lo!
E para espanto meu, a voz do caramunheiro até me soou humana enquanto ia olhando de boca aberta para a enorme gaiola onde o corvídeo, assustadoramente negro e brilhante e de asa à banda ia saltitando e mirando-nos por um olho escuro como o bréu...
  - Como se chama ele? - ouve-se então o Márito.
  - VICENTE!
  - Porquê? - saíu-me baixinho da boca sem eu o querer.. E até fiquei vaidoso por essa coragem...
  - Então? VICENTE é nome de CORVO, todos os corvos se chamam VICENTE... E que espertos são estes bichos, não se deixam enganar, não...Mas daí a serem o Diabo, isso não!
E foi aí que cintilou a primeira faísca de simpatia que senti pelo homem das caretas, alguém que gostava assim tanto das criaturas da natureza e cuidava delas não podia ser um monstro e já muitas vezes tinha eu ouvido contado pelas velhas à braseira nas noites invernais que havia muitos bichos maléficos por aí, desde o gato preto ao corvo que era para muitos a reencarnação das almas condenadas e que às vezes representava o próprio Diabo! E quando um corvo grasnava à noite isso significava que era a alma de uma pessoa assassinada em busca de auxílio... Ave de mau agoiro!
E depois, quando já estávamos para sair dali, o Vicente do Augusto falou para meu arrepio:
   - "Eusébio"
   - É, ele também é do Benfica....
E depois o Vicente desata a fazer um estranho barulho que me pareceu familiar mas que não estava a identificar...
   - "Vrrrrrumm  uummmmmm vrum"
   - É o barulho do meu carro... - sussurrou o Augusto, de olho preto brilhante e suave sorriso na carranca...
   - Sabes, senti uma coisa muito esquisita, um arrepio, é como se aquele corvo soubesse o teu destino, tás a ver? - disse-me o Márito já na rua crepuscular...
E eu, que nem dei resposta de tão impressionado que ia, desde esse dia aprendi que a primeira impressão pode ser muito errada e hoje passado tanto tempo ainda penso no Márito e naquele bicho negro de mau agoiro, é que passado pouco tempo desde aquele dia o meu amigo se enforcaria numa madrugada de domingo, na oliveira mais recatada do adro da igreja, todo vestido de negro...



João Pena Seca

(Escritor de Valmedo)

terça-feira, 5 de maio de 2020



HOJE É O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA TUA VIDA...



"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida!" - alertava-nos há mais de quarenta anos Sérgio Godinho, emérito poeta cantautor com laivos de predestinação... De facto, hoje é um dia deveras especial como são todos os primeiros dias em que algo se começa e nunca se sabe como a coisa irá acabar, ele é o primeiro dia disto, ele é o primeiro dia daquilo, a vida se encarregará depois de dizer quais os primeiros dias que terão futuro e no fim se farão as contas, como dirá o mais cauteloso e menos corajoso, mas caramba, que alegria estar vivo para assistir ao primeiro  DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA!
E se "Minha Pátria é minha Língua", como disse Caetano Veloso, então enquanto houver mundo, da Europa à América, da Ásia à África, haverá português e Portugal, centenas de milhões de portugueses falantes farão com que este primeiro dia se replique no décimo, no centésimo, no milésimo dia da língua de Camões... E que melhor augúrio para esta celebração do que acontecer exactamente num período conturbado e de incertezas, de pandemia e desconfiança, de injustiça e de miséria, é que a isso já nós estamos habituados e a língua portuguesa, que a esse fado lusitano se adaptou e que com ele foi evoluindo, pode unir e salvar através das suas milhentas palavras de esperança, desde logo a SAUDADE da vida normal por que tanto ansiamos, e por mais que tenhamos de subir e voltar a subir a montanha com a pedra às costas haveremos de conseguir e nada melhor do que começar então embalados pelo mestre MIGUEL TORGA:



  "SÍSIFO"


"Recomeça...

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
o logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...




João Portugal

(Linguísta de Valmedo)

sábado, 2 de maio de 2020



ESCRITO NA PAREDE - VI


QUANDO A  CURIOSIDADE MATOU O DEVER...







Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)