quinta-feira, 27 de dezembro de 2018



PICUS - Victor Fresus


Homenagem a quem (de vez em quando) se aborrece com as incongruências deste mundo cão...



João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO - V
(PARTE II)


UM PORCO COM BATON CONTINUA A SER UM PORCO*...


Tendo-se tornado global e poderosa nas últimas décadas, a PETA decidiu tornar-se agora também perigosa, não só para os próprios animais como para as pessoas... Não contente com a influência que exerce sobre as condições da vida animal, por um lado, e sobre os hábitos alimentares dos humanos, por outro, (o VEGANISMO é um dos pilares da sua doutrina) a PETA decidiu agora atacar em força o campo da linguagem e expressão cultural das sociedades, decretando uma perseguição à boa maneira inquisitorial a toda e qualquer expressão que aluda a animais... E, de facto, quem não sabe o valor simbólico de uma parábola torna-se um fanático, um terrorista da liberdade de expressão e um inimigo da condição humana... A estupidez, de facto, parece não ter limites e prova disso é esta atitude ridícula, aparentemente contagiosa porque já chegou a Portugal através do PAN que, esperemos, não passe disso mesmo, uma intenção descabida e que se espera que não vingue... Que se concorde com a não matança de animais para o fabrico de casacos de pele, tudo bem, que se concorde com a luta em prol de uma maior humanização nos tratos com animais, melhor ainda, que se aceite o direito de alguns não comerem carne, tudo bem, agora a todos deve ser dada a liberdade de existir, não se deverá aceitar nunca que alguém queira obrigar outros a ser vegan ou outra coisa qualquer restritiva, e muito menos que alguém queira interferir com a linguagem e com o património cultural da humanidade, do qual, aliás, os animais não só fazem parte como têm lugar de destaque desde a pré-história... Que mundo horrível seria aquele sem as fábulas de Lafontaine, sem os contos de Hans Christian Andersen, sem as lendas populares, sem os provérbios...
Mas felizmente adágios populares existem que provam serem cada vez mais necessários no dia-a-dia, cada vez mais se revela neles a sabedoria popular e um deles - vozes de burro não chegam ao céu - cai aqui como sopa no mel, mas porque já a formiga tem catarro em demasia é fundamental agarrar o touro pelos cornos e assim matar os dois coelhos (Peta e Pan) de uma cajadada só... E se é verdade que cão que ladra não morde e que enquanto eles ladram a  caravana vai passando, gato escaldado de água fria tem medo e para cortar o mal pela raíz há que afogar bem o ganso...









(* ditado popular americano proferido por Barak Obama na campanha eleitoral em 2008)



João Portugal

(Linguista de Valmedo)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018



TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO - V
(PARTE I)

VOZES BURRAS NÃO CHEGAM AO CÉU...


Fundada em 1980 e com o seu quartel-general instalado em Norfolk, Virgínia, no sul dessa esquizofrénica nação que dá pelo nome de USA (onde mais poderia ser?), a PETA - People for the Ethical Treatment of Animals - em português, Pessoas para o Tratamento Ético dos Animais, com os seus mais de 6 milhões de membros e com os seus muitos milhões de dólares angariados é a mais famosa e poderosa ONG do mundo, com um poder de influência mediática brutal não só nas sociedades ocidentais como também noutras organizações similares, que o diga o "nosso" PAN, pelos vistos um fiel e dócil seguidor das normas petianas... 




PETA 'killed more than 95 per cent of adoptable dogs and cats in its care last year' shocking new report says

  • In 2011, government report obtained by nonprofit organization claims 1,911 animals killed
  • Only 34 adopted in same time span
in Mail on Line



Mas também, recentemente, vieram a lume na imprensa outros números relacionados com a actividade desta famigerada organização que provocam, pela sua estranheza e envergadura, um cataclismo de polémica e indignação em relação à sua actividade:

   - em 2011, a PETA, dos animais ao seu encargo, matou 1911 e apenas encaminhou 34 para adopção;

    - no ano seguinte, 2012, a PETA  matou um pouquinho menos, 1647, mas também diminuiram os exemplares adoptados, apenas 19!


Ou seja, em dois anos de actividade, foram mortos 3558 animais e apenas "salvos" para adopção 53! Que raio, é obra para uma entidade tão rica e poderosa que consegue acabar com a vida de mais de 90% dos animais que recolhe e convém referir que estes números foram comunicados pela própria organização às entidades oficiais americanas, não foram inventados por nenhum jornalista curioso e sem escrúpulos!? Aguarda-se, portanto, com bastante curiosidade e maior preocupação ainda, a eventual revelação e actualização dos números desde então até hoje...







Até lá, continuaremos decerto a assistir às mediáticas manifestações das falanges da PETA, entre polémica, sensacionalismo e acusações de sexismo à mistura, mas aí, há que que lhes dar o mérito e o bom gosto, é mais gratificante assistir a desfiles em pele natural ou vestidos de folhas de alface do que ver modelos a ostentar casacos de pele de raposa...






João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

terça-feira, 25 de dezembro de 2018



"É errado lutar pela erradicação da estupidez da face deste mundo cão, ela será sempre útil e necessária como referência para que, se não formos demasiado estúpidos, percebermos se estamos ou não do lado certo..."


Yuehan Kaluosi

(Filósofo Taoísta de Valmedo)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018



BICHOS, BICHEZAS E IMITAÇÕES...


    - JAAAAAMEESSSSSSSSSS....?
Perante este grito, meio assustador e meio desesperado, como pode um mortal cão a ele reagir? Com estranheza, pondo aquele ar aparvalhado de que não percebemos patavina do que se está a passar? Com um semblante de culpabilidade, olhos no chão e orelhas caídas, assumindo como legítimo o raspanete que se adivinhava? Ou com um corajoso enfrentamento da acusação, olhos nos olhos, consciente de que qualquer que fosse a causa de tamanho escarcéu tudo se esclareceria com a cabal absolvição deste vosso amigo? 
A verdade, amigos caninos, é que nem tive tempo para pensar e agora, com o J.C de ar pouco amigo pela frente, não me ocorria nada que eu tivesse feito de errado que levasse a esta situação, não tinha urinado fora do sítio, não tinha voltado a roubar maçãs da fruteira, há muito tempo que não roía o meu tapete de dormir, nada me ocorria...





Presépio de Valmedo



Até que vi aquela coisita na mão estendida com ar acusador...
  - O que é isto, James?
Aquilo, amigos caninos, era um bichito parvo que ornamentava uma coisa a que as pessoas chamam de PRESÉPIO...
   - O que é que te deu para mutilares a pobre da ovelhinha, seu cão safado? - e aqueles olhos arregalados para mim metiam medo, podem crer... - Olha só, agora nem se põe em pé, coitadinha, só com duas patas...
Já vos falei, tempos atrás, sobre o meu fascínio por pequenas criaturas que invadem o meu território privado de Valmedo, ele são grilos, ele são caracóis, pequenos e estúpidos pássaros, lesmas, sei lá... Mas a coisa acaba por ser divertida, menos pata, mais patada, asa fora ou antena desligada, gosto de brincar com os bichos, adoro dar-lhes um verdadeiro safanão e dá-me gozo ver a sua reacção, acho que também eles gostam da brincadeira porque senão dariam mais luta, não acham?
   - Já sabes que vais ter castigo, certo? E da próxima, podes crer que te denuncio à PETA ou ao PAN!








A verdade, meus amigos caninos, é que até tive paciência de sobra para com aquela minúscula criatura, ela olhava para mim com ar ingénuo mas provocador, naquela de me desafiar; "Vamos brincar?", ouvia-a eu dizer, e como bem sabem eu não resisto a uma brincadeira, vai daí abocanho-a e desato a correr porta fora! Mas a parva não se agarrou bem e vai de se estatelar no quintal, duas patas fracturadas e equimoses pelo corpo todo... Quem a mandou ser tão imprevidente? Como bem vêem, sou inocente nesta história, apenas queria proporcionar uns bons momentos à pobre da ovelhinha... E depois não percebo o chinfrim armado cá em casa, alturas houve em que não fui tão recriminado por alguns incidentes com outros bichos mas este, ainda por cima com um animalzinho que não se mexia, não falava nem dava troco, leva-me a pensar que os humanóides são mesmo complicados, afinal que importância têm duas patas a menos num bicharoco que nem um centímetro andava? E ainda estou para perceber a importância que as pessoas dão a esta coisa esquisita a que chamam de presépio, talvez um dia consiga perceber....




Ouvindo o raspanete

James

(Cão de Valmedo)




LENDAS E NARRATIVAS - VI


O PIRIPÍRI IRRESISTÍVEL...



Por Manaus, norte do Brasil, capital e coração da Amazónia, reinava e ainda reina PIRIPÍRI, um herói dos índios manaus, um autêntico deus... Reza a lenda que, sempre que aparecia aos indígenas, a mítica criatura exalava um desconcertante perfume que atraía tudo o que era bicho vivo, em especial as mulheres... No entanto, inexplicávelmente, talvez por timidez, arrisco eu, o herói galã não retribuía a atracção feminina e sempre que as fêmeas, loucamente apaixonadas, tentavam desesperadamente lançar-se nos seus braços, Piripíri transformava-se em fumo e desaparecia! Mas é sabido que as mulheres não desistem facilmente, quando uma coisa lhes entra pela cabeça adentro não há volta a dar e vai daí, certo e luminoso dia, astutamente, conseguiram aprisioná-lo com uma rede...








Mas o perfume irresistível de Piripíri revelaria então outra faceta, era também um poderoso sonorífero e logo todo aquele mulherio caíu nos braços de Morfeu. Mas, talvez com remorsos, o nosso estranho herói quis presenteá-las: deixou-lhes uma curiosa e desconhecida planta: a malagueta...  Os índios manaus não se fizeram rogados e cultivaram-na a preceito, começando por aplicá-la no corpo das suas belas mulheres, as quais se tornavam ainda mais belas e irresistíveis aos olhos dos homens, facto que ainda se revela hoje e que afamou a planta de afrodisíaca...
E é sabido que a vida, já bela por si, pode ganhar ainda mais beleza com um pouco de picante...







João Ratão

(Chef de Valmedo)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018



ALMONDAVIEIROS




"Incerto o pão na sua praia, só certa a morte no mar que os leva, eles partem. Da Vieira-de -Leiria vêm ao Ribatejo. Aqui labutam. Alguns voltam ainda roídos das saudades do seu mar. Muitos ficam. AVIEIROS lhe chamam na borda-de-água."    in  "Avieiros", Alves Redol.







Na sua obra de eleição, dada à luz em 1942, Alves Redol chamou a estes ciganos do rio AVIEIROS, embora a sua origem não fosse exclusivamente da Vieira, eles também vinham de Ílhavo, Murtosa, Ovar ou Torreira, chegavam escorraçados daquela inclemente orla marítima em busca de sustento no tranquilo Tejo pois a frota piscatória atlântica, então já saturada de mão de obra, não era futuro...
Foi uma das maiores vagas migratórias lusitanas, a desta gente que decidiu viver quase exclusivamente no rio, contra a corrente... Ao princípio, ainda iam e vinham, Inverno no Tejo e Verão na costa, mas depois, cansados de tanto vaivém, aassentaram arraiais, que é como quem diz, barracas de madeira assentes em estacas, as PALAFITAS, pintadas de cores garridas para enganar a dureza dos dias...




Âncora e leme do último varino do rio Almonda


Os rios, Tejo e Almonda, muitas vezes não chegavam para tudo, havia que complementar o sustento nas safras de melão, milho ou tomate, a vida era dura! Mas deixaram um corajoso e ímpar testemunho cultural...




Azinhaga


João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Almonda - Lapas


Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)


FOTOBIOGRAFIA DE UM RIO - III


O ALMONDA


Tal qual as memórias, os rios não se devem medir nem aos palmos nem a léguas, desse modo o ALMONDA seria um pequeno rio, ridículo até nos seus míseros 30 quilómetros de viagem desde a Serra de Aire até ao Tejo, mas, se a sua medição for feita em beleza, sentimentos, afectos, lembranças e para quem conhece os milenares segredos que as suas margens encerram, então ele revela-se um rio grandioso...





Nascente do Almonda


O encantamento do Almonda começa logo pela sua nascente numa gruta com 15 Km de comprimento conhecido, escondida sob uma uma falésia da serra, mas que, dizem certos entendidos estudiosos do fabuloso carso, deve ser muito maior e deve comunicar com o Algar do Pena e outras grutas,  incluindo a da nascente do Alviela!  Este fabuloso mundo subterrâneo seduziu o espiríto aventureiro deste vosso curioso escriba de tal forma que, muito antes da gruta ter sido declarada Imóvel de Interesse Público em 1993 e da construção do seu Centro de Interpretação, em Vale da Serra, era ainda moço imberbe, se armou de coragem e na companhia do destemido Vítor da Zibreira desafiou as entranhas do monstro, apenas equipados duma pequena mochila com mantimentos, um cordel para marcar o percurso da descida e uma lanterna de bolso, numa operação arriscada que hoje poria em pé os cabelos de qualquer espeleólogo ou familiar vigilante... Felizmente tudo correu bem e entre rastejamentos, saltos, deslizamentos e alguma claustrofia ficou uma esperiência memorável para o resto da vida...




O Almonda nas Lapas


O Almonda volta a encontrar grutas ao passar-lhes por cima na aldeia de LAPAS, que como o nome indica, se construiu sobre terra esburacada pelo rio e pelos romanos... Pouco mais à frente, o rio serpenteia pela cidade de Torres Novas por entre chorões, laranjeiras, jardins e sob a vigilância prazenteira do imponente castelo. Por aqui, entre a Ponte do Raro e o Açude Real, evocam-se memórias das primeiras experiências marítimas a bordo de barcos a remos e, nos miradouros do jardim, abençoadas sobre as ramagens dos salgueiros, as primeiras abordagens românticas...




O Almonda em Torres Novas





Recanto torrejano

Memórias exuberantes do passado são também as das ciclópicas cheias, outrora recorrentes quando se abriam as comportas do céu, era inebriante observar a força do rio quase a galgar a Ponte do Raro enquanto que junto à antiga central eléctrica, alimentada pela corrente, o turbilhão do remoinho era tal que levantava névoa digna das maiores cataratas...
Nessas ocasiões de deslumbramento pela força da natureza, o percurso a pé desde a Garagem dos Claras até à escola demorava o dobro ou triplo do tempo e por mais de uma vez fez-me chegar atrasado a certas aulas, enquanto no sentido inverso fez-me perder uma vez ou outra a camioneta certa, obrigando-me a esperar pela seguinte.
Depois, por recantos e mais recantos, o rio, saindo da cidade, estreita e amansa em direcção à planície, não sem antes, com pompa e na circunstância certa, galgar as baixas margens e dar vida ao Paúl do Boquilobo, um santuário da vida selvagem... 




Depois é apenas um saltinho até à Azinhaga, onde o Almonda faz a fronteira entre casario e planície num cenário de contemplação e pesca, para, passadas poucas centenas de metros e depois de muitas histórias deixadas pelo caminho, abraçar o Tejo... 



O Almonda na Azinhaga


João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)

sábado, 15 de dezembro de 2018



LIVROS 5 ESTRELAS - VI


AS MEMÓRIAS NÃO SE MEDEM...



"À aldeia chamam-lhe AZINHAGA, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o ALMONDA, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o TEJO, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada."  

Assim começou JOSÉ SARAMAGO  "As Pequenas Memórias", que de pequeno nada têm, antes pelo contrário são grandes em tudo, na genuinidade, no relato social, no carácter histórico, nos afectos... O título da obra assim ficou porque são memórias de quando foi pequeno mas, numa primeira instância, o autor teve a tentação de chamar a essas lembranças "O Livro das Tentações".



Interrogo-me: que livro de Saramago não é 5 estrelas? Porque  escolhi este? O leitor merece a resposta: tal como Saramago, embora décadas mais tarde, também fui marcado pelo Almonda, pelo Ribatejo, pelas pessoas humildes que tudo fizeram e ainda fazem para sobreviver a uma miséria congénita, pela dignidade, pelo sonho...
Mas o que mais me liga a esta obra extraordinária é a coragem, a coragem de alguém que, de livre arbítrio, se abre ao mundo nas suas fragilidades e nas suas misérias (que muitos outros esconderiam por vergonha ou outra qualquer razão) mas de peito aberto e ufano; estas pequenas grandes memórias estão pejadas de deliciosos incidentes e histórias, desde os medos mais profundos, às primeiras aventuras namoradeiras, ao deslumbramento pelo mundo, aos desejos mais secretos, de tudo um pouco por ali desagua... Este prémio Nobel, desassombradamente, por exemplo recorda noites em que dormiu no chão e as baratas lhe passavem por cima, lembra que matou a fome com pão de milho bolorento ou que ainda se embasbacou com o bácoro mais mimoso que os avós iam buscar à pocilga para se aquecerem nele na cama de família quando o frio era tanto que a água dos cântaros gelava dentro de casa... E depois, tal qual Saramago, também, enquanto pequeno moço, desfrutei da liberdade da descoberta, sair porta fora sem limites nem exigências, beber o horizonte até onde fosse possível, pelos restolhos, pelos ribeiros, pelas árvores, pelos poços, pelo rio...

Fundação Saramago - Azinhaga




"Então digo à minha avó: «Avó, vou dar por aí uma volta.» Ela diz «Vai, vai», mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio para o campo. Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim,  na direcção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paúl do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso."






O rio de Saramago também foi o meu rio, a paisagem também era a minha, a infância também se assemelha em deslumbramento, vidas à parte, estas também são memórias minhas, eu também sou saramago, alcunha que virou gente grande, memórias cinco estrelas...




Almonda - Paúl do Boquilobo


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)


sexta-feira, 14 de dezembro de 2018



ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - I

JOSÉ SARAMAGO



AZINHAGA, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é um termo que deriva do árabe az-zinaiqa, rua ou caminho estreito, e que na actual linguagem lusitana significa um atalho entre muros, casas de campo, sebes ou propriedades rústicas, fora dos povoados... E nada melhor do que essa imagem para descrever a povoação, uma singela aldeia nas imediações da Golegã, a meio caminho do Pombalinho, e que, embora grande, de casas térreas e vistas largas para os campos e para o rio Almonda, encerra em si mesma esse grande mistério da compatibilidade entre uma pequena origem e um grande destino, tão do agrado do seu mais ilustre cidadão, JOSÉ SARAMAGO, defensor da ideia de que tudo deve ser acessível, mesmo aos mais miseráveis e humildes como ele próprio se orgulha de ter sido, ele que, por sinal ou sina, vá lá saber-se, se tornou simplesmente o nome maior das nossas letras neste e noutros mundos....




José Saramago - Azinhaga



Encontrámo-lo ali no largo da terra, de ar satisfeito e tranquilo, de livro bem aberto na mão esquerda (que outra poderia ser?), talvez depois de um café no Central mas, enigmáticamente, de olhar perdido e sonhador, muito para além das páginas esquecidas de quaisquer memórias ribatejanas...  Sempre grato por todos os pequenos prazeres e grandes alegrias que a vida lhe deu, e em especial aqueles relacionados com a sua difícil mas feliz infância, Saramago retribuiria à Azinhaga tudo o que dela tinha recebido, afinal, que aldeia deste mundo foi alvo de tanto amor e atenção como aqueles que lhe foram dedicados em "As Pequenas Memórias"? 

Os grandes homens são-no porque nunca esquecem as suas origens, não por menos ilustres que o sejam mas porque em dignidade o mereçam... E Saramago deixou isso bem claro ao lavrar em epígrafe o seguinte conselho: "Deixa-te levar pela criança que foste"...



Saramago menino - Fundação José Saramago - Azinhaga


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018


COMEMORAR PARA LEMBRAR, SEMPRE...


Há que comemorar e lembrar a coragem de quem não se apaga perante a opressão e se revolta contra a tirania e a injustiça... Bem, mais uma vez, esteve a Fundação Gulbenkian ao associar-se ontem às comemorações dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 anos da adesão de Portugal à Comissão Europeia dos Direitos Humanos ao oferecer ao público o CONCERTO LIVRES E IGUAIS... Perante um Auditório esgotado, a Orquestra Gulbenkian, dirigida pelo maestro Pedro Neves, presenteou os melómanos com excertos da genialidade de BEETHOVEN...  



Concerto Livres e Iguais



E que melhor escolha do que a música de BEETHOVEN, ele que foi, como se lê no libreto do concerto "entusiasta da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que celebrou a liberdade em todas as dimensões ( religiosa, política...), que foi republicano numa Europa de monarquias...". Alguém escreveu que a música de Beethoven é uma "gloriosa afirmação da liberdade humana"...






E, curiosidade deste mundo cão, uma das obras ouvidas ontem na Gulbenkian, a HEROICA, a Sinfonia nº3, tornou-se um símbolo de liberdade e coragem  pois Beethoven, um admirador dos Ideais da Revolução Francesa, tinha pensado dedicar a obra a Napoleão, então Cônsul da República Francesa, mas quando este se autoproclamou Imperador provocou a revolta do músico que não foi de modas e rasgou furiosamente a dedicatória....  Consta que terá dito: "Agora ele pensa que é superior a todos os homens, tornando-se um tirano".



BEETHOVEN - Heroica - Finalle: Allegro molto



João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)



IMRE KERTÉSZ  -  Prémio Nobel da Literatura -2002 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018



"A Declaração Universal dos Direitos Humanos não se cumpre, é papel molhado. Não acredito nessa coisa de deixar a responsabilidade da mudança aos jovens, educados como estão num hedonismo irresponsável. O trabalho de hoje devemos começá-lo hoje. Há que pensar nos direitos humanos, exigir que se cumpram, disse-o há dez anos em Estocolmo, no meu discurso do Nobel, muito criticado porque me disseram que aquele não era o lugar, mas confessar-lhe-ei que, ao voltar ao meu lugar, a própria rainha da Suécia me sussurrou: «Alguém tinha de o dizer»."


JOSÉ SARAMAGO (2008)

Prémio Nobel em 1998, 10 de Dezembro








EFEMÉRIDE # 53

AS PALAVRAS E AS ACÇÕES...



"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para os outros em espírito de fraternidade"

Este é o primeiro artigo da "DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS", proclamada em Assembleia Geral das Nações Unidas há precisamente 70 anos, a 10 de Dezembro de 1948! Estupefactos pela dimensão do mais cruel desprezo pela vida humana que tinha sido levado a cabo na recente II GUERRA MUNDIAL pelos NAZIS corporizado no holocausto e na ariana política de exterminar da face da terra todas as raças consideradas impuras, um largo conjunto de países ratificou a carta de intenções como forma de garantir  o direito à liberdade individual, à cidadania plena, aos mais elementares direitos, à democracia, a um mundo mais justo...


"Arbeit folter" - JC.Forgeronne




Simultaneamente, e não menos importante, passam também 40 anos sobre a adesão de PORTUGAL à Convenção Europeia dos Direitos Humanos que esteve na origem da criação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, facto que se junta a um dos maiores orgulhos lusitanos, o de ter sido o primeiro estado soberano europeu a abolir a pena de morte!

"Unvergesslicher" - JC.Forgeronne


E hoje, num mundo igualmente conturbado como aquele do pós-guerra, que dizer dos direitos humanos quando se repara no que se passa na Síria, na Palestina, na África subsariana, na América Latina, enfim, por todo o lado? Os tratados, as cartas de intenção e as declarações continuam actuais e necessárias, claro, mas não chegam, cada vez são mais mais necessárias revoluções culturais, a intervenção cívica de todos e de cada um e a luta no terreno em prol da dignidade de todos os seres humanos, qualquer que seja a sua nacionalidade, o seu credo ou o seu estatuto social...    




João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)         

sábado, 8 de dezembro de 2018

"Mulher surpreendida"

Edgar Degas
1876
Bronze
41x28x19.5 cm
Fundação Calouste Gulbenkian









João Plástico

(Artista de Valmedo)


quinta-feira, 6 de dezembro de 2018


CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - VIII


QUANDO A ARTE INTRIGA...



"O Jovem Ciclista"



Quando entro na Gulbenkian para visitar a exposição "POSE E VARIAÇÃO", dedicada à pose na escultura francesa do século XIX dominada pelos conceitos e pela figura de RODIN, deparo com uma belíssima mas intrigante obra de ARISTIDE MAILLOL, intitulada " O jovem ciclista"...  Até aí, tudo bem, mas não observo nada na estátua que indique que o éfebo esculpido seja ciclista, nada de bicicleta, de capacete, de luvas, seja o que for relacionado com o ciclismo! Volto a ler a placa identificativa da obra e confirma-se: o jovem ciclista, bronze, 1907! Olho em redor, buscando talvez auxílio mas sem esperança de o obter, rebusco no bolso do casaco o panfleto da exposição e leio-o ávidamente mas nada faz referência a este estranho título. Será que alguém trocou as placas de identificação? Olho em redor para o que já vi e para o que falta ver, não descortino bicicleta em canto algum... 
 Já não consegui ver em paz o resto da exposição, tinha que resolver aquele mistério: porque raio chamou o artista à sua obra que retrata um adolescente nu "O jovem ciclista"?
Pois bem, a custo lá resolvi o mistério através da audição do áudio explicativo da exposição: provavelmente a estátua é do jovem Gaston Colin, um amigo e amante do Conde Kessler, o primeiro mecenas do artista Maillol. O Conde queria simplesmente um nú do seu jovem amante, talvez para mais tarde recordar quando fosse abandonado e o artista chamou assim à sua obra porque o jovem modelo terá, aparentemente, chegado ao seu atelier numa veloz bicicleta!
Sem esta explicação, a arte corre o risco de cair no obscurantismo, e vejam a diferença de objectividade para o espectador que decorre de uma das minhas obras expostas em Valmedo e à qual chamei, a propósito: "O Ciclista a Jubilar", a celebração da vida!







Não se vê logo, ao primeiro olhar, do que se trata? Eis a verdadeira arte cristalina....




João Plástico

(Artista de Valmedo)




CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - VII


HÁ ÁRVORES E ÁRVORES...




Santa Maria del Tule

No estado mexicano de OAXACA, em Santa María del Tule, mesmo ao lado da festiva igreja, mora, há mais de 2000 (!) anos, um lendário cipreste (Taxodium mucronatum) que orgulhosamente ostenta o título de maior árvore do mundo conhecido em diâmetro! E que bela cintura ele tem... 







Em Águas de Moura, Alentejo, Portugal, mora há mais de 200 anos aquela que foi considerada a Árvore Europeia do Ano (2018), o ASSOBIADOR, aquele que é o maior sobreiro (Quercus suber) do mundo conhecido e que deve o seu nome ao som provocado pelas milhares de aves que ao entardecer pousam nos seus enormes ramos para pernoitar...  Este sobreiro já foi descortiçado mais de 20 vezes e é, justamente, considerado "Árvore de Interesse Público" desde 1988.



O Assobiador





E depois há muitas outras árvores sem qualquer atributo especial ou distinção que teimam em embelezar o mundo, como este cipreste de Valmedo, sem idade ou características conhecidas mas que à hora certa e com a disposição adequada podem tornar um crepúsculo numa experiência mágica...



Cipreste solitário de Valmedo


João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)



MISTÉRIO EM BRATISLAVA - IV



Depois de terem jantado no Divný Janko, um estranho mas simpático restaurante frequentado por artistas, estudantes e boémios, situado por detrás do Palácio Presidencial e perto da Universidade, também célebre por ter sido onde foi escrito no longínquo século XIX o poema do hino nacional eslovaco por um então desconhecido poeta-estudante, Janko Matuska, o Inspector Ferreira e o Comissário Rado estavam agora em descontraída e fraterna cavaqueira no mercado de natal.


Palácio Presidencial

A Praça Principal de Bratislava, a HLAVNÉ NAMESTIE, estava à pinha, era difícil dar um passo sem tropeçar em alguém, parecia que todos os cinco milhões de eslovacos tinham escolhido aquela ocasião para sair e confraternizar... Felizmente que tinham chegado cedo e conseguido um cantinho num balcão que muitos agora invejavam, e enquanto um deles ficava de guarda o outro tratava de ir à fonte abastecer-se de vinho quente aromatizado com especiarias e frutos desidratados... Desta vez Rado trouxe algo mais, umas castanhas pecené, ou seja, assadas, e que embora mais pequenas, menos salgadas e com calor a menos do que as que se fazem em Portugal, fizeram as delícias do Inspector.
 - Ao nosso sucesso! - brindou o Comissário.
 - À nossa...

Mercado de Natal
E o sucesso fora estrondoso, não se falava de outra coisa nos meios policiais de todo o mundo... Os dois, embora numa relação nem sempre fácil, tinham não só solucionado um dos maiores roubos da história na Europa como desmantelado uma rede criminosa internacional bastante perigosa...
O fabuloso tesouro roubado em Praga estivera sempre em Bratislava, os ladrões tinham-no transportado Morava abaixo numa barcaça desde Olomouc até Devin, onde o rio desagua no Danúbio, mesmo junto ao lendário castelo que as tropas de Napoleão um dia fizeram explodir. O plano passava por transformar os lingotes de ouro em obras de arte que não chamassem a atenção das autoridades, só assim seria possível passar pelo controlo apertado que tinha sido montado em todas as fronteiras, comboios, estradas e aeroportos, todas as polícias europeias estavam em alerta máximo para capturar os criminosos... E aí entrava a mente genial de Vasco Doninha, o surpreendente cabecilha da organização que devido aos contactos e influência que tinha inerentes ao cargo diplomático que exercia tinha conseguido obter uma falsa autorização do Ministro da Cultura Eslovaco para a exposição de réplicas das famosas estátuas de Bratislava em Lisboa... Vasco apercebera-se de que toda a gente em Bratislava já se habitura nos últimos tempos ao desaparecimento temporário das famosas estátuas que a todos encantavam, fosse por vandalismo, por necessidade de restauro ou sem explicação, não só o MAN AT WORK mas também o SOLDADO DE NAPOLEÃO, o PAPARAZZI, o ANDY WARHOL o SENHOR DA CARTOLA e outras habituaram as pessoas a algum período de ausência e ninguém questionava já o porquê nem por quem tinham sido levadas, era tudo uma questão de tempo...


Castelo de Devin

Guardado o ouro no Castelo de Devin e levado por barco até ao pequeno cais junto do Hrad, era apenas uma questão de transportá-lo através dos túneis da cidade que ligavam a uma fundição abandonada e aos locais onde se exibiam as estátuas...  Semanas antes, sob a diligente vigilância do famoso Cavaleiro Dourado, depois eliminado por se ter tornado ganancioso demais, as estátuas começaram a desaparecer, uma a uma, através das profundezas labirínticas até à fundição para lhes serem tirados os moldes... Depois, naturalmente, as estátuas originais em bronze voltariam a ser colocadas no seu local habitual enquanto que as suas réplicas em ouro seriam oficialmente transportadas para uma fictícia exposição internacional de arte em Lisboa.



O Paparazzi



  - Era um plano perfeito, Inspector Ferreira! - disse o Comissário Rado por entre os vapores de vinho quente. - Mas nós passámo-lhes a perna, hein? A surpresa que irão ter quando chegarem lá e depararem com a polícia à sua espera... Você é um verdadeiro detective e tem um grande futuro! Não quer ficar por aqui e ajudar-me a combater os bandidos de Leste e o crime internacional? Tratarei de tudo, terá todas as condições...
   O Inspector interrompeu: - Comissário, terei todo o gosto em colaborar consigo quando necessário mas... repare, o seu lugar é aqui, o meu é em Lisboa, e já tenho saudades daquela luz e daquele calor...
   - Brindemos então, à nossa e à paz universal! - disparou o Comissário, qual Pai Natal de rechonchudas bochechas vermelhas e olhos brilhantes...



João Pena Seca

(Escritor de Valmedo)



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018



MISTÉRIO EM BRATISLAVA - III


Já o Inspector Ferreira ia andando em direcção ao Departamento da Polícia quando sentiu o telemóvel vibrar no bolso do casaco, era o Comissário Rado em tom excitado:
   - Onde está, Inspector?
  - Estou a caminho, deixe-me ver... - procurou a placa toponímica da rua - estou a entrar na Ulica Ursulinská, junto ao jardim...
  - Ok, não saia daí, vamos buscá-lo!
O Inspector não teve tempo de dizer mais nada, e não tinha ainda passado um minuto já uma carrinha Passat descaracterizada parava à sua frente após uma travagem a fundo.
 - Entre! - ordenou Rado enquanto colocava o rotativo a piscar no tejadilho da viatura e apontava para o condutor - Este é o agente Vaclav, o melhor condutor que temos por cá. Segure-se bem. Temos um cadáver para examinar, espero que seja ninguém que conheça! - disse com ar grave, olhando para trás.
 - Também espero que não. - respondeu o Inspector, um pouco incomodado. Não era esse o desfecho que queria para a sua investigação, estava em Bratislava há dois dias numa missão internacional, tinha sido enviado pela Interpol para esclarecer o desaparecimento de um alto funcionário do Consulado Português em Bratislava e que, na verdade, era também um importante informador sobre as actividades de algumas associações criminosas de Leste. Rapto, crime, o que teria acontecido a Vasco Doninha? A última vez que tinha dado prova de vida tinha sido há uma semana atrás quando enviara um mensagem criptada para Lisboa informando que estava no encalce do ouro que tinha sido roubado da caixa-forte do CNB, o Banco Nacional Checo, em Praga, semanas atrás, naquele que era já considerado como um dos assaltos do século...






Várias vezes pareceu ao Inspector que o carro se deslocava apenas em duas rodas tal a gincana que Vaclav ia fazendo pelas ruas sinuosas e estreitas da cidade e agarrado à pega do tecto como uma lapa apenas conseguia vislumbrar as torres do castelo lá no alto. Finalmente chegaram a um baldio junto ao rio e aliviado por sentir os pés bem assentes na terra outra vez, o Inspector Ferreira saiu do carro e seguiu o Comissário até ao local do macabro achado, delimitado com fitas amarelas. Uma personagem atarracada e de bata, luvas e óculos brancos plastificados, debruçada sobre o cadáver, levantou-se a custo e acenou com a cabeça.
 - Bom dia, Doutor! Este é o Inspector Ferreira da Interpol, o Dr. Kasimir, o nosso Patologista Forense. Que nos conta então?
  - Bem, foi um cão que encontrou a vítima quando acompanhava a sua dona no jogging, é do sexo masculino, um metro e sessenta e apresenta fracturas da cervical, embora não tenha sido essa a causa da morte. Primeiro foi asfixiado, como demonstram as equimoses no pescoço..
  -E depois empurraram-no das muralhas para dar a ideia de uma queda acidental - juntou o Comissário.
   - Sim. Mas já foi há pelo menos quatro ou cinco dias, quando tiver o resultado dos exames laboratoriais lhe direi.
    - Obrigado, Dr. Kasimir - disse o Comissário enquanto olhava para o imponente Hrad.
       - Só mais uma coisa, comissário, encontrei umas estranhas manchas amareladas nas mãos da vítima, talvez fruto do contacto com tintas sintéticas.
O comissário voltou-se para falar com o Inspector mas este já descia em direcção a uma estrutura que lhe chamara a atenção: a uns trinta metros, abria-se um túnel na encosta, fechado por uma robusta grade de ferro.
   - Sabe onde vai dar esta passagem, comissário? - perguntou o Inspector, sentindo o outro a aproximar-se.
    - Presumo que terá comunicação com a rede de túneis sobre a qual a cidade está construída, consta que há muitas passagens subterrâneas secretas por aqui e que serviam para a entrada e saída de gente e alimentos quando o castelo estava cercado.
    - E sabe da existência de alguma fundição nas proximidades?
    - Não, mas posso mandar averiguar.  Porque pergunta?
  - Bem, tenho uma teoria, comissário, estamos perante uma coisa muito maior do que esperávamos, suspeito que esta vítima é o Cavaleiro Dourado e que o desaparecimento da estátua pode estar relacionado com o assalto de Praga e, a ver por estas marcas de pneus que aqui se encontram, penso que alguém tem dado uso a estes túneis últimamente... Sabe, hoje também encontrei vestígios de lama igualzinha a esta junto da tampa do Curioso...
   O comissário pegou no telefone e fez uma chamada.
   - Pronto, Inspector, vamos lá então testar a sua teoria. Daqui a dez minutos virá aqui alguém abrir este portão e vamos lá explorar esses túneis. Ah, é verdade, você teve um bom palpite, de facto existe uma fundição abandonada, situada no antigo bairro judeu, perto do centro histórico. Mas há uma coisa que não bate certo, este não pode ser o Cavaleiro Dourado porque ele foi visto no sitio habitual há duas noites e o Dr. Kasimir diz que o crime ocorreu há muito mais tempo...
  - Isso também me confundiu inicialmente, comissário, mas imagine que o que viram não foi o verdadeiro artista de rua...



O soldado de Napoleão


João Pena Seca

(Escritor de Valmedo)