A COLINA CONTADORA DE HISTÓRIAS...
Era uma vez uma colina que tem muitas histórias para contar e para que ela revele os seus muitos segredos basta ouvi-la, sentado na relva debaixo de uma árvore exótica ou num banco de jardim tão velho quanto a república... A colina de que vos falo, uma das sete de Lisboa segundo dizem, começou por ser primeiro conhecida como Monte de Sant'Ana porque aí existia uma ermida dedicada à avó materna de Cristo, e daí até esse planalto cujas encostas são bordejadas lá em baixo, a nascente pela avenida Almirante Reis e a poente pela avenida da Liberdade, se ter tornado no Campo Santana foi um ápice... E, curioso, se já no longínquo século XVI por ali existia um matadouro, durante seis décadas do século XIX ali coexistiram lado a lado a praça de touros e a Feira da Ladra antes de se mudarem para o Campo Pequeno e para o Campo de Santa Clara!
E então algo de sinistro aconteceu por ali, o campo virou um local de suplício no Outono de 1817 quando onze patriotas e companheiros de Gomes Freire de Andrade foram enforcados sob falsas acusações pelos falsos ingleses que governavam o país com a conivência da cobarde e falsa corte exilada no Brasil! Foi preciso esperar ainda 60 anos para que fosse honrada a memória e a honra dos supliciados mas justiça se fez, desde 1880 o Campo Santana passou a ser chamado justamente Campo Mártires da Pátria...
Em 1895, já deitada abaixo a antiquíssima praça de toiros e no seu lugar construído o edifício da Escola Médico-Cirúrgica, hoje Faculdade de Ciências Médicas, foi implantado na zona sul do Campo um jardim, hoje conhecido como Jardim Braancamp, em homenagem a um notável ribatejano: Braancamp Freire, escritor, historiador, republicano dos sete costados e ainda presidente da câmara lisboeta entre 1908 e 1913, mesmo no auge da instauração da república...
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Jardim Braancamp
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Em 1907 foi instalada defronte da antiga Escola Médico Cirúrgica uma estátua que logo se tornou local de romaria, representa ela Sousa Martins, notável médico, investigador e professor catedrático que granjeou não só fama de excelência científica e trabalhador incansável na luta contra a tuberculose mas também a aura de santo milagreiro porque caridosa e bastas vezes gratuitamente ajudava os mais pobres, tendo havido até por parte destes relatos de milagres... Curiosamente, fez milagres pelos outros mas esqueceu-se de si próprio, acabaria ele próprio vítima da sua alter-inimiga tuberculose e, doente terminal mas recusando-se a baixar a cabeça, suicidou-se aos 54 anos com uma injecção letal de morfina!
No lado poente do Campo Mártires da Pátria sobressai um edifício de larguíssima fachada, construído no início do século XX e conhecido como Palácio Valmor porque a essa família pertenceu, e que desde 1964 alberga a Embaixada da Alemanha, primeiro federal e depois unida...
Curioso é o edifício contíguo, paredes meias e também de nobre fachada mas em miserável estado de conservação, enquanto que a um valeram os marcos e agora os euros cunhados em Berlim ao outro parece que pouco interesse desperta, sinal deste tempo em que parece que quem manda no destino é o dinheiro...
E ali mesmo na beirinha do Jardim Braancamp damos de caras com um busto de bronze de um tal Garcílaso de La Vega, conhecido como "El Inca", herói peruano do século XVI, escritor e historiador, curiosamente filho de um oficial do vil Pizarro e de uma neta do rei inca, dividido e misturado por Espanha e América, mas que numa mescla de sentimentos personificou o orgulho das civilizações pré-colombianas e é considerado o grande inspirador e impulsionador da cultura da comunidade hispano-americana...
Mas, impõe-se a pergunta: o que faz Garcílaso de La Vega no Campo Mártires da Pátria? Poder-se-á pensar que também ele foi um mártir da sua pátria, uma vítima das invasões ocidentais, e isso não estará errado, mas o que importa é que as suas mais importantes obras foram apresentadas ao mundo precisamente em Lisboa, em 1605 e em 1609... Daí a homenagem da nação peruana ao nosso país....
E já de saída desta maravilhosa colina ainda deparámos com mais uma novidade, já com a Gomes Freire a espreitar surge uma área ajardinada com instalações para a prática desportiva e um jardim infantil... Nem tudo vai mal no aproveitamento do espaço citadino...
João Valbom
(Olisipógrafo de Valmedo)