sábado, 31 de outubro de 2020

O morcego das Caldas...

 


DAR COR À NOITE...


Finalmente acabaram os longos dias de espera e o martírio da curiosidade que me ia corroendo a imaginação desde o início de Junho, altura em que começou o Festival Artístico de Linguagens Urbanas (FALU) - só  o nome é logo uma obra de arte - e se soube que um dos artistas convidados era BORDALO II, mundialmente famoso por dar vida e beleza àquilo a que muitos chamam de lixo, um criador cuja matéria prima é o desperdício dos outros e que assim acaba reciclado e transformado em geniais composições... O que iria Bordalo fazer desta vez? Até confidenciei e quase que apostei com o meu amigo Andarilho que talvez ele tivesse na ideia uma homenagem à velha cidade termal e criasse "um das Caldas", estão a ver, dois pneus em baixo onde se apoiaria uma mangueira vistosa até ao cimo, mais uns fios daqui e dali, tudo bem disfarçado, colorido e original, claro, mas enganei-me redondamente: saiu um morcego! Não um morcego qualquer, este é único, é especial e é das Caldas! 


"Morcego diurno" - Jean-Charles Forgeronne


Pára-choques de um automóvel, tubos sabe-se lá de onde, mangueiras ressequidas, plásticos indecifráveis, pinos de sinalização, pedaços de baldes e outros misteriosos bocados de matéria resgatados ao lixo, eis do que é feito o enorme morcego pendurado numa parede decadente por BORDALO II e que surpreende e dá uma nova vida à sua arte: esta é a sua primeira obra em que alia plástico e leds! Disse ele: " Esta é uma experiência para continuar, até agora só tinha feito pequenas peças no meu estúdio..." Pois, e pelo resultado, amigo Artur, bem podes continuar, ficou absolutamente deslumbrante! E convém esclarecer que muito do led da obra foi reaproveitado e que, brevemente, será instalado um painel que captará a energia solar e iluminará a obra, sustentadamente, a partir das 19 horas... Dar a luz do dia à noite, ressuscitar a cor nas trevas, outro patamar da arte.. 



"Morcego nocturno" - Foto: Beta Maia

João Plástico

(Artista de Valmedo)

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Homenagem

"Ferreira da Silva" por Filipa Morgado

 

E eis como, pouco tempo depois de ter pincelado a aldeia do Moledo de sonhos, ficou bela a homenagem de Filipa Morgado ao célebre ceramista caldense Ferreira da Silva, ainda por cima em pleno Jardim da Água... E o dia de quem por ali passa para ir trabalhar ou para ir à Praça da Fruta fica mais leve...


"Jardim da Água" - Caldas da Rainha


João Plástico

(Artista de Valmedo)

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Como os pássaros...

 


EFEMÉRIDE # 83


O PRIMEIRO MINUTO NO CÉU...


Desde tempos imemoriais que os humanos têm uma inveja doentia das aves pois gostariam de poder voar como elas, serem livres no céu e desafiar as alturas, muitos até as imitaram colocando asas nos braços e lançando-se de pontes, arribas ou edifícios, estatelando os seus sonhos e os seus ossos nas profundezas... Assim, e com o desenvolvimento científico, técnico e industrial, não surpreende que aquele que viria a ser o glorioso século XX tenha começado sob um intenso frenesim e uma louca corrida por parte de engenheiros, inventores e aventureiros de todo o mundo para ver quem conseguia ser o primeiro a voar! Contam os americanos que os primeiros a voar foram os irmãos Wright em 1903, numa pradaria do Ohio, e que numa das várias tentativas e aproveitando um vento forte conseguiram que o seu aeroplano com um motor de 4 cilindros e 12 cavalos voasse por 260 metros em menos de um minuto; já os brasileiros e muitos europeus são de opinião que o primeiro voo da humanidade deve ser atribuído a Alberto Santos-Dumont que três anos mais tarde, em 1906, com muito mais testemunhas oculares e feito homologado pelas autoridades aeronáuticas francesas, cometeu a proeza de em Paris, em pleno campo de Bagatelle, se deslocar durante 60 metros e a três metros de altura! Chamava-se o seu aeroplano Oiseau de Proie, que é como quem diz "ave de rapina", e a coisa não foi propriamente uma bagatela... 



"Primeiro voo em Portugal" - Foto: Jornais da época



E quanto aos céus de Portugal? Pois bem, passam hoje exactamente 111 anos que, a 27 de Outubro de 1909, um piloto aventureiro francês, Armand Zipfel, levantou de um hipódromo outrora existente em Belém o seu Voisin-Antoinette de 40 cavalos para sobrevoar o Tejo a 8 metros de altitude para  aterrar  pouco depois e na perfeição sobre o telhado de uma casa ali para as bandas de Algés, ainda não tinha voado um minuto sequer...  Malgrado a sua efemeridade a aventura ganharia de imediato honras de proeza nunca assistida nos até então virgens céus lusitanos!


João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

domingo, 25 de outubro de 2020

Argentum...

"Poente de Prata" - Jean-Charles Forgeronne

 


"Não fui eu que pintei o sol no céu,

nem as nuvens no Ar

com água de prata.


Quando nasci já tudo estava mundo

com relvas e azuis,

poentes e sombras,

pobres e cicatrizes...


Porque então estes remorsos

de andar a sofrer não sei por quem

a culpa de haver rosas e haver vida?


Palavra! não fui eu

quem atirou a lua para o céu!"



José Gomes Ferreira

(excerto de "Sonâmbulo", 1941)

"Petrossaurus"


Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)
 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A colina...



A COLINA CONTADORA DE HISTÓRIAS...



Era uma vez uma colina que tem muitas histórias para contar e para que ela revele os seus muitos segredos basta ouvi-la, sentado na relva debaixo de uma árvore exótica ou num banco de jardim tão velho quanto a república...  A colina de que vos falo, uma das sete de Lisboa segundo dizem, começou por ser primeiro conhecida como Monte de Sant'Ana porque aí existia uma ermida dedicada à avó materna de Cristo, e daí até esse planalto cujas encostas são bordejadas lá em baixo, a nascente pela avenida Almirante Reis e a poente pela avenida da Liberdade, se ter tornado no Campo Santana foi um ápice...  E, curioso, se já no longínquo século XVI por ali existia um matadouro, durante seis décadas do século XIX ali coexistiram lado a lado a praça de touros e a Feira da Ladra antes de se mudarem para o Campo Pequeno e para o Campo de Santa Clara!

E então algo de sinistro aconteceu por ali, o campo virou um local de suplício no Outono de 1817 quando onze patriotas e companheiros de Gomes Freire de Andrade foram enforcados sob falsas acusações pelos falsos ingleses que governavam o país com a conivência da cobarde e falsa corte exilada no Brasil! Foi preciso esperar ainda 60 anos para que fosse honrada a memória e a honra dos supliciados mas justiça se fez, desde 1880 o Campo Santana passou a ser chamado justamente Campo Mártires da Pátria...








Em 1895, já deitada abaixo a antiquíssima praça de toiros e no seu lugar construído o edifício da Escola Médico-Cirúrgica, hoje Faculdade de Ciências Médicas, foi implantado na zona sul do Campo um jardim, hoje conhecido como Jardim Braancamp, em homenagem a um notável ribatejano: Braancamp Freire, escritor, historiador, republicano dos sete costados e ainda presidente da câmara lisboeta entre 1908 e 1913, mesmo no auge da instauração da república...




Jardim Braancamp 

  
Em 1907 foi instalada defronte da antiga Escola Médico Cirúrgica uma estátua que logo se tornou local de romaria, representa ela Sousa Martins, notável médico, investigador e professor catedrático que granjeou não só fama de excelência científica e trabalhador incansável na luta contra a tuberculose mas também a aura de santo milagreiro porque caridosa e bastas vezes gratuitamente ajudava os mais pobres, tendo havido até por parte destes relatos de milagres... Curiosamente, fez milagres pelos outros mas esqueceu-se de si próprio, acabaria ele próprio vítima da sua alter-inimiga tuberculose e, doente terminal mas recusando-se a baixar a cabeça, suicidou-se aos 54 anos com uma injecção letal de morfina!








No lado poente do Campo Mártires da Pátria sobressai um edifício de larguíssima fachada, construído no início do século XX e conhecido como Palácio Valmor porque a essa família pertenceu, e que desde 1964 alberga a Embaixada da Alemanha, primeiro federal e depois unida... 







Curioso é o edifício contíguo, paredes meias e também de nobre fachada mas em miserável estado de conservação, enquanto que a um valeram os marcos e agora os euros cunhados em Berlim ao outro parece que pouco interesse desperta, sinal deste tempo em que parece que quem manda no destino é o dinheiro... 



 


E ali mesmo na beirinha do Jardim Braancamp damos de caras com um busto de bronze de um tal Garcílaso de La Vega, conhecido como "El Inca", herói peruano do século XVI, escritor e historiador, curiosamente filho de um oficial do vil Pizarro e de uma neta do rei inca, dividido e misturado por Espanha e América, mas que numa mescla de sentimentos personificou o orgulho das civilizações pré-colombianas e é considerado o grande inspirador e impulsionador da cultura da comunidade hispano-americana... 

Mas, impõe-se a pergunta: o que faz Garcílaso de La Vega no Campo Mártires da Pátria? Poder-se-á pensar que também ele foi um mártir da sua pátria, uma vítima das invasões ocidentais, e isso não estará errado, mas o que importa é que as suas mais importantes obras foram apresentadas ao mundo precisamente em Lisboa, em 1605 e em 1609... Daí a homenagem da nação peruana ao nosso país....



E já de saída desta maravilhosa colina ainda deparámos com mais uma novidade, já com a Gomes Freire a espreitar surge uma área ajardinada com instalações para a prática desportiva e um jardim infantil... Nem tudo vai mal no aproveitamento do espaço citadino...





João Valbom

(Olisipógrafo de Valmedo)


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Sangue...

 


MEMÓRIAS SANGUINÁRIAS DO CAMPO...


E aqui estou eu sentado na relva, gozando a temperatura amena e a sombra, de olhar atraído pelas indecisões do galináceo, ora vai para lá, ora vem para cá, por vezes vai para o lado, quieto de vez em quando e de tempos a tempos põe a cabeça à banda e espreita-me só com um olho escuro e inquiridor, como se me perguntasse que direito tinha eu de estar ali no espaço que é dele...



"Campo Mártires da Pátria" - Jean-Charles Forgeronne


E estando eu ali por acaso a matar tempo, lembrei-me das galinhas da minha infância que andavam à solta por entre as couves de pé alto e debaixo da laranjeira amarga, debicando e descobrindo minhocas escuras com que engordavam antes de acabarem degoladas sem piedade numa bela cabidela... E depois, claro, assaltaram-me as lembranças dos tempos de faculdade em que passava por aqui, todos os dias e durante meses até à Hematologia do São José enquanto estagiário sob as ordens do Senhor Pereira, humilde e pequena criatura a quem chamávamos injustamente "O Indiano", porque afinal ele era de Goa, essa mítica terra de gente a que não falta nobreza de carácter... O Pereira era daquela estirpe que marca para uma vida inteira, pessoa humilde mas grande de saber feito de experiência, ensinou-me muita coisa que não vem nos livros e nem catedráticos sabem, como sentir uma veia, como adivinhar o seu trajecto e a sua profundidade, características e questões a que nenhum atlas de anatomia responde porque as veias diferem de pessoa para pessoa, qual a inclinação a dar à agulha consoante o local da picada, enfim, um mestre... Nunca mais o vi desde esse tempo de estagiário mas continuo ainda hoje a socorrer-me das suas dicas que, lembro-me agora, bastas vezes eram acompanhadas de uma boa dose de impaciência... 





Mas deixemos de lado por agora decapitações de galinhas e seringas cheias de sangue, voltemos àquele glorioso tempo em que lá vinha eu caminhando desde a Conde de Valbom até aqui, a este sítio a que agora chamam Campo Mártires Da Pátria e que agora está muito diferente, para depois descer um pouco e entrar no São José para treinar então nos braços de alguns mártires, alguns dos quais só não me guilhotinaram na hora porque o Pereira sempre aparecia com a sua calma para emendar o trajecto ou a profundidade da agulha e assim aliviar o sofrimento das cobaias...  E nunca fazia eu o mesmo trajecto, se vinha pela Luciano Cordeiro então regressava pela Gomes Freire, passando pelo antigo Convento de Rilhafoles onde trabalhou o infeliz Miguel Bombarda assassinado por um doente, e aí lembrava-me sempre daquilo que ouvia quando era moço: "Ganha juízo senão ainda vais para Rilhafoles!", e continuava até ao Fórum Picoas onde me perdia com as novidades tecnológicas que traziam transmissões televisivas de toda a Europa, e no dia seguinte seria ao contrário porque uma rua é sempre diferente consoante se está de frente ou de costas e sempre tive esta mania de não repetir os percursos, vá lá saber-se porquê, será caso para avaliação psiquiátrica?...


João Pica

(Analista de Valmedo)

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 


Forte São Julião da Barra

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo) 

Mártires...

 

EFEMÉRIDE # 82


A PÁTRIA, O GENERAL E OS MÁRTIRES...


A pátria tinha sido abandonada à sua sorte por um rei cobarde que teimava em se manter exilado lá pelo calor do Brasil, D. JOÃO VI, criatura que nunca deveria ter chegado ao trono porque para além da cobardia primava por ser uma miserável figura, indolente e com falta de tino até, o que é bem provável porque já sua mãe tinha enlouquecido e não faltam exemplos de maluquinhos que chegaram a líderes deste esquizofrénico mundo-cão... Enquanto a corte lá ia vivendo na sua louca bolha de alienação, por cá  ia o povo sobrevivendo descontente e debaixo da manápula inglesa, sob o comando do marechal William Beresford, comandante-chefe das forças armadas e indigitado por mandato real como a autoridade máxima em Portugal.

Gomes Freire de Andrade
O descontentamento popular e os sinais de rebelião que eram cada vez mais frequentes contra a ocupação inglesa tinham um líder, o general GOMES FREIRE de ANDRADE, figura de agitada carreira na Armada Real, combatera na Argélia, na Rússia, na Crimeia e ainda lutara contra as tropas de Napoleão... Mas para além de ser conhecido pela coragem e pela disponibilidade para a luta também lhe eram atribuídas algumas falhas como sejam a indisciplina ou a propensão para não acatar ordens superiores, ou seja, valente e rebelde! Sendo assim, não é surpreendente que Beresford tenha lançado mão de uma manobra intimidatória: doze oficiais portugueses foram parar aos calabouços do Forte de São Julião da Barra, quartel-general dos ingleses durante a ocupação do trono, acusados de conspiração contra o rei e traição à pátria, desgraçados patriotas que apenas estavam fartos dos beefs...                                                        




"Execução de Gomes Freire de Andrade" - Roque Gameiro


  No dia  18 de Outubro de 1817, Beresford convocou a população para assistir à execução pública do general Gomes Freire de Andrade, nas imediações do forte, tendo sido enforcado, decapitado, queimado com alcatrão e depois lançadas as cinzas ao Tejo, privando-o de um túmulo para que não fosse venerado e assim evitar novas rebeliões... Quanto aos outros onze acusados, também condenados à morte por traição à pátria, não se sabe qual, se a inglesa ou a do rei filho-da-mãe, acabaram enforcados no local que a partir de então passou a ser conhecido como o Campo dos Mártires da Pátria...            



"Campo Mártires da Pátria" - Jean-Charles Forgeronne

Pouco depois deste criminoso massacre o vilão Beresford embarcou para o Brasil com o expresso intuito de pedir ainda mais poderes ao rei e assim lhe ser mais fácil conter o azedume popular, e não é que o cabrão lhos deu? Só que o tiro acabaria por sair pela culatra aos ingleses, regressados a Portugal depararam-se com um país ainda mais assanhado, revoluções em curso e o governo provisório impediu-os de desembarcar, passaram uma semana a flutuar no Tejo até receberem ordem de marcha definitiva até casa! Só foi pena não ter ocorrido um naufrágio nesse regresso, o mother-fucker do assassino ainda haveria de viver mais trinta anos, que desperdício, e vejam só, ainda regressou a Portugal para tentar ser o comandante do exército...


 João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Uma vida...

 

ERA UMA VEZ UMA VIDA NUM PLANETA...


Ainda estou arrepiado enquanto carrego nas teclas que darão origem a este texto, nem há cinco minutos acabei de ver o filme-documentário de DAVID ATENBOROUGH, disponível há uma dezena de dias na Netflix e a primeira coisa que me ocorre dizer é que, em vez de estar escondido numa plataforma de streaming e acessível apenas para alguns, e de acordo com alguém que já opinou algures num sítio de informação digital, a obra deveria ser de visualização obrigatória em todo o lado e em qualquer idade, desde a creche às universidades da terceira idade, deveria ser tão obrigatória quanto a administração de uma vacina para que assim, em nome do bem comum, se conseguisse alguma imunidade contra a ignorância e o alheamento que contaminam a sociedade, talvez muitas mentes despertassem a tempo para a tremenda luta que se avizinha: salvar o planeta e a humanidade, evitar o descalabro anunciado...




Ainda que eu não fosse um velho discípulo e ferrenho admirador de David Attenborough, ainda que eu não fosse um naturalista por convicção, ainda que eu fosse alguém que não estivesse desperto para os graves problemas de sustentabilidade deste planeta, ainda assim, ainda que eu fosse um alienado, depois de ver este tremendo testemunho de alguém que gastou a sua enorme vida numa tremenda e apaixonante luta pela compreensão, divulgação e salvação da vida natural, os meus dias não voltariam a ser iguais depois de ser confrontado com dados assustadores, de entre os quais:

  - actualmente, 30/% dos mamíferos da Terra são humanos; outros 60% são animais que comemos e dos 10% que restam apenas 4% são animais selvagens...

  - no final do presente século seremos 11 mil milhões de humanos a viver neste planeta!

   - durante o Holoceno, isto é, os últimos 10 mil anos, o planeta viveu em equilíbrio e a temperatura global nunca oscilou mais de 1º C; hoje, desaparecem a um ritmo galopante as florestas húmidas e derretem as calotas polares que arrefecem o planeta;

    - a agricultura intensiva está a levar à exaustão a capacidade de obter solo fértil; os insectos polinizadores estão a desaparecer a um ritmo alucinante; a fome extrema será inevitável daqui a meia dúzia de décadas...





Tudo isto não foi dito por nenhum curioso ou pseudo-cientista populista, foi dito de uma forma sábia e assertiva por uma das personagens incontornáveis da era moderna, alguém insubstituível, tão insubstituível como Carl Sagan, Stephen Hawking ou Umberto Eco, por exemplo, e é de facto um testemunho emocionante de alguém que viveu este planeta, amou este planeta, lutou por este planeta, amou a vida, enfim...  Só que, e essa é a grande diferença, Attenborough ainda vive e ainda luta por este planeta do alto dos seus grandiosos 94 anos, jovem ainda porque parece que acabou de aderir ao Instagram, (nunca é tarde, certo?) com o objectivo de alertar os internautas para a aflição em que o planeta vive e veja-se, bateu logo um record: bastaram 4 horas e 44 minutos para atingir 1 milhão de seguidores, nunca visto! Falta saber quantos desses seguidores terão a coragem de arregaçar as mangas para a luta...





E não deixa de ser curioso o facto de o filme começar e acabar com imagens de Chernobyl, onde o erro e o mau planeamento humanos levaram à extinção de uma grande cidade... Hoje, a natureza tomou conta de Chernobyl e isso é a prova de que nós não somos imprescindíveis neste planeta, nós não passamos de uma praga invasora e a continuar assim seremos exterminados pelo próprio planeta, afinal será apenas mais uma extinção em massa, a sexta, só que desta feita será a extinção da espécie humana!

Muito obrigado, mestre, e longa vida ainda para as batalhas que se avizinham...


João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)

 



"Se tomarmos conta da Natureza, ela tomará conta de nós!"


David Attenborough

O primeiro acidente

 

EFEMÉRIDE # 81


O CONDE, A MÁQUINA E O BURRO...


Há precisamente 125 anos, corria o dia 14 de Outubro de 1895, teve início a primeira viagem de automóvel em Portugal!  E que aventura aquela, ninguém estava preparado para o evento, ninguém sabia o que era aquilo, para uns era uma espécie de locomotiva, os jornais da época falavam de um "trem a vapor", inclusive na alfândega gerou-se confusão porque ninguém arriscava dar um nome àquilo, seria uma máquina agrícola ou uma máquina movida a vapor? Resolvido o imbróglio, lá foram despachadas as peças numa galera para serem montadas numa oficina da rua dos sapateiros, na baixa lisboeta... Tudo desencaixotado e montado segundo o folheto de instruções que a acompanhavam ali estava a máquina pronta para funcionar: um "Penhard et Lavassor" de 1891! 



"Penhard et Levassor" - 1891

Mas os transeuntes que por ali passavam não conseguiam fechar a boca de espanto perante aquela esquisita carroça com uma manivela à frente, engenhoca que em segunda mão tinha sido importada de Paris por uma singular personagem, o conde d'Avilez, de Santiago do Cacém... O excêntrico conde, Jorge de Avilez, moço fidalgo íntimo da Casa Real e estimado por el-rei D. Carlos e pela rainha D. Amélia, era famoso por terras de Santiago devido não só ao seu temperamento impulsivo e nervoso capaz das reacções mais inusitadas mas também por causa da sua queda por aventuras desportivas, era comum encontrá-lo às voltas pelas redondezas a cavalo daqueles estranhos veículos de duas rodas, hoje chamados bicicletas mas que naquele final do século XVIII causavam muita estranheza... 



"4º Conde Avilez" - retrato, 1896


Mas, curiosamente, a famosa viagem esteve quase para não acontecer, tudo pronto, litros e litros de petróleo despejados para o depósito de combustível mas a coisa não queria pegar por mais à manivela que se desse! Já o desconsolado conde, de olhos esgazeados e braços levantados ao alto gritava "Porque raio não trabalha?" quando alguém lançou uma engenhosa solução: "Em vez de petróleo vamos deitar-lhe gasolina para dentro...".  E então, eureka, a coisa lá pegou, começou a viagem e até a máquina seria daí para a frente conhecida como o "GASOLINA", um automóvel com um motor Daimler de dois cilindros, rodas com aros de ferro, direcção comandada por cana de leme, quatro velocidades à frente e quatro velocidades atrás, travagem de pé à transmissão e de mão por calços de madeira às rodas traseiras, tudo numa estonteante velocidade máxima de 20 Kms à hora!       

Tudo somado, aqueles 140 Km que separam Lisboa de Santiago do Cacém e que hoje são vencidos em pouco mais de uma hora consumiram dois dias de viagem, a uma média de 15 Km/h, muito por culpa das deploráveis vias de circulação da época, já para não falar de outro inusitado incidente: logo no primeiro dia, atravessado o Tejo de barco até ao Barreiro e no caminho para Setúbal, onde seria a pernoita, ali para as bandas de Palmela atravessou-se um burro carregado de canas à frente da viatura, a alimária não se mexeu e nem se desviou um milímetro e o choque brutal foi inevitável! Foi o primeiro acidente de automóvel em Portugal, lamentando-se a morte do burro que no entanto foi bem compensada pela avultada indemnização que os donos receberam do condutor da estranha máquina, o Conde d'Avilez, estranha e infeliz criatura que viria a morrer apenas seis anos depois desta aventura vítima de tuberculose, aos 32 anos de idade...                                                                                   



João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

sexta-feira, 9 de outubro de 2020




ANEDOTAS QUE PARECEM POEMAS  -  VIII


 GUERRA DE PALAVRAS...


A batalha estava perdida, a coisa descontrolara-se e agora, separados do seu pelotão que entretanto recuara, o alferes Boaventura e o cabo Fortunato estavam encurralados e ao alcance dos tanques inimigos...  
   - Só temos uma chance de nos livrarmos desta, cabo, peça aí pelo rádio apoio aéreo imediato senão estamos fritos!
Passados poucos minutos do soldado Fortunato ter solicitado ajuda aérea eis que por entre as explosões causadas pelo fogo inimigo ele ouve um barulho familiar ao longe, era a tão ansiada ajuda:
   - Veja, meu alferes, eles vieram, estamos safos!
E depois do entusiasmo inicial os dois ficaram feitos estátuas quando o barulhento Hércules C-130 passou diante deles com uma tarja publicitando "CORAGEM"!      







Adicionar legenda

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

ESCRITO NA PAREDE - X




Maternidade do Olival

 


Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

LAGAR, LEGAR, LIGAR, LOGAR, LUGAR...


Abre-se o dicionário e lê-se:


Lagar - oficina com os aparelhos adequados para espremer certos frutos (uva, azeitona), reduzindo-os a líquido; etimologicamente derivado do latim lacus (cuba) que derivou para lacare (depósito de líquidos);

Legar - deixar como herança;

Ligar - colocar em contacto algo ou alguém;

Logar - neologismo que significa o acto de se ligar a um sistema informático;

Lugar - local onde se está ou se deveria estar...



Alferrarede



Anda-se por este país e constata-se com satisfação que ainda há boas almas que se esforçam para legar às gerações mais novas, e às vindouras também, a sabedoria ancestral de como produzir um dos alimentos mais ricos e importantes da humanidade, o azeite...




Alferrarede


Aproveitam-se rotundas, espaços ajardinados e utensílios que acabariam no lixo e na sucata para se fazer um lagar a céu aberto, um museu... E bastam uns minutos de atenção e o quanto baste de curiosidade para se entrar na tradição da safra da azeitona e na história dos nossos egrégios avós que nos deixaram a receita para o melhor azeite do mundo...



Torres Novas


Tive a felicidade de na minha meninice poder entrar e brincar num lagar de azeite em plena laboração e assim me deslumbrar com aquela engenharia, pelo barulho das mós inclementes a esmagar a azeitona, pelos carrinhos que levavam as ceiras até às prensas através dos carris, pelos tractores que chegavam carregados de promessas, pelo fio de azeite que escorria âmbar e cristalino para as cubas, pelo bacalhau que os lagareiros partilhavam comigo porque viam que eu até me esquecia de ir a casa almoçar...



Torres Novas


E se no futuro terão os meninos que se logar para descobrir o que era isso de um lagar, então  tratemos de lhes legar a sabedoria que herdamos, há que ligar gerações num só lugar...


Mós da minha infância - Parceiros


Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Tanta vida...

 

CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - XXIX


CABEM 60 VIDAS NUMA OLIVEIRA...


Foi preciso encostar ao passar novamente pelas Mouriscas e perguntar pelo caminho a um ancião abancado à porta de um café para me orientar, embora não estivesse perdido andava já há uns dez minutos às voltas à procura de uma placa salvadora mas nem sinal, coisa normal neste país mesmo tratando-se de locais históricos ou de interesse turístico... E só à terceira tentativa tive sorte com o meu informador, outras duas pessoas da zona não sabiam sequer do que se tratava mas aquele velhote de pele gretada e tisnada pelo sol inclemente mas de olhar inquieto e agudo salvou-me do desespero, embora tivesse notado na expressão dele uma certa surpresa, estaria ele a pensar qualquer coisa tipo "mais um maluquinho que vem lá de cascos de rolha só para ver uma árvore!"... Sim, velhote, pensei para mim, só que não é uma árvore qualquer!





Depois foi fácil dar com os Cascalhos, pacata aldeia do concelho de Abrantes e que debaixo daquele abrasador calor exalava o cheiro inconfundível a bagaço de azeitona, nem de propósito, alguém andava certamente em limpezas preparando o lagar para a safra que está próxima e ali estava ela, uma singela placa colocada por mão caridosa a indicar que me encontrava a menos de cem metros do meu objectivo: a árvore mais antiga de Portugal!  

Popularmente conhecida pela OLIVEIRA DO MOUCHÃO, esta simpática e nobre árvore foi estudada, medida e descrita pomposamente pelos cientistas como uma  Olea europeae L. var europeae,  com 6,52 metros de perímetro ao nível do peito, 11,12 metros de perímetro na base e uma altura do tronco de 3,20 metros... Mas o seu principal atributo é a idade, uns científicamente reconhecidos 3350 anos de vida, ou seja, mais de mil anos antes de passar pela cabeça de Deus fazer um filho e enviá-lo para este tresloucado planeta para ser sacrificado (onde tinha o Criador a cabeça para ter ideia tão absurda, é caso para perguntar!?) já esta singela árvore dava azeitona, e sabem que mais, ainda dá fruto, não tão abundante como outrora mas ainda se mantém de pé, íntegra e inteira!    



"A árvore mais antiga de Portugal" - Jean-Charles Forgeronne


As contas são das coisas mais simples e prazenteiras de fazer e cada um pode e deve fazer as suas e à sua maneira, de facto não haverão assim tantas coisas na vida tão democráticas, fáceis e úteis como a de fazer contas e perceber este mundo-cão através dos números... Hoje tive gozo ao fazer esta conta: supondo que a vida humana, em média, tem a duração de 56 anos e se a alguém fosse dada a oportunidade de viver vida atrás de vida então essa pessoa teria que viver 60 vidas seguidas para viver tanto como esta árvore! E entretanto o mundo vai rolando e ela continua lá...


João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)