ESCRITO NA PAREDE - XXXII
LEVAR A CIDADE CONNOSCO
As cidades nunca são as mesmas quando a elas regressamos passados anos e mesmo aquelas que aparentemente se mantêm iguais, sem grandes crescimentos ou construções, a cada visita são diferentes aos nossos olhos, nem que seja devido à saudade e aos afectos... Duas décadas depois regressei a Málaga e a primeira impressão foi avassaladora, muito mais prédios, muito mais trânsito, caótico na verdade, e muito mais pessoas, especialmente turistas trazidos aos magotes pelos monstruosos navios de cruzeiro... Para recuperar a "minha" Málaga de outrora sou então obrigado a demandar o seu coração histórico pois é aí que o tempo se mantém quase inalterado, fecho os olhos e ao abri-los na praça da catedral ou numa ruela estreita dos bairros antigos ou num qualquer jardim tanto se poderia estar a viver o dia de hoje ou outro de há vinte anos atrás, essa sim é a cidade que se leva connosco e que trazemos quando regressamos...
E é precisamente isso que nos diz um verso escrito literalmente numa parede escondida de Málaga e a que nenhum viajante pode ficar indiferente:
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"Não acharás outra terra nem outro mar. A cidade irá sempre contigo" - Foto- J.C.Forgeronne |
E as cidades, tal como os livros e os poemas levam-nos a outros lugares, a outras cidades, a outros livros e a outros poemas, numa infinita viagem por este mundo-cão, e ali, olhando aquela singelo escrito na parede, viajei até outras cidades que carrego dentro de mim, algumas delas sem sequer lá ter estado, por exemplo a Alexandria de Lawrence Durrel:
A CIDADE
Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.
Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável?
Cavafis
(Tradução de Daniel Gonçalves) em "Justine", de Lawrence Durrel
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"Málaga" - Jean-Charles Forgeronne |
João Palmilha
(Viajante de Valmedo)