domingo, 31 de dezembro de 2023

"Natureza-Morte"

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

SONETO DAS PEQUENAS COISAS


De braços ao alto e mui erecto pau,
Em sua concha Neptuno se rende,
Mas sem marinhos cavalos nem tridente
De que nos serve esse deus dos mares?


Ora, trouxe esse suave e liso calhau
Que vais rolando por entre os dedos,
E sonhos e visões e fúrias e medos
De noites frias e sofridos despertares...

E a maré traz ainda coisas pequenas,
Como essas azeitonas ressequidas
Na noite da amora festiva caídas...


E com isso tudo as memórias plenas
Das pequenas coisas que te prestam
Salvam os tristes dias que te restam...
 



J.C.
(Poeta de Valmedo)

sábado, 30 de dezembro de 2023

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXX 


UM POTE CHEIO DE BOA COMIDA

Ali está ele, o pote, ao lado da porta de entrada e quem o vê do outro lado da estrada que corta os Campelos a meio não imagina o reduzido espaço do interior, pequeno mas acolhedor e sempre cheio, e se mais lugares houvesse... Convém pois reservar porque quem ali abanca gosta de comer, de usufruir com tempo os prazeres da boa comida e de conviver ou não fosse um sítio ideal para jantares de grupo e reuniões familiares, desta vez ali pousaram os Snookerentos que já há alguns anos, em épicas disputas, abrilhantam com tacadas de génio e outras avarias as cálidas noites passadas na Associação do Nadrupe...



E por entre acesos debates e partilha de vivas memórias de aventuras passadas (eles foram os extintos Tálentos que já não correm, ainda são Pedálentos mas têm a bicicleta pendurada na garagem e agora combinam-se projectos de futuro enquanto Radicálentos) lá foram chegando em doses generosas as iguarias para a mesa... No POTE tudo merece ser provado e se o bacalhau à casa me encheu as medidas não pude evitar uns olhares de inveja para as costeletas de bovino com que outros se deliciavam ou para o bacalhau com broa mesmo à minha frente... E claro, várias outras opções ficaram prometidas para futuras visitas...




No final, e depois de um banho de simpatia por parte do António Fortunato, o proprietário e chefe de sala, ainda enderecei os parabéns à sua esposa, Dina, cozinheira e doceira, à conta de um dos melhores pudins que já comi, um fantástico pudim de café! E claro, outras doces opções ficaram por lá à minha espera...



João Ratão

(Chef de Valmedo)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

domingo, 24 de dezembro de 2023

 

"Beco do Félix" - Lisboa

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

ESCRITO NA PAREDE - XXX


Paço da Rainha, Lisboa

"Vénus com a murta e Febo com o loureiro,
A ambos suplanta o chá, que ela se digna louvar.
A melhor Rainha, a melhor planta, devemo-las
À intrépida nação que abriu caminho
Até à bela região onde o sol nasce
E cujas ricas produções tão justamente apreciamos.
Amigo das musas, o chá anima a nossa fantasia,
Desfaz as névoas que a cabeça invadem
E mantém sereno o palácio da alma
Pronto a saudar a Rainha no seu dia de anos."

Edmund Waller, 1663 (no 25º aniversário de Catarina de Bragança)



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

O PAÇO DA RAINHA DO CHÁ


Depois de nos termos admirado com o Beco do Petinguim e com o Beco do Félix subimos a Rua de Santa Bárbara e chegamos ao Largo do Conde Pombeiro onde impera o belo edifício da Embaixada da Itália e aproveitamos para recuperar um pouco de fôlego enquanto dizemos no melhor italiano que arranjámos e em voz alta que ninguém ouve "questa città è belissima!"...
Do outro lado da Calçada do Conde Pombeiro e a separar-nos do Campo Mártires da Pátria espera-nos o Paço da Rainha, uma rua larga, quase uma praceta assim chamada porque ali está instalado o Palácio da Bemposta, mandado construir por D. Catarina de Bragança quando regressou a Portugal em 1693 depois de ter enviuvado de Carlos II, rei de Inglaterra... 




Apesar de hoje no palácio estar instalada a Academia Militar ainda se sente por aquelas bandas a atmosfera real do tempo da rainha que deu a conhecer e instituiu a tradição do chá das cinco na Inglaterra, quem por ali deambular encontra-a imortalizada num busto que faz lembrar a Pipi das Meias Altas... 




Em contraponto, do outro lado da rua, fruto dos modernos tempos, abundam casas devolutas, prédios em ruínas e outros, muito poucos, em recuperação... E por entre os sem-abrigo que dormitam nos bancos de jardim a única coisa que destoa é o Observatório Astronómico da Bemposta, ainda bem conservado e popularmente conhecido como a Torre do Relógio, construído no século XIX para que os futuros militares complementassem os seus estudos científicos, já então o Palácio servia de sede à Escola do Exército e da Guerra...




João Conde Valbom

(Olisipógrafo de Lisboa)

 

UM PORTUGUÊS CALCANDO A CALÇADA!


"Este mundo-cão está cheio de macambúzios ambulantes!", tenho a mania de dizer em voz alta para mim mesmo sempre que me ponho a observar quem passa e correndo o risco de alguém que me ouça declarar-me maluquinho... De facto assusta a quantidade de pessoas que por aí caminham ensimesmadas de olhas fixos no chão, sem um olhar sequer para as árvores, para as aves, para o céu, para as flores, para os animais e sobretudo para as outras pessoas que com elas se cruzam e se, dizem os psicólogos e outros especialistas em postura corporal, quem tem o hábito de andar de carranca com a cabeça baixa e olhar fixo no chão são pessoas tímidas, outras tristes e outras solitárias que se recusam a encarar o mundo de frente, então concluo pela amostragem que a saúde mental anda muito por baixo... 




Mas agora que estou sentado num austero banco em pleno jardim do Campo dos Mártires da Pátria, rodeado de árvores pejadas de pássaros, de bancos ansiando pelos velhos e mães recentes de carrinho à ilharga, de mesas de ping-pong à espera de um duelo, de mesas e cadeiras cimentadas para receber os reformados para os torneios da sueca, do ginásio de manutenção para cães ainda vazio, de galinhas e de patos que ora nadam ora passeiam à volta do lago, penso que quem não anda bom da cabeça é quem por aqui passa e não o faz lentamente e de cabeça baixa e olhar fixo no chão, como eu fiz há pouco...




Está de parabéns a Junta de Freguesia de Arroios que em 2006 inaugurou a calçada portuguesa que reveste os corredores do jardim, num autêntico labirinto que nos desafia a descobrir os motivos nele plantados, eles são cães, como não poderia deixar de ser, mas também há galinhas, patos, pombos e outras aves, afinal a fauna que ali habita, para além de um cavalo, um sol e vários desenhos florais... Mas noto que todos os que por aqui passam, uns em ar de passeio outros nem tanto, muitos de telemóvel na orelha, vêm de cabeça levantada, olhar recto e passo decidido, espalhando confiança e coragem por entre a bicharada e no entanto sem reparar na beleza daquela arte que vão inocentemente calcando...




"A partir de agora sempre que vir alguém de cabeça baixa a olhar fixamente para o chão vou olhar também!" - decido mentalmente, desta vez em silêncio, afinal olhar para o chão tem algumas vantagens em relação à postura altiva, pode salvar-nos de tropeçar em obstáculos imprevistos e de dar um sério trambolhão, podemos ter a sorte de achar uma nota de 20 perdida ou então, e não menos relevante, evitamos dar de caras com tantas trombas assustadoras que por aí vagueiam...


João Conde Valbom

(Olisipógrafo de Valmedo)

domingo, 17 de dezembro de 2023

 

TEM MEDO? COMPRE UM JAMES!


"Quem tem medo compra um cão!". A cada dia que passa, o velho provérbio ganha mais sentido e pouco falta para ser considerado uma verdade absoluta deste louco mundo-cão tantas são as evidências que o comprovam, desta vez foi validado por um estudo sueco de 2018 em que durante 12 anos se estudaram 3,4 milhões de pessoas entre os 40 e os 80 anos de idade e as conclusões apuradas apontam inequivocamente para a realidade de que "ter um cão reduz o risco de morrer de doença cardíaca!"...  
De facto, parece que as pessoas que têm apenas como companhia um cão têm menos 23% de hipóteses de morrer de ataque cardíaco, enquanto que na generalidade das pessoas, aquelas que vivem com outras pessoas e um cão também, a probabilidade de morrerem do coração se reduz em 20%! Raios, é muita coisa! Já sabíamos há muito que ter um cão como companhia anulava os riscos do isolamento social e prevenia estados depressivos mais ou menos graves, agora que fazia tão bem ao nosso coração é uma excelente notícia, basta apaixonarmo-nos por um cão e assim vivermos mais tempo e mais felizes e isso é a coisa mais fácil neste mundo tantos são os cães dispostos a amarem-nos e a cuidarem de nós! 
 



E este estudo não é inocente pois segundo uma das suas autoras, sueca, claro, a Suécia é um dos países com mais baixa taxa de propriedade de cães! Tudo bem, pensamos nós que já desconfiávamos que os suecos eram altos, louros, de olhos azuis e com muita queda para a depressão!... Tem medo que o seu coração pare sem aviso? Arranje um cão!!!


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

"My self(ie)"

James

(Cão de Valmedo)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

 


CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLVI


MEDO, ESSA BOA SENSAÇÃO!


Parece que afinal o medo é uma coisa boa! Dizem os entendidos que, na medida certa, o medo é uma reacção instintiva saudável do comportamento humano pois permite-nos que evitemos situações de ameaça iminente para a nossa sobrevivência... Por exemplo, ao explorarmos o topo de uma falésia se não tivéssemos receio de cair de uma grande altura e esborracharmo-nos lá em baixo isso nos daria uma falsa sensação de segurança que nos levaria a não termos tanta cautela em cada passo que se dá e a queda no abismo tornar-se-ia muito mais provável e o mesmo se aplica a milhentas de outras situações em que é percecionado pela mente humana uma situação de perigo!  O que acontece então no nosso organismo quando é disparado o modo de alerta que nos activa para uma reacção de luta ou fuga?
Quando nos sentimos em perigo o nosso Sistema Nervoso Simpático simpaticamente activa uma série de respostas fisiológicas em cascata e que começa com o aumento da produção de adrenalina e outras hormonas que desencadeiam o aumento da frequência cardíaca, a dilatação das paredes musculares dos brônquios, a vasoconstrição dos vasos sanguíneos e a estimulação do sistema gastrointestinal, aquilo a que chamamos um friozinho no estômago ou dores de barriga que podem levar àquilo que é conhecida como diarreia emocional, afinal está provado cientificamente que o nosso cérebro tem uma sucursal no intestino, o que explica porque é que muitas das ideias que temos numa situação de pânico são verdadeiramente ideias de merda, embora muita gente não precise sequer de sentir uma ameaça para as ter e em grande quantidade!


"O Grito" - Munch, 1893


Ora, se já dizia o outro "Quem tem cú tem medo!" e se agora nos diz também a ciência que é bom de vez em quando apanharmos um cagaço, então qual o problema de armarmo-nos em caguinchas de vez em quando, quase morrer de cagunfa ou então borrarmo-nos todos? Afinal tudo descamba na luta pela sobrevivência e herdámos estas estratégias dos tempos ancestrais em que éramos animais selvagens, ao sentirmo-nos em perigo cagámos por onde fugimos para depositar bactérias e toxinas que possam aniquilar quem nos caça (já para não falar do cheiro fétido que pode enjoar o inimigo) e as nossas veias e artérias contraem-se ao máximo para reduzir o perigo de hemorragias se formos feridos, afinal essa é a lei da selva, a maior parte das mortes no mundo selvagem devem-se a hemorragias provocadas por feridas infligidas pelas garras dos predadores...
Mas o medo também pode ser artístico, que o diga Munch que assim relatou no seu diário as sensações que o levaram a pintar um dos quadros mais famosos deste maravilhoso mundo-cão: "Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza."

Viva então o medo, desde que não seja patológico, e desde que não se tenha medo de viver...

João Butterfly

(Analista de Valmedo)

domingo, 3 de dezembro de 2023

 

"Coragem é a resistência ao medo, é o domínio do medo e não a ausência do medo!"


Mark Twain

sábado, 2 de dezembro de 2023

 

TERAPIA M𝄞SICAL


Começo por declarar que a culpa desta crónica hospitalar não é minha, antes é da música, não apenas de uma música em particular mas da música em geral que, estou desconfiado, parece ser o cimento que liga toda a beleza, todo o mistério e todas as incongruências deste mundo-cão e ao qual que lhe dá muitas vezes não só um sentido mas também um refúgio para expiação dos meus pecados... Querem um exemplo? Reparo agora que, enquanto matraco este pobre teclado e as palavras vão aparecendo no monitor, o faço ouvindo Vanessa Daou cantando um poema da feminista Erica Jong numa gravação dos "Muitos Mundos" na Antena 3 e de facto, se estivermos atentos, todos somos confrontados diariamente com muitos mundos, como foi o caso quando ela, carregando o seu mundo, entrou na Sala de Colheitas para fazer análises...

Ela era uma grávida vinda da Consulta de Bem-Estar Fetal e assim que entrou na sala agitada eu cheirei-lhe algum nervosismo, ela ali, estacada de senha na mão aguardando um sinal, e então eu disse: "Bom dia, o seu nome completo?". Depois viriam as perguntas e as observações oficiais da minha cartilha: "Ponha aí as suas coisas e depois sente-se aqui nesta cadeira, por favor"; depois seria "Qual o braço melhor para o castigo, onde tem a melhor veia?"; depois "Feche a mão, não mexa agora!"; "Pronto, pode abrir, carregue aqui com força!"; e passados dois ou três minutos enquanto ponho o penso rápido "Pode tirar, bem disposta?; finalmente, "Pronto, despachada! Tenha um bom dia..."
Felizmente na maioria dos casos o atendimento é assim, rápido e eficiente para satisfação de todos e especialmente daqueles utentes que se querem ver dali para fora o quanto antes mas nem sempre é assim, há casos em que a estratégia tem de ser outra como nas situações de veias difíceis ou inexistentes em adultos ou então crianças que entram em pânico e o estendem aos pais, gente que não pode ver sangue ou com fobia a agulhas, ou ainda nos muitos idosos que se pudessem por ali ficar a manhã toda a trocar conversa e assim apaziguar a solidão... Muitas vezes perco demasiado tempo mesmo sem tempo para tal, as pessoas não podem ser apenas números para estatísticas, às vezes um pouco de atenção torna-se uma poderosa terapia e mais eficaz que muito comprimido... E não é que assim corro grande risco de ser pouco produtivo?!  Ainda me lixo um dia destes... 



Mas no caso da Ivania, assim se chamava a grávida sentada na minha cadeira, a cartilha foi imediatamente posta de parte quando me mostrou o braço tatuado para a picada e eu leio em voz alta para ela também ouvir: 

"I'll tell you
 my sins and you
 can sharpen your
 knife"

- "Bem, - disse eu com a borboleta na mão e com alguma esperança de ter piada - não tenho faca mas afiei a minha agulha, vamos a isto?
Felizmente ela sorriu, sinal de que o nervosismo estava controlado e depois, já com a seringa atestada, não resisti:
- "Donde é que vem isto? Um poema?" 
- É de uma música... do Ozier... - responde-me ela de olhar desafiante...
E eu que, completamente às aranhas, não me lembrava de nenhum Ozier, quem seria, um artista novo? - interrogava-me - ainda tive que ouvir alguém do outro lado da sala a dizer pomposamente:
- "Take me to the church", é o nome da canção!
- Isso mesmo! - disse uma sorridente e aliviada Ivania... 
E eu, metendo a ignorância musical no saco, despedi-me da Ivania com um sorriso retribuído e imaginando que mundo ela carregaria, seria aquele um poema de amor ou de catarse religiosa? Que seja feliz, é o que importa...
Infeliz tenho eu andado depois de descobrir o "Take me to the church", editado há dez anos (!) e que me passou completamente ao lado... Bem, mas a distracção e a alienação também fazem parte do mundo-cão, ou não?




OZIER - Take me to the church


João Butterfly

(Analista de Valmedo)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

 

CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLV

O MISTÉRIO DA ESTRADA DO TOXOFAL


Não, caro amigo leitor, esta não é uma sequela de "O Mistério da Estrada de Sintra", a primeira narrativa policial da literatura portuguesa, escrita a meias por dois grandes amigos, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, que durante dois meses do verão de 1870 a enviaram diariamente sob a forma de cartas anónimas para o Dário de Notícias que por sua vez as publicava como se de reportagens verídicas se tratassem, e apesar do grande sucesso a obra só seria publicada em livro 14 anos mais tarde... Enquanto pela estrada de Sintra o mistério envolveu um rapto e um assassinato por aqui pelo Toxofal o mistério deve-se a uma caixa de correio, isso mesmo, não leu mal, uma enigmática caixa de correio!
A estrada que liga a Zambujeira ao Toxofal de Baixo tem dois quilómetros de extensão, isto é, menos de meia légua se preferirmos medir à maneira do Sherlock Holmes e é ladeada por eucaliptais, terrenos de cultivo e alguns pomares e quem desce para o vale depara-se a meio com uma cena bastante invulgar: à beira do caminho e à frente de umas antiquíssimas ruinas alguém se deu ao trabalho de plantar uma caixa de correio novinha em folha, com fechadura e tudo, assente num alvo pilar de pintura ainda fresca!
Não há vivalma por ali a não ser algum animal selvagem que se esconda no mato, a casa em ruinas é inabitável há séculos e as casas mais próximas estão bastante longe, que raio? E depois reparo então no pormenor do azulejo com o número 56, mas que é feito da sequência? Seria suposto encontrar os números de porta 54 ou 58 nas casas mais próximas mas não faz sentido, elas estão tão longe e em ruas tão pequenas que nem até ao 10 se conta... 



Coitado do carteiro que ali tiver que entregar uma carta registada e que bem pode morrer à espera que alguém o atenda! Sigo viagem e enquanto não encontro ninguém que me esclareça o significado do insólito achado vou matutando naquele mistério e baseado na minha própria experiência só me vem uma solução lógica à cabeça: porventura será um grito de revolta por causa de uma merdança! Uma merdança é uma herança de merda, um presente envenenado que só traz chatices e nenhum proveito a quem a recebe e ainda que não a queira herdar, por exemplo uma casa velha e ilegal como me aconteceu, ser responsável por uma merdança pode causar aos mais frágeis sérias úlceras nervosas, para a legalização de umas ruinas é preciso entrar com todo um conjunto de projectos, autorizações, pareceres e taxas para aqui e para acolá como se fosse construir um palácio novinho de raiz! A burocracia e os custos relacionados com a habitação e até terrenos rústicos é tal que desmoraliza o santo mais paciente neste país alicerçado nos impostos; e depois, quem quiser vender uma casita por mais modesta que seja tem que ter consigo a bendita licença de utilização, esse santo graal que só serve para se desistir em muitos casos antes de se cair na penúria e então se a casa foi construída depois de 1951, ainda que em ruínas, o calvário ainda é maior, apenas estão isentas as contruídas antes daquele ano, vá lá encontrar-se lógica ou proveito nesta insanidade! Ora, agora que estou a chegar a casa sinto orgulho nas minhas células cinzentas e convenço-me de que resolvi o mistério: alguém herdou aquelas ruinas que outrora foram uma casa construída em 1956 e para se desfazer daquilo tem que fazer obras e obter licença para tal ou então demolir, em qualquer dos casos perde tempo, saúde mental e rios de dinheiro nas taxas e mais taxas que o esperam... Aquela caixa de correio é portanto, diz o meu Poirot interior, um monumento irónico às merdanças deste mundo-cão! Será?  


João Abelhudo

(Investigador de Valmedo)

domingo, 19 de novembro de 2023

 

LENDAS E NARRATIVAS - XVIII

QUEIMANDO MAUS ESPÍRITOS E BRUXAS


A luz pálida do entardecer embelezava o vale e enquanto descíamos aos ziguezagues pelo caminho de terra bastante sulcado pelas últimas chuvadas tive a sensação de que estávamos prestes a entrar noutra dimensão e tentava convencer-me de que não estava apenas a ser sugestionado pelo carácter especial da reunião, parecia-me mesmo que iríamos em breve mergulhar num mundo de maravilhosas coisas e como a escuridão ainda não engolia o cenário já se vislumbrava lá ao fundo os contornos encantadores da Capa Negra...  



Os amigos iam chegando alegres e carregados de iguarias para a celebração, calhava ser sábado e dia de descanso para alguns, de folga para outros e dia de santo magusto para todos... E enquanto a mesa ia ficando composta e a Dininha andava lá fora desafiando o lusco-fusco de volta das brasas para a prometida castanhada, iam nascendo como cogumelos conversas de actualização dos acontecimentos desde a última reunião, há sempre novidades acerca deste mundo-cão que gira depressa demais...   



Mas esta noite em particular trazia outro aliciante, depois das castanhas e da ceia entraria em cena a saudosa queimada, ideia da e coisa que já não era feita por nós há décadas... E que melhor ocasião para encenar esse ritual de afastamento de maus espíritos, bruxas e maus-olhados do que uma reunião de amigos e em que alguns deles têm tido tão pouca sorte entretanto que até parece terem sido amaldiçoados? Obriga a tradição oriunda da Galiza e do norte de Portugal que após a ceia e na obscuridade da noite se reúnam os comensais ao redor do pote onde se vai elaborar esse purificador licor, de preferência com as luzes apagadas...   




Manda a lenda que num pote de barro se deve botar a aguardente (e neste caso o Jorge Humberto fez questão de ser uma de medronho lá do Estreito, mal empregada pensei eu!) e o açúcar amarelo na proporção de 120 gramas por cada litro; depois juntam-se pedaços de maçã, uvas, cascas de limão ou de laranja e alguns grãos de café por moer; mexe-se tudo; à parte, colhe-se uma porção da bebida com uma concha, sem limão nem café, e pega-se-lhe fogo; seguidamente introduz-se a concha a arder no pote e mexendo devagar vai-se permitindo que as chamas do álcool subam em cascata... Espera-se que a queimada se apague por si própria e depois há que recitar o esconjuro, desta feita a meu encargo:




"Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, trasgos e diabos,
espíritos das enevoadas veigas.
Corvos, píntigas e meigas:
feitiços das mezinheiras.
Podres canhotas furadas,
lar dos vermes e alimárias.
Fogo das Santas Companhas,
mau-olhado, negros feitiços,
cheiro dos mortos, trovões e raios.
Uivar de cão, pregão da morte;
focinho do sátiro e pé do coelho.
Pecadora língua da má mulher
casada com um homem velho.




Averno de Satã e Belzebu,
fogo dos cadáveres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernais cus,
mugido do mar embravecido.
Barriga inútil da mulher solteira,
falar dos gatos que andam à janeira,
guedelha porca da cabra mal parida.
Com este fole levantarei
as chamas deste fogo
que assemelha o do Inferno,
e fugirão as bruxas
a cavalo das suas vassoiras,
indo-se banhar na praia
das areias gordas.



Ouvi, ouvi! os rugidos
que dão as que não podem
deixar de se queimar na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando esta beberagem
baixe pelas nossa goelas,
ficaremos livres dos males
da nossa alma e de feitiço todo.
Forças do ar, terra, mar e fogo,
a vós faço esta chamada:
se é verdade que tendes mais poder
que as humanas pessoas,
aqui e agora, fazei que os espíritos
dos amigos que estão fora,
participem connosco desta Queimada."



"Os amigos"

E que deliciosa estava a queimada...


João Abelhudo

(Pesquisador de Valmedo)

terça-feira, 14 de novembro de 2023

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXXVI


TERAPIA NA DECADÊNCIA

Chega um dia e a decadência anuncia-se, primeiro com uma dorzita aqui e outra acolá, depois com episódios de fadiga que nos mostram que o organismo já não aguenta tudo como dantes, uns lapsos de memória à mistura e depois, paulatina mas inexoravelmente, sentimo-nos a envelhecer a um ritmo assustador, de há uns tempos a esta parte, por exemplo, quando me levanto depois de mais uma noite meia dormida meia insone os meus ossos desatam a estalar por todo o lado numa sinfonia que até faz levantar as orelhas curiosas do James... Às vezes dou comigo a pensar se não deveria investir numa terapia anti-decadência, à semelhança de Laurence Passmore,  a personagem de "Terapia" de David Lodge que, apesar de ter uma vida invejável, um carro de luxo, dinheiro em quantidade mais que suficiente e um casamento de sucesso e dois filhos bem orientados na vida, e ainda uma amante para momentos platónicos, não consegue lidar bem com a idade nem com o seu aspecto nem com uma dor irritante que lhe apareceu do nada no joelho, sem diagnóstico nem tratamento que resolva, e assim vai sofrendo de uma inexplicável depressão e angústia existencial à boa maneira de Kierkgaard, com o qual se identifica... 
Estas aventuras, descritas com um sentido de humor delicioso, tornam a leitura uma bela terapia para qualquer angústia ou estado depressivo...



 
"O resultado foi ter descoberto em mim uma curiosa e embaraçosa relutância em levar a cabo o objectivo amoroso da minha viagem e, no momento em que a bela Samantha me ofereceu todas as delícias do seu corpo sumptuoso, não consegui aproveitá-las. Havia qualquer coisa a deter-me, e não era o receio da impotência ou de fazer piorar a lesão no joelho. Chamem-lhe consciência. Chamem-lhe Kierkgaard. Tornaram-se uma e a mesma coisa. Acho que Kierkgaard era o homem magro que estava dentro de mim a lutar para sair cá para fora, e em Copenhaga conseguiu finalmente sair."


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

sábado, 11 de novembro de 2023

 

"Há um incêndio no interior de um teatro. O palhaço sobe ao palco para avisar o público. Eles pensam que é uma piada e aplaudem. O palhaço repete e é aplaudido ainda com mais entusiasmo. É como eu penso que o mundo chegará ao seu fim: sendo aplaudido por testemunhas que acreditam que tudo não passa de uma piada!"


Søren Kiekergaard

Filósofo (1813-1855)

 

EFEMÉRIDE # 99

AS ANGÚSTIAS EXISTENCIAIS

No dia 11 de Novembro de 1855 morria em Copenhaga aos 42 anos de idade e depois de uma vida atribulada o filósofo dinamarquês SØren Kierkgaard, considerado o percursor do existencialismo, pensamento que viria depois a ser desenvolvido no século XX por filósofos franceses, com destaque para Sartre e Camus...
Foi de facto com Kierkgaard que tive a primeira epifania filosófica da minha existência  ao ler estas suas palavras: "A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás mas só pode ser vivida olhando para a frente!". E de facto, desde que me lembro, quando desatava eu de vez em quando a pensar sobre o sentido da vida era mesmo essa a conclusão a que chegava, se estava ali naquela situação depois de livremente ter escolhido entre muitas escolhas possíveis ao longo do percurso, umas certas e outras erradas certamente, a coisa ganhava sentido, fruto de acontecimentos fortuitos mas essencialmente de uma cascata de decisões pessoais... E às vezes duvido se teria que ser mesmo assim, aceitando a ideia do destino, ou se poderia ter seguido outros insondáveis caminhos, quantas vidas poderíamos ter tido se voltássemos ao passado e alterássemos algumas escolhas? E ainda muitos há que admitem que voltariam a fazer tudo da mesma maneira...


Kierkgaard

Opondo-se à filosofia abstracta e especulativa, Kierkgaard foi o filósofo da angústia, do desespero que ele considerava uma "doença mortal" e da culpa devido a uma educação religiosa impiedosa por parte de um pai tirano, estados de alma que segundo ele tornavam a existência um aborrecimento e um vazio porque o individuo se confronta com um mundo repleto de expectativas e sonhos irrealizáveis; mas também foi o filósofo da ironia e do humor, ferramentas que segundo ele permitem a evolução do pensamento e da auto-descoberta que valoriza o individuo que, ao fim e ao cabo, é o único capaz e  responsável por dar significado à sua vida neste absurdo mundo-cão...
A grande diferença entre Kierkgaard e os existencialistas ateus do século XX é a religião da qual nunca se conseguiu livrar, a busca de Deus levou-o inclusive a abandonar o amor da sua vida, decisão da qual parece se ter arrependido mais tarde e tarde demais...

Yuehan Kaluosi

(Filósofo Taoísta de Valmedo)

terça-feira, 7 de novembro de 2023

"Baleal", 2017 - Desenho de João Catarino

 

 

FELIZES MOMENTOS ANTI-DEPRESSIVOS



Levanto a cabeça e dou os bons-dias à Grazi que pendurada à janela lá no alto ia numa conversa entretida com a lojista lá em baixo no outro lado da rua, pondo as notícias em dia, as do bairro, as da vila e as do país que acordara há pouco mergulhado em mais um grande escândalo de corrupção política... Em busca de uma caixa de pagamento automático entro pela rua João Luís de Moura abaixo, mais conhecida pelos lourinhanenses por Rua Grande e logo após passar pelo terrível pterosauro sou surpreendido pelo cartaz de uma exposição temporária patente na Galeria Municipal, quase a expirar de prazo, e não consegui resistir, uns minutos não iriam comprometer o dia sem grande agenda...


João Catarino é professor de Desenho e Design mas é especialmente conhecido pelo seu trabalho como ilustrador em diversos jornais, revistas, livros e até canais de televisão e tem acima de tudo uma maravilhosa mania, para onde quer que vá, nos seus curtos passeios ou em viagens mais longas, leva um caderno para desenhar...  Ora, ao longo de anos acumulou cadernos de desenhos sobre os mais variados ambientes mas especialmente sobre a orla costeira, a verdadeira linha de fronteira entre dois mundos...


"Os Cadernos"
Desenha especialmente pelas praias e cenários da linha, assim chamada por causa da linha de comboio, afinal o comboio foi feito para servir as praias depois chamadas da linha e só agora é que serve principalmente os dormitórios que se instalaram ao longo da linha, da Cruz Quebrada a Carcavelos, da Parede ao Guincho... Mas João Catarino também demanda as praias da Ericeira, Peniche ou da Figueira da Foz... E só é pena que os "desenhos do dia", o seu blogue, se tenha ficado por 2016, talvez porque não há tempo para tudo neste mundo-cão que gira rápido demais...




"Praia da Almagreira", Peniche, 2023


Quando saí para a rua olhei o céu temporariamente azul e luminoso e inspirei fundo, fechei os olhos e alheado dos ruídos urbanos senti-me feliz, aqueles desenhos têm o mesmo efeito ou melhor do que muitos antidepressivos, convenci-me, e sem efeitos secundários nocivos à vista...
 

João Plástico

(Artista de Valmedo)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

 

OS EUROS, OS SONHOS E OS ANOS...


Hoje é um dia histórico, isto é, este dia 6 de Novembro de 2023 ficará definitivamente para a posteridade porque mesmo que nada de revelante mais aconteça é o dia em que nasce o EURO DREAMS! E eu, que  arrisquei logo a sorte quando chegou o velhinho Totoloto ainda no século passado e que voltei depois a jogar com fervorosa fé no primeiro sorteio do apetecível Euromilhões há vinte anos atrás, não poderia faltar agora ao desafio de inaugurar o novel EuroDreams! Eis a prova:



Nunca fui adepto da lotaria embora sempre nutrisse um fascínio pelos cauteleiros lisboetas quando há muito tempo atrás me cruzava com eles durante as férias juvenis na capital do reino e especialmente pelo anúncio cantado dos prémios transmitido em directo pela telefonia de então, não sou nem de longe viciado na raspadinha embora as compre e das mais baratas quando me dá a veneta, não frequento sequer casinos mas tenho uma paixão pelo jogo, gosto de jogar a tudo, a dinheiro, à honra ou a feijões, não interessa, seja às cartas, aos dados, ao snooker ou aos matraquilhos, desafiar a sorte e aparar o azar faz parte do  jogo da vida; às vezes alegres, outras vezes tristes, mas sempre desfrutando.... O fascínio do jogo, do desafio, da felicidade...



Longe vão os tempos em que ainda menino fazia com fervorosa dedicação a chave simples do Totobola que me era permitida pelo meu pai no boletim semanal dele e eu, tardes de domingos inteiras de ouvido colado à telefonia a ouvir os relatos a ver se almejava o 13 mágico que me daria uma vida de sonho mas desde aí, e sempre desde então, me convenci que é possível a grande sorte, prova disso são os felizardos milionários que por ela foram surpreendidos, ainda há uma semana calhou aqui pelo Oeste, parece que em Mafra... Pode nunca calhar, é quase certo, mas também pode calhar no nosso último dia de vida, aquela chave secreta que vimos em sonhos pode bem ser a última coisa boa que nos pode acontecer um dia... Basta jogar, pelo simples prazer de ir a jogo e sonhar, apesar dos anos irem somando sem nada ganhar...
Amanhã vos digo da minha sorte...


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

 

NOMES, SIGLAS, ACRÓNIMOS...


À primeira vista parecem gansos, mas será que são mesmo gansos?




E o GRAU, quem é? Será o artista que depois da obra acabada ali repousa indolentemente rolando um malmequer entre os dedos?



 
E GRAU, será apenas nome de gente? Tipo João Grau ou Manuel Grau? Ou será antes um acrónimo que brilha quando deriva da sigla Grito de Raiva de Arte Urbana?

O mistério mantém-se algures por Torres Vedras, desafiando as nossas pobres células cinzentas, como diria o impagável Hércule Poirot... 


João Plástico

(Artista de Valmedo)


 

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

ESCRITO NA PAREDE - XXIX


Lisboa, 2023

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

EFEMÉRIDE # 98


TREMENDO DE LISBOA A SALAMANCA ...


Consta que por Salamanca o dia 1 de Novembro de 1755 corria ameno e bonito até ao momento em que a terra tremeu de tal forma que a imponente torre do campanário da Catedral sofreu graves danos na sua estrutura, tudo culpa do terrível terramoto que assolou especialmente a então próspera metrópole de Lisboa, a 500 quilómetros de distância, e cujos relatos da destruição na capital lusitana causaram espanto e susto por toda a Europa...


Catedral de Salamanca



"Terramoto de 1755" - João Glama
Assente sobre uma das torres românicas da velha catedral do século XII e com os seus 98,6 metros de altura, a actual torre bem pode ser considerada um símbolo de resiliência e orgulho salamantino pois já em 1705 tinha levado com um raio em cima que provocou um incêndio que lhe destrui grande parte do corpo superior...
E ali continua ela serena, tornando os dias amenos e solarengos de Salamanca ainda mais belos, preparada para os tremores que dizem hão de vir outra vez de Lisboa, um dia...  


João Breve

(Cronologista de Valmedo)