QUANDO UM OLHAR VALE MAIS QUE MUITA CONVERSA...
- Que é isto, James?
Primeiro, amigos caninos, fiz que não ouvi, ou antes, que ouvi mas que não percebera que era comigo que o J.C se estava a meter, porque isto de se fazer despercebido na nossa espécie é por vezes complicado... Já repararam decerto, e isso acontece frequentemente comigo, que há respostas involuntárias do nosso corpo e que mesmo que não queiramos por causa delas somos traídos, como é o caso desta minha estúpida cauda que abana desalmadamente sempre que vejo alguma pessoa que me agrada ou até, o que é pior, sempre que ouço a voz dos que me são mais próximos... Oh, e tantas são as vezes que me faço eu de morto, todo esparramado e silencioso, coladinho ao chão e deitado de lado, tipo estou a dormir ou ausente noutra galáxia, e de repente tudo vem por água abaixo porque lá se me abana a cauda, porque raios não sei... O que sei é que assim não há estratégia que resulte com este erro da evolução da nossa espécie, somos atraiçoados por não sei quantos músculos involuntários que põem a nu as nossas emoções. Que injustiça! Não acham?
- Não te faças de parvinho, James, ouviste?
Pronto, lá se me abanou a cauda outra vez! Não vos tinha dito? Isto assim não dá... E apesar de saber porque é que estava a ser chamado à pedra, tinha feito inadvertidamente um xixizeco fora do sítio, um daqueles irresistíveis apelos da natureza tipo marcar território, sabem, outra saída não tive que encarar o J.C, abrindo os olhos e colocando a melhor expressão possível, género "que se passa?"...
- Ah, e ainda por cima fazes-me olhinhos?
- Que olhinhos? Estou apenas a olhar para ti...
- Mas olha que desta vez não te safas, ouviste? Bem sei que tu e os da tua espécie têm essa arma poderosa que é o olhar...
E então o J.C contou-me que tinha lido recentemente uma notícia no jornal que dava conta de uma investigação científica que concluíra que nós, cães, durante os trinta mil anos que leva o nosso convívio com os humanos, desenvolvemos uns músculos especiais à volta dos olhos e que nos permitem levantar as sobrancelhas e assim comunicar com os humanos através do olhar... Parece que assim ficamos com ar de anjinhos, tipo criaturas inocentes que merecem ser perdoadas de qualquer falta e a necessitar como de pão para a boca de muitos miminhos e festinhas... Essa capacidade, que os nossos primos lobos não têm, permite-nos então comunicar e interagir com as pessoas, reforçando os vínculos afectivos!
Bem, ao menos nem tudo é mau, assim fica compensada aquela desvantagem da cauda, não acham amigos caninos? Bem, e agora que eu já estava farto de fazer olhinhos ao J.C e que me convencera até que com todo aquele palavreado ele já se esquecera do incidente e da reprimenda, eis que oiço:
- James, apesar dos teus belos olhinhos e do focinho simpático que tens, ficas de castigo, ouviste? Nada de fazer as necessidades fora do penico, e muito menos na garagem, entendido?
Claro que entendi, aliás já tinha entendido da última vez só que o apelo tinha sido demasiado forte para mal dos meus pecados, é que o J.C, zangado, nem um coiratozinho das entremeadas do almoço me deu, e que bem que elas cheiravam, que sofrimento! O que vos digo, amigos caninos, é que não basta confiarmos nos nossos músculos especiais à volta dos olhos e em trinta mil anos de adaptação ao mundo-cão dos humanos, temos que continuar a evoluir para dar a volta aos donos mais exigentes! E já estou a treinar, amigos caninos, já tenho dois novos olhares, da próxima digo-vos se surtiram efeito...
JAMES
(Cão de Valmedo)