domingo, 30 de julho de 2017


VIAGENS PELA HISTÓRIA


OS FRADES, OS FAMOSOS E O GATO - II



Podemos imaginar que, perante as calamidades naturais que assolaram o Convento de São Bernardino (terramoto e inundação), os frades franciscanos aí cativos não tenham tido uma vida fácil, embora tenha sido certamente sido bem melhor que a de outros religiosos seus contemporâneos... Que dizer então dos seus irmãos da Ordem de São Jerónimo que tiveram a coragem de fundar um mosteiro em plena Berlenga Grande (a única ilha do arquipélago habitável), corria o ano de 1513 e que, não só enfrentando as calamidades naturais, tiveram ainda que suportar a escassez de alimentos, as doenças e principalmente os frequentes e bárbaros ataques de piratas e corsários ingleses, franceses e até do norte de África? A sua providencial missão seria prestar auxílio à navegação e às vítimas dos frequentes naufrágios naquela zona mas, afinal, e também porque estavam isolados da península por causa do mar inclemente, quem necessitava de grande ajuda eram eles mesmos, abandonados no turbilhão de uma reclusão impossível...



Forte de São João Baptista, antigo mosteiro



Não admira, portanto, que D. JOÃO IV, em 1655, determinado em criar uma linha de fortificação para a defesa do litoral, tenha ordenado a demolição das ruínas do mosteiro há muito abandonado e que, a partir das suas pedras, fosse edificado o FORTE DE SÃO JOÃO BAPTISTA DAS BERLENGAS, ainda hoje de pé e resistindo à inclemência de Neptuno.... Mas entretanto, para além do Forte das Berlengas e da Fortaleza de Peniche (esta já então velha de 100! anos) e para criar uma linha de defesa do estuário do Tejo e que ia de Peniche a Cascais,  já tinha também D.João IV mandado erigir o FORTE DA CONSOLAÇÃO, em 1641, exactamente a meio caminho entre Peniche e São Bernardino....




Forte da Consolação


E podemos ainda imaginar que poderão ter sido os frades franciscanos de São Bernardino a descobrir em primeira mão, numa das suas deambulações pelas redondezas, a cura para muitos males e enfermidades de que padeciam, afinal não passavam eles grande parte da vida em genuflexão ou de mãos unidas e braços esticados bem ao alto, em preces celestiais? Se as dores da alma poderiam ser curadas pela fé e pela entrega, as do corpo eram mais difíceis de tratar mas o alívio e a consolação estavam mesmo ali, numa enseada próxima do convento, sobre estranhas e negras rochas à beira da arriba que hoje sustenta o forte...
Caso raro em todo o mundo e parece que único na Europa, o IODO acumula-se de forma extraordinária nas rochas terapêuticas, promovendo milagres ao nível dos ossos e das articulações.... E por lá também abunda a ARGILA da Consolação, essa pasta milagrosa com que as pessoas se besuntam e aliviam enfermidades de pele e ligamentos...




Rochas medicinais da Consolação



E depois da construção do Forte da Consolação foram precisos ainda mais 33 (!) anos para que um outro forte, mais a sul de São Bernardino, fosse construído, o FORTE DE PAYMOGO, em 1674, já no reinado de D. AfonsoVI, ou mais propriamente na regência do seu irmão, D. Pedro II, numa história digna de Alexandre Dumas e do seu conde traído e enclausurado....
E assim, com tanta fortaleza, podiam os frades de São Bernardino dormirem descansados e afoitarem-se mais em explorações pelas redondezas, não corriam o risco de serem atacados por piratas e outros bandidos como tinham sido os frades jerónimos das Berlengas e então porque não imaginar ainda que, tendo os franciscanos explorado a costa para norte até à Consolação, porque não o teriam feito também para sul? E de facto, ali mesmo à ilharga do Forte de Paimogo, abriga-se a PRAIA DE VALE DE FRADES...





Praia de Vale de Frades, com o Forte de Paimogo ao fundo




(Fotos: Jean Charles Forgeronne)




João Alembradura

(Historiador de Valmedo)


sexta-feira, 28 de julho de 2017




VIAGENS PELA HISTÓRIA


OS FRADES, OS FAMOSOS E O GATO - I


São Bernardino de Siena foi um missionário franciscano e o pregador mais famoso na Itália do séc. XV. Nunca chegou a saber que em 1451, passados sete anos após a sua morte, seria eleito o padroeiro de um convento fundado sobre uma falésia, entre Peniche e Lourinhã, o CONVENTO DE SÃO BERNARDINO, e que, por arrasto, a povoação que cresceu à sombra da assembleia religiosa também levaria o seu nome....



Convento de São Bernardino


Não teve vida fácil este convento pois em 1531 foi parcialmente destruído por um terramoto e, talvez porque o Rei D.João III (devotíssimo católico) tivesse muito mais em que pensar, ele que herdou um vastíssimo império de seu pai, o eremitério lá foi albergando os frades por entre ruínas durante 30 anos e foi necessária outra calamidade, uma grande inundação ocorrida em 1563, para que finalmente se tomasse uma decisão e ela foi a de refundar um novo edifício num local mais acima da linha costeira, onde permanece até aos dias de hoje....




Consta que um pinhal ligava o convento à praia, hoje chamada a preceito de PRAIA DOS FRADES e até podemos imaginar os devotos franciscanos a descerem por ali abaixo, numa romaria até à beira-mar, envoltos pelas fragrâncias dos pinheiros e, enquanto uns se limitariam a uma contemplação do infinito e ímpar azul daquela réstea de Atlântico, outros, mais afoitos, desfaziam-se das suas vestes e sandálias e baptizavam-se em mergulhos de abandono naquelas águas frias  mas bentas...




Ali viveram os frades por quase 400 anos até 1834, quando no rescaldo da vitória dos liberais sobre os miguelistas, Joaquim António de Aguiar promulgou a Reforma Geral Eclesiástica e que levou à extinção das ordens religiosas, tomando o Estado posse de todas os conventos, mosteiros, colégios e outras casas religiosas...
O convento só voltaria a ter uma nova vida quando em 1912 é transformada numa Escola - Colónia Agrícola, sob a égide da Casa Pia, tendo sido para lá transferidos 35 alunos vindos dos claustros dos Jerónimos, todos eles considerados anomalias pedagógicas, eram demasiado anormais devido à sua extrema desinquietação e grande retardamento... O Convento de São Bernardino passou então a ser uma escola especial para rapazes especiais...




São Bernardino

Mas por entre tanta anormalidade havia obra meritória dentro das paredes do convento e a imagem de marca da Colónia haveria de ser a perícia que os retardados mostravam nos trabalhos agrícolas quer nas oficinas.... E depois, por vezes, havia que descomprimir, desde um salto à praia para uns banhos retemperadores até aos jogos de futebol ou até à exibição de peças de teatro! Muita coisa acontecia e, portanto, era uma escola bem mais normal do que tantas outras que existem actualmente e que, por falta de meios ou de empenho, pouco produzem...
No entanto tudo era transitório e em 1927 a instituição seria transformada numa Colónia Correccional Feminina (mudaria o género mas manter-se-ia a anormalidade e o retardamento) e passados 40 anos ainda seria chamado de Instituto de Reeducação. Ainda em 1995 passaria a ser denominado Colégio São Bernardino, tendo  este sobrevivido até 2007! Hoje já não há alunos, nem normais nem retardados, no Convento de São Bernardino, e muitas histórias haveria por contar certamente mas, é como diz o ditado, só as sabe quem lá andou dentro...




O mar de São Bernardino


(Fotos de Jean Charles Forgeronne)




João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

terça-feira, 18 de julho de 2017





"O sinuoso caminho que leva ao Jardim da Tranquilidade passa pelo respeito e pela educação e faz-se corrigindo (criticando) em privado e elogiando em público..."



Yuehan Kaluosi

(Filósofo Taoísta de Valmedo)

sexta-feira, 14 de julho de 2017





EFEMÉRIDE # 19


REVOLUÇÃO, ILUSÃO, REFLEXÃO...


Passam-se hoje 228 anos sobre a tomada da Bastilha! E tal acontecimento ficou, talvez para sempre, como símbolo da REVOLUÇÃO FRANCESA... De tal forma assim é que este dia é assinalado como o principal feriado da nação gaulesa que, aliás, o comemora com pompa e circunstância.... Mas um símbolo não passa disso mesmo, é apenas um sinal no caminho efervescente da história.... 





Tomada da Bastilha - Jean-Pierre Houelle, 1789


Façamos então um pouco de reflexão sobre as revoluções, sob o olhar do ilustre  GRAHAM SWIFT e através da sua personagem Tom Crick, um professor de História em plena e aguda crise existencial, no seu seu magnífico romance "O PAÍS DAS ÁGUAS":


" Mas não sobrestimemos as características reais ou os verdadeiros acontecimentos da QUEDA DA BASTILHA. Sete prisioneiros  libertados (era tudo o que a fortaleza continha: dois loucos, quatro falsários e um devasso miserável). Sete cabeças - a do governador e seis guarnições de defesa - passeadas em fueiros. Duzentos ou mais dos assaltantes mortos ou feridos. As próprias pedras da Bastilha, uma montanha de entulho, levadas por empreiteiros profissionais e vendidas com bom lucro...."









"Porque é que esta revolução, em nome da liberdade e da igualdade, acabou com um imperador? Porque é que este movimento pela abolição definitiva do ancien régime acabou com uma reincarnação do velho Rei Sol? Porque é que esta revolução, que efectivamente fez reformas duradoiras, não o conseguiu fazer sem MEDO e TERROR, sem o amontoar, só nas ruas de Paris (estimativa aproximada) de seis mil cadáveres, para não falar dos milhares de cadáveres no resto da França, ou nos inúmeros cadáveres de italianos, austríacos, prussianos, russos, espanhóis. portugueses, ingleses - que haveriam de espalhar-se pelos campos de batalha da Europa? (...) E porque é que, de cada vez, o que se passou antes nada nos ensina?" 









Às vezes, os melhores livros de HISTÓRIA são aqueles que contam apenas histórias e que permitem ao leitor uma capacidade interventiva, cultural, crítica e subjectiva sobre um determinado acontecimento, coisa que os compêndios oficiais, herméticos e pesados, cheios de dados e verdades absolutas, gráficos e mapas sugestivos e decalcados de outros tantos com décadas de existência não conseguem, às vezes apenas tornam a história num catecismo cinzento, ortodoxo e pouco entusiasmante...

A verdade é que o processo revolucionário francês decorreu ao longo de 10 (!) anos, desde a tomada da Bastilha até à tomada de posse napoleónica, e muita devassa aconteceu deveras... A Bastilha não passa apenas de um breve capítulo de um romance intenso e perverso....

Alguém (Il Gatopardo de Lampedusaafirmou que, em processo revolucionário, preciso mudar o que for preciso para que tudo continue na mesma"... ou seja, que as revoluções precisam de multidões mas que não são as multidões que fazem as revoluções! Quem fez a revolução francesa? O povo, que pouco tempo depois aclamava um NAPOLEÃO déspota e lunático? Ou terão sido outros, nobres e burgueses muito mais bem estabelecidos na vida mas ameaçados pela carga brutal de impostos, que terão levado à insurreição da facção mais miserável do povo, em proveito próprio?

E assim, a revolução é uma ilusão? Muito barulho e depois continua tudo igual? Serão as revoluções apenas fait-divers?

A pior coisa que poderá acontecer em relação às revoluções nas gerações futuras é haver a sensação de que tudo é ilusão, de que não vale a pena tentar mudar (revolucionar) qualquer sistema caduco porque depois voltaria tudo ao mesmo, apenas de cara lavada! Por isso, revolucionemos sempre, ainda que não seja para evitar o descalabro....

E porque é que nunca aprendemos com os erros do passado? Outra questão levantada por Swift e que ainda carece de resposta...




João Breve

(Cronologista de Valmedo)







O golfinho veio à praia de Vale de Frades


Jean Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)



EFEMÉRIDE # 18 


AS CABEÇAS FALANTES E OS OUTROS



Há precisamente 39 anos (?), decorria o dia 14 de Julho de 1978, era lançado "More songs about buildings and food", o segundo álbum dos TALKING HEADS, as cabeças falantes.....










Foi um dos primeiros discos que comprei, claro que em 33 rotações ou no formato que chamávamos de álbum ou LP, uma obra conceptual, (comprar singles  ou 45 rotações como eram chamados, era impensável), nada de pactuar com sucessos ou marketing de ocasião, quem quisesse que comprasse os êxitos efémeros dos ABBA, BONEY M ou do DEMIS ROUSSOS, mas nós não, os eruditos do rock, éramos mais exigentes... 


Na época andava pelo 8º ano de escolaridade e na grande onda estavam os PINK FLOYD, os QUEEN, os LED ZEPPELIN ou os STONES com "Some Girls", mas eu, ou porque já tinha algumas gravações em cassete de crómio dessas bandas ou por outra razão qualquer, quando cheguei à loja de discos com os bolsos cheios dos escudos amealhados na apanha do figo, comecei a inspeccionar os discos das prateleiras e dando de caras com os Talking Heads não hesitei... afinal, pouco tempo antes tinha ouvido na garagem de um amigo o "Psicho Killer" em versão pirata e tinha ficado pouco menos do que deslumbrado...



Decisão tomada, não se pensa mais nisso..





Take me to the river





  E tudo mudou na minha música, o meu som que era baseado em grandes solos de guitarra, virtuosismos nas teclas e shows de bateria, fosse hard-rock ou sinfonias psicadélicas, deu algum espaço a esta novel fusão entre punk, blues e áfrica... Uma lufada de ar fresco a rasgar novos horizontes e ainda por cima de forma genial!  A coisa ficou bem mais soft a partir das cabeças falantes....                                
Os TALKING HEADS souberam estar à frente do seu tempo e ao mesmo tempo conseguiram seduzir gente muito especial para o seu projecto, seja Jonatham Demme, ainda jovem e sete anos antes de ser oscarizado com "O silêncio dos inocentes", a filmar a grande tournée  "Stop making sense" ou Brian Eno, guru e produtor ligado aos Roxy Music, David Bowie, Robert Fripp e depois aos enormes U2....                          
Hoje em dia, espalhada aí por casa e em vários formatos, acha-se a discografia completa desta fantástica banda, acima de tudo o projecto de um homem genial, uma verdadeira cabeça falante...DAVID BYRNE!




João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

quarta-feira, 12 de julho de 2017



A MATEMÁTICA, O ABSURDO E O GÉNIO - II



Enquanto infinitos macacos continuam a tentar escrever as obras de SHAKESPEARE, não se sabe em que língua, talvez macaquês, voltemos ao fabuloso Teorema do macaco infinito, ou melhor, à ideia do infinito, essa abstracção que ainda está por ser provada e tornada realidade... 
Matematicamente, no limite entre dois números inteiros, no intervalo entre 1 e 2, por exemplo, existe um universo infinito de números decimais, teorema pacificamente demonstrado se atentarmos neste fabuloso número (que não inventei, já existia e só estava à infinito tempo à espera que fosse tornado real e que, qual macaco diligente, acabei de digitar aleatoriamente no meu teclado ergonómico: 1,214547854121455614545212587412587412211212121(...ad infinitum) e que, daqui a 5 milhões de anos ainda poderia continuar aqui simiescamente sentado a escrever porque, simplesmente, ele é infinito, NÃO TEM FIM! E no entanto, paradoxal e realmente, sabemos que é finito porque existe o 2(!), número inteiro e redondo e que abre outros universos infinitos... até chegar ao 3! E assim infinitamente!
Apresento pois o TEOREMA INFINITO DE VALMEDO: "qualquer universo matemático ou real (este mundo em que vivemos, por exemplo), por mais aspecto de infinito que possa ter, estará dentro de certos limites e, portanto, é finito pois estará contido "dentro" de outro universo maior"!








E porque é que pode o Teorema de Borell-Cantelli estar errado? Porque, simplesmente, e decorrente da própria questão, uma determinada ocorrência poderá estar para acontecer por tempo infinito, pode ser sempre para a próxima ou para amanhã, como diria o Variações, só que amanhã isso não acontece e fica para depois, até ao fim dos tempos, se é que os tempos têm fim... E entretanto, daqui a biliões de anos ainda estaria para acontecer, os macacos ainda continuariam a martelar nas teclas e nem a palavra banana poderiam ter escrito e, assim, talvez mais filosoficamente do que matematicamente, se comprova que a matemática pode ser um grande absurdo! E entretanto, quando o nosso sol se extinguir daqui a milhões de anos, terá desaparecido o planeta dos macacos, os matemáticos (alguns deles loucos e alienados) e também o mundo absurdo em que vivemos e, pior do que isso, o raio do teorema corre o risco e a probabilidade de nunca vir a ser demonstrado e assim, ser FALSO! Ou seja, nem tudo o que possa acontecer acontecerá! E não é preciso ser génio para perder a pachorra com questões tão absurdas como este teorema, embora a PAULA REGO tenha perdido a dela e aniquilou de vez os macacos escritores que tinha lá no quarto a tentarem ser Shakespeare, e vai daí matou-os a todos... Eu teria feito o mesmo, se tivesse génio para tal!



"Quarto de Shakespeare" - Paula Rego, 2006


O outro lado do esquizofrénico Teorema do Macaco Infinito é que o podemos associar à fabulosa ideia dos universos cosmológicos paralelos ou infinitos, e aí, pelo menos filosoficamente, ganha contornos interessantes e sedutores....
Entretanto, Shakespeare só houve um, o génio não se repetiu, apesar de infinitos macacos o terem tentado imitar, e escreveu o seguinte:

"Ser ou não ser, eis a questão. Qual será o partido mais nobre? Suportar as pedradas e as frechadas da fortuna cruel ou pegar em armas contra um mundo de dores e acabar com elas resistindo? (...) Morrer! Dormir; Sonhar talvez? sim, aqui está o ponto de interrogação; quais serão os sonhos que teremos no sono da morte, quando escaparmos a esta tormenta da vida?"

Hamlet


   


O macaco Shakespeare



João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)


A MATEMÁTICA, O ABSURDO E O GÉNIO - I


Atrevo-me a dizer que há limites para tudo, excepto para três coisas: a imaginação, a matemática e o absurdo! A matemática não é para todos, ela é feita por génios e para génios e há que ter os genes certos para penetrar e entender minimamente o que está em jogo num mundo abstracto e irracional .... Claro que a matemática é física e real, 2+2 são quatro e vale mais ter as contas em dia do que não sabermos a quantas andamos, é bom termos a ideia de uma superfície, saber calcular distâncias entre dois pontos sem sairmos do lugar e ficarmos felizes por certos cálculos, feitos com a percepção real dos valores, serem exactos e tranquilizadores para a nossa existência... Mas isto passa-se no mundo real ou naquilo que entendemos por tal, num domínio finito compreendido entre um limite inferior e outro superior ou então num plano cartesiano de abcissas e coordenadas, em que tudo, seja valores conhecidos ou incógnitas, obedece a determinadas ordens e lógicas...
O problema da matemática adensa-se quando, talvez impulsionada por estudiosos abstraídos e capturados pela imaginação febril e alucinada da busca de novos domínios e teoremas, salta para lá do que é lógico e derruba os limites, inventou-se então a ideia do INFINITO, uma abstracção sem peso nem medida.... Assim, a matemática também pode ser meramente especulativa sem ter feito previamente a averiguação e validação dos seus pressupostos! Basta pensar nos AXIOMAS, proposições que são consideradas como verdadeiras para teorizar e que, pasme-se, não precisam de ser provadas ou demonstradas, basta serem lógicas, são dogmas! A matemática, portanto, também pode ser religiosa, um acto de fé! Afinal, quem já provou a existência do infinito?





Experiência Shakespeare



E por falar de teorizar, falemos do Teorema Borel-Cantelli, popularmente conhecido como o TEOREMA DO MACACO INFINITO... Estamos agora no domínio aleatório das probabilidades e basicamente afirma-se o seguinte: se algo é possível acontecer, mesmo que com uma probabilidade ínfima, e se for tentado um número infinito de vezes, então esse acontecimento acontecerá de certeza!    O exemplo "real" apresentado para este singular teorema e que o tornou célebre é este:  "Se colocarmos um macaco (ou um número infinito de macacos), por tempo infinito, a teclar infinitamente em máquinas de escrever, então, um dia, haverá algum macaco de escrever uma ou várias obras de SHAKESPEARE...!"

(?)

Isto é matemático, senhores, diria o primeiro macaco a ter conseguido escrever o HAMLET... E o mais engraçado da questão é que já foram feitas algumas experiências para provar o bendito teorema, com macacos suficientes para encher a floresta do Bornéu sentados à secretária com as benditas máquinas de escrever à frente! Parece, a notar por certas fotografias, que alguns macacos estavam mais preocupados em comer a sua banana do que ligar àqueles aparelhos esdrúxulos e barulhentos que lhes puseram pela frente e, ademais, também é público que nem uma palavra sequer (nem banana) foram capazes de escrever....





Shakespeare verde de raiva



Certo é que o génio de SHAKESPEARE não aguentará todas as ofensas que fazem ao seu bom nome e, aposto, terá ficado verde de raiva ao tomar conhecimento de tal particularidade matemática!



João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

segunda-feira, 10 de julho de 2017




Jules de chapéu, descansando - Moledo 

Tire-se o chapéu a Jules Supervielle, poeta que anunciou ao mundo de forma magistral o seu amor pela floresta!




Jean Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)









" Há que saber ser árvore durante as quatro estações,
E olhar, para melhor calar,
Ouvir as palavras dos homens para não responder,
Há que saber estar inteiro numa folha
E vê-la esvoaçar..."


Jules Supervielle  (1884-1960)



Planalto das Cezaredas


Jean Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

domingo, 9 de julho de 2017



A ÁRVORE, A CULTURA E A TRADIÇÃO


Agora que este país, que, note-se, possui uma das maiores áreas florestais da Europa (35%), se comporta como uma FENIXOLÂNDIA e tenta mais uma vez renascer das cinzas e incinerar os traumas devido à (des)florestação suicida implementada na zona de Pedrógão, olhemos também para alguns pequenos paraísos autóctones que ainda vão sobrevivendo devido à teimosia de uns quantos proprietários, sábios pela tradição e pelo conhecimento milenar sobre a floresta que herdaram....  



Numa cumeada próxima e sobranceira ao VALE DE CORNAGAS pode fácil e prazenteiramente ser descoberta (basta procurar) uma propriedade muito sui generis: ao longo da vedação que a protege exibem-se, espaçadamente, como se de um circuito interactivo se tratasse, uma dezena de placas com ditos e poemas sobre a floresta, sobre as árvores nobres, especialmente sobre o CARVALHO...
E podemos ficar estupefactos como, no meio do nada (?) alguém se lembrou (e muito antes deste flagelo do Pedrogão) de alertar as consciências para a importância de preservar o que é verdadeiramente nosso, lusitano.... No entanto, olhando à volta,  percebe-se logo o porquê deste testemunho, lá no alto, embora ainda a algumas centenas de metros de segurança, miram-se já alguns eucaliptos sedentos...


O Vale de Cornagas  estende-se ao longo do percurso do Rio Galvão, emparedado por encostas abruptas e por onde, lá em cima, no planalto, há séculos de história atrás, acamparam as tropas do grande JÚLIO CÉSAR... Por toda esta zona do planalto das CEZAREDAS predominam os matos e a vegetação mediterrânica ou não desfrutassem eles de um clima temperado, com estação seca e quente no verão e invernos húmidos, embora instáveis... Carvalhos, sobreiros, carrascos (esses tão comuns arbustos da família  Quercus), azinheiras, oliveiras e medronheiros...



"Semeemos o que fica, o passantes que nós somos!
O fado é um abismo, e as suas vagas são amargas.
À beira do negro destino, irmãos, semeemos homens,
E carvalhos à beira dos mares!"

Victor Hugo, 1843




Podemos aí, no vale, apreciar seculares azenhas, cascatas de água, pontes romanas ou embrenhar-nos sorrateiramente numa floresta diferente, perfumada, húmida, tranquilizadora.... Uma paisagem à antiga portuguesa, até ver....
Mas quem explorar o planalto com atenção vai perceber sem dificuldade que o eucalipto já ameaça muito estes santuários, não é por acaso que o teixo e o mítico azevinho, típicos destas regiões calcáreas, já figuram entre as espécies em vias de extinção! É mais do que sabido que o eucalipto veio da Austrália e que a sua mais valia era drenar terrenos pantanosos tal era a sua avidez de água que seca tudo à volta e depois, quando o papel se tornou um bem de consumo de primeira necessidade, então foi o descalabro, árvore de rápido crescimento e madeira ideal para a pasta celulósica, com retorno económico assinalável... Assim, nem a reciclagem do papel acalma os nossos receios de um aniquilamento total da floresta ancestral, com uma incineração total de uma tradição e da identidade lusitanas.... Por isso, um bem-haja ao incógnito proprietário que, de uma forma culta e atraente, lançou o desafio de amarmos a nossa floresta!



Ponte romana e azenha - Vale  de Cornagas



E tantos exemplos existem e que atestam que o abdicar, por impulso ou irreflexão, da tradição e do saber dos nossos ancestrais, implica o risco de abrir a porta para o descalabro....!

"Durar
Carvalho, cada vez mais carvalho...
Cobrir espaços
Dar asilo
Mesmo àqueles
Que te cortam o tronco"
Guillevic   (Poèmes - 1973-1980)







Cascata - Vale de Cornagas







João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)



sábado, 8 de julho de 2017




OS CABRÕES DOS FRANCESES E A CHANFANA


Parece que há 12000 (!) anos atrás o homem neolítico teve a primeira ideia não pré-histórica da humanidade: farto de lascar pedra e calcorrear meio mundo em busca de animais selvagens, tomou a decisão de os domesticar e criá-los ele próprio e assim, confortavelmente instalado na sua gruta provida de aquecimento geotérmico, passou a ter carne, leite e vestuário ao alcance de uma mão... Talvez tenha sido , o deus dos bosques, dos rebanhos e dos pastores, a dar ao homem essa ideia tão simples quanto revolucionária, por certo farto de o ver penar numa errância sem sentido e pouco frutuosa, afinal não é essa a função dos deuses, tornar a nossa vida mais fácil e aprazível?








Antes de Portugal existir e muito antes de os Romanos aqui terem chegado em busca de ouro, cobre e outras riquezas, já  acompanhava ao som da sua flauta os rebanhos pelos pastos ricos da antiquíssima LUSITÂNIA... E se é certo que este Deus também tinha a sua face lunar, presenteando também o homem com o PÂNICO, essa sensação terrível de não ter controlo sobre nada deste mundo, estou desconfiado que o seu maior sucesso terá ocorrido aquando das INVASÕES FRANCESAS, pois nunca tanta gente terá ficado assustada e em pânico! 
Os cabrões dos franceses, a mando desse pequenino esquizofrénico que foi o NAPOLEÃO, não só invadiram como destruíram, pilharam e roubaram, humilhando as populações sempre que tiveram oportunidade, e é bom não esquecer que as riquezas que levaram deste país foi acordado com os ingleses, supostamente os nossos melhores amigos e defensores! O ódio pelos franciús tinha que vir à tona mas isso aconteceu quase exclusivamente entre o povo que sofria na pele, até porque a nobreza e a burguesia lusitanas se venderam por meia dúzia de napoleões, aceitando a manutenção de uma influência anémica e caduca na sociedade.... E a família real deu o maior exemplo ao fugir quem nem rato para o Brasil!



Pelotão luso a caminho da batalha


Consta que os soldados franceses andavam de mochila vazia para não atrapalhar as movimentações das tropas e assim, sem provisões, para se alimentarem, a estratégia era pilhar tudo o que havia pelo caminho... Aquando da terceira invasão e na zona de Miranda do Corvo, Lousã, Buçaco e Penacova, a primeira lei que os franceses esfomeados elaboraram foi a confiscação dos melhores animais e produtos, deixando para as populações apenas o que tinha mau aspecto, cabras novas, cabrões e cabritos para francês comer, cabra velha para português ver! Ora, os lusitanos nunca foram de se ficar e vai daí, ao lhes chegar aos ouvidos que se aproximavam os franceses, antes de fugirem e abandonarem as suas casas, queimavam as colheitas e envenenavam as águas.... E como ficava sempre alguma população indígena nos territórios ocupados, como poderiam sobreviver apenas com cabras velhas e com pouca água potável? E assim, reza a lenda, se inventou a CHANFANA, cabra velha cozinhada em vinho tinto (na ausência de água), curiosamente uma ideia parecida com a dos gauleses habituados a cozinhar o famoso COQ AU VIN.... E esta iguaria foi talvez a única coisa boa que os franceses nos deixaram...



Um cabrão da raça lusitana


CHANFANA À VALMEDO

Ingredientes-
   - 1 Kg de carne de cabra (velha)
   - 1 naco de presunto
   - 1 garrafa de bom vinho tinto
   - 1 dl de azeite
   - 1 colher de sopa de banha de porco
   - 3 dentes de alho
   - 1 cebola
   - louro
   - colorau
   - sal, pimenta
   - 1 raminho de salsa

   - Limpar a carne de peles e gordura e dar-lhe uma escaldadela; cortar aos pedaços;
   - No fundo de uma caçoila de barro colocar a cebola às rodelas e, por cima, a carne, o presunto aos pedaços, o alho picado, o louro, a banha,a salsa e o azeite;
    - temperar com sal, pimenta e colorau;
    - regar tudo com o vinho tinto e deixar marinar de um dia para o outro;
    - no dia seguinte, cozer em forno de lenha durante 4 horas e acompanhar com batata e grelos cozidos;

(pode também cozinhar-se a chanfana no forno eléctrico desde que em tacho ou tabuleiro de barro )







   



Joao Ratão

(Chef de Valmedo)

terça-feira, 4 de julho de 2017



NÃO QUERO SER ASTRONAUTA!




Estamos sempre a aprender, amigos caninos, e nem sempre isso é agradável.... Este desabafo surge-me depois de ter tido, graças ao esquecimento de alguém que não fechou a porta da cozinha e que dá acesso para a rua, oportunidade de explorar o escritório, o retiro do J.C... E lá o encontrei, absorto e a bom ritmo a martelar com demasiado ímpeto nas teclas daquela máquina assustadora a que os humanos chamam computador e que só pode ter sido obra do diabo deles já que, e eles nem notam, acho eu, lhes retira muita energia e por vezes até os transformam em criaturas assustadoramente distraídas....
Pata ante pata lá me aproximei sorrateiramente do J.C, já preparado para ser despejado dali para fora, como é habitual, e isso eu até nem levo a mal porque toda a gente merece privacidade suficiente para as suas dissertações sobre o mundo louco ao qual vamos sobrevivendo, mas, para minha surpresa, o J.C vira-se para mim e diz:
         - Olha James, estava mesmo agora a pensar em ti!
         - ...
         - Já viste esta tua amiga famosa? - e apontava para a televisão do computador...
  E o que eu via, numa fotografia muito antiga e pouco nítida, era uma cadelinha franzina, aparentemente bem instalada num sofá feito à medida dela (olha a sorte, eu cá em casa não tenho permissão de ir para o sofá!), com um ar aparentemente tranquilo.       
         


- E donde é que vem a sua fama? A mim parece-me um canino igual a muitos outros - foi a resposta que me saiu...
- Pois, mas o que estás a ver foi simplesmente o primeiro ser vivo a viajar no espaço, o primeiro astronauta a ver a Terra desde lá de cima!
- E eu que pensava que isso era só mania vossa, viajar pelo espaço... - provoquei.
- Mas não queiras ser famoso pelas mesmas razões, sabes, ela foi sacrificada!
- Mas isso não é assim nada de extraordinário, quantas vezes eu te ouço dizer, quando vais trabalhar de manhã "Que sacrifício..."....
- Bicho, não estás a ver, é outro tipo de sacrifício! Ela foi enviada premeditadamente para a morte naquela viagem!! Mas isso aconteceu há 60 anos, se fosse hoje as organizações de defesa dos direitos dos animais iriam fazer tanto escarcéu que não permitiriam que tal acontecesse.... E na altura estava-se na Guerra Fria...
- Era inverno e estava-se em guerra? - interrompi sem pensar...
- Não, um dia explico, mas tudo na altura era envolto em muito secretismo e desinformação. Os russos inicialmente não admitiram a morte da LAIKA, tentaram esconder o assunto mas sabiam de antemão que a husky não sobreviveria.
- Então mas como é que ela foi escolhida para essa aventura? Deve ter batido muitos outros concorrentes! E os donos deixaram-na ir assim sem mais nem menos? - questionei... 
- Pois, sabes, ela era uma cadela que vivia abandonada pelas ruas de Moscovo... Foi capturada e treinada para aquela missão...



- Bom, mas depois houve outros casos de cães enviados para o espaço?
- Que se saiba não, mas houve um chimpanzé, o ENOS... Quatro anos mais tarde foi enviado pelos americanos.
- Também morreu?
- Não, esse sobreviveu porque a nave já tinha condições para aterrar em segurança, ao contrário daquela em que a Laica viajou. Foi com estas experiências e com o que se aprendeu que se preparou depois o envio do primeiro humano para o espaço, se preparou a viagem à Lua e brevemente a ida a Marte!...
- Olha a mim é que não me interessa nada ser astronauta!
E foi então, amigos caninos, que o J.C parece ter acordado e, olhando de esguelha para mim, disse:
- Mas o que é que estás aqui a fazer? Já para rua senão ponho-te num foguetão e mando-te para a Lua! - e apontava um dedo ameaçador na direcção da porta.
E não me restou outra coisa senão ir lá para fora, espojar-me no pátio e, mirando o céu já estrelado, ia pensando que às vezes o melhor seria mesmo embarcar para um planeta mais calmo onde houvesse um sofá só para mim!





Foguetão Saturno


James

(Cão de Valmedo)






segunda-feira, 3 de julho de 2017




EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - VIII


O grande amigo e vizinho Nuno Abreu (sempre crescido para a idade e, sem favor, com uns bons dois palmos a mais que eu) safava-me de um verão monótono e castigador... Ele sim, filho de um verdadeiro lavrador, terras a perder de vista e uma parafrenália de máquinas agrícolas à disposição, cansado de andar a fazer biscates de amanhanço de terras e ceifa, horas e horas solitárias sob o tórrido calor, dava-me por vezes o prazer de manobrar o seu tractor e a sua ceifeira... "Amanhã queres ir até à Nogueira ceifar?" - e eu, encantado a fazer-me de caro, fazia de conta que iria ver, iria estudar o assunto mas assim que chegava a casa o caso era apresentado como encerrado: "Amanhã vou com o Nuno ceifar....!" ou "Amanhã vou fazer companhia ao Abreu, ele vai gradar as Cabeças...". E à hora combinada lá estava eu, ansioso pela aventura....




A máquina ceifadora.



E para completar a santa trindade vinham depois a vindima e a azeitona! E se a vindima era o melhor da época, trabalho de força acarretando os cestos encosta acima, promessa de ombros doridos por semanas, a apanha da azeitona também era castiça.... As primeiras e doces memórias da lavoura que tenho são a pisa da uva no lagar dos Gaspar, menino para aí de uns dez anitos, de calções e pés lavados num alguidar, entretido num ritmo 1-2-3-4 que mais parecia um treino futebolístico, entre quatro ou cinco vizinhos com idade para serem meus avós, num ritmo de histórias e calhandrices às vezes picantes e às quais não ligava muito por não as perceber, mas que me faziam sentir parte de uma epopeia...  E depois, passados uns dias, quando apareciam lá em casa uma nota e uns pombos já amanhados para a canja, retribuição mais do que suficiente para aquela brincadeira, sentia-me feliz por fazer parte daquela comunidade generosa....



O poço...
E depois, finalmente, vinha a azeitona!... Panos estendidos, carroça estacionada e a aguardar os sacos cheios, de vara na mão a fustigar as ramadas carregadas de fruto.... Depois, na eira, aprendendo com o avô António, pegava na pá e lançava o mais que podia... A folha, mais leve, ficava aquém, a azeitona passava e aterrava no pano limpo... Depois, era só ensacar e esperar que o Fernando do Lagar viesse com o tractor buscar a colheita! E depois, era um deleite ir espreitar a azáfama lagareira, as mós rodando e rodando, as ceiras cheias e prontas para serem espremidas, os carros a abarrotar deslizando pelos carris e, finalmente, um fio de azeite puro a escorrer para as tinas... 


E a memória visual mais presente é a galera dos Gaspar em alto trote, movida por duas éguas garbosas e altivas, vaidosas na recolha do figo e nas vindimas, qual odisseia de cowboys na conquista de um Oeste selvagem....





A galera



J.C


EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO  - VII


Mas enquanto a máquina debulhadora laborava desde o raiar ao pôr do sol e o calor abrasador obrigava à busca de sombra e sesta, havia actividades agrícolas às quais não se podia escapar e que iam preenchendo os dias e os hiatos entre brincadeiras e aventuras...  Uma dessas obrigações era a apanha do figo preto, uma imagem de marca da região torrejana e uma verdadeira tortura para mim na altura! Convém frisar que este Ribatejo em que nasci e cresci não tem bois, nem toiros nem cavalos, antes é feito sobretudo de figueirais, olivais e vinhas, aqui e ali pontilhados por ciprestes, carvalhos, amendoeiras, nogueiras, cerejeiras, laranjeiras, nespereiras, romanzeiras ou medronheiros... Claro que há éguas e mulas e burros, animais utilizados apenas nas fainas agrícolas, mas por ali não existe tradição cavalar e taurina, isso é outro Ribatejo, o do cavalo da Golegã, o do campino de Santarém ou o do toiro da lezíria a sul....


As odiadas figueiras
Uma coisa positiva era que a família tinha apenas duas pequenas fazendas compostas por uma vinhazita herdada do avô, meia centena de figueiras, outras tantas oliveiras e uma horta que era o tesouro da minha avó.... Regar a horta era engraçado, abriam-se os regos com a enxada de sachar entre os pés de feijão-verde e depois era só controlar o afluxo de água que inundava o terreno semeado de tomate, alface e pepinos... Havia, claro, que dar aos braços para alimentar a rega, balde a balde, das profundezas do poço... E esse trabalho, por vezes penoso, era pago com 25 tostões... A rega da horta era o trabalho mais fixe da época, feito pela frescura do final do dia e ainda por cima com a compensação financeira que tanto jeito dava para outros investimentos! Já o figo era uma seca, embora o figo seco, com uma amêndoa dentro, seja um petisco dos deuses!  A apanha do figo compunha-se de três fases: o empoleiranço nas ramadas da figueira e o derrube dos frutos já maduros com a ajuda do caimbo (um desafio interessante e varonil), a apanha dos figos debaixo da figueira (penoso) e a escolha dos figos já secos nos tabuleiros após dias de exposição solar na eira (menos mal!)...  O chato da questão é que isto se repetia durante semanas, os figos não amadurecem todos ao mesmo tempo e todas as semanas lá se tinha que repetir todo o processo, correr as mesmas figueiras vezes sem conta! Quando acabava a safra era um imenso alívio... embora houvesse a recompensa de 10 tostões ao balde de figos apanhados e que me valeu. assim de memória, a compra das minhas primeiras botas de futebol! E quando os figos secos eram pesados e colocados na camioneta que os iriam transportar para a destilaria, um sentimento de orgulho invadia-me, afinal tinha contribuído para manter uma tradição milenar e única....


Tabuleiros para a seca dos figos
E depois havia outra dimensão da actividade agrícola, outro encanto e muitas memórias que perduram até hoje! A agricultura, aprendi desde pequenino, é muito sacrifício e muito suor mas, no final, também é festa e partilha, comunhão de saberes e de prazeres! Os nossos vizinhos da frente, os Gaspar (a Ti Maria, simpática e lhana, amicíssima da minha avó e por arrastamento com uma especial simpatia por mim, e o Ti Manel, mais austero e de poucas falas, mas, sei-o hoje, homem de carácter e grande amigo), tinham algumas fazendas e uma padaria, a melhor da região por sinal e que bom que era passar apenas para o outro lado da rua e ir comprar o pão mais tradicional que se pode imaginar...




A nora dos Gaspar


Mas também tinham a melhor nora das redondezas, movida por duas éguas que me faziam lembrar as montaduras dos BONANZA e que, de tempos a tempos, eu admirava no seu mágico circular que abastecia o tanque que alimentava a horta... Aquilo era muito à frente, muitos anos-luz de distância da pequenina horta da minha avó que eu regava a trabalho braçal!



J.C