LIVROS 5 ESTRELAS - XXIII
HASHIRU KOTO NI TSUITE KATARU TOKI NI BOKU NO KATARU KOTO...
Para escrever estas linhas tive que ir correr anteontem, ontem e hoje e tudo por causa de um livro que acabei de ler, precisei de várias coisas que a corrida em modo solitário pela natureza me proporciona muitas vezes: falar em voz alta comigo mesmo e ouvir-me, colocar algumas ideias em ordem, descobrir alguma inspiração e ainda desta vez, desvendando o irresistível apelo da curiosidade e como se fosse a primeira vez que corria, ia-me interrogando se tinha as mesmas sensações que aquelas que o corredor da história relatava... Pois é, embora seja cada vez mais raro, o que ainda torna mais encantatória a descoberta, felizmente de vez em quando cai-nos nas mãos um daqueles livros que nos enche as medidas porque literalmente parece que foram escritos a pensar em nós e neste caso até dou a pensar para comigo que se tivesse a arte e o engenho poderia eu próprio tê-lo escrito de tal forma me identifico com a personagem e o enredo... E não serei o único certamente... Chama-se no original "Hashiru koto ni tsuite kataru toki ni boku no kataru koto", que é como quem diz "What I talk about when I talk about running", um título emanado de "What we talk about when we talk about love", livro de contos de Raymond Carver, escritor idolatrado e traduzido para japonês por HARUKI MURAKAMI. Não lembra ao diabo mas coisa que já não surpreende no criativo mundo da tradução para português, vá lá saber-se porquê, o livro que deveria naturalmente chamar-se "O que falamos quando falamos sobre corrida" foi artisticamente transformado em "Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo"... Confesso que desconhecia a outra vida de Murakami, já tinha lido com deleite vários dos seus romances, aliás muitos deles best-sellers em todo o planeta ou não fosse ele um autor traduzido em mais de 50 línguas e sempre falado como candidato ao Nobel, mas não imaginava que também fosse um corredor, como eu... Parem de rir, já explico!
"Ganhar a este ou àquele não me diz rigorosamente nada. Interessa-me, isso sim, alcançar os objectivos que me propus, razão pela qual a corrida de longa distância se revela a disciplina ideal para um indivíduo com a minha mentalidade. Quem sabe o que é correr uma maratona do princípio ao fim, sabe do que falo. De uma forma geral, não se põe a questão de vencer alguém. Os atletas candidatos à liderança da corrida, naturalmente, esses perseguem o objectivo de ultrapassar o seu rival mais próximo, mas, no caso dos amadores que correm por gosto, a rivalidade não é uma questão de fundo".
Murakami surpreendeu-me pelo universo pessoal paralelo que revela nestas deliciosas memórias, à semelhança das narrativas surreais com que nos brinda nas suas histórias, eles são gatos que conversam com pessoas, soldados que não envelhecem desde a segunda guerra mundial, carneiros do além, jovens munidos do dom da clarividência e tudo o mais de fantasmagórico num caldo onírico e mágico, o nosso herói, embora seja um escritor famoso revela-se uma pessoa deveras normal e simples, com os seus sonhos e as suas banalidades, ao fim e ao cabo uma pessoa como nós que começou a correr para não engordar depois de ter deixado de fumar e começou a pouco e pouco a ganhar o gosto pela pela corrida! Um dia, quando decidiu ser escritor, descobriu que sem correr não conseguia escrever! Tal como eu começou a correr pelos trinta e tal, tal como eu adora música e até tem bom gosto, tal como eu teve a curiosidade de saber os seus limites, desde corridas de 5 Km até às ultramaratonas foi uma questão de tempo, tal como eu foi-se desafiando sem nunca desistir, tal como eu pelos quarenta foi sentindo que não melhorava mais as suas performances e tal como eu encarou com naturalidade o declínio e a idade madura, e tal como eu ainda continua a correr e tal como eu ele pratica natação e anda de bicicleta, só que ao contrário dele eu não cheguei ao triatlo, ainda... Tal como ele também escrevo, mas ao contrário dele não escrevo sucessos literários, limito-me a escrever ideias e sensações emanadas pelo mundo-cão, muitas estão na gaveta, outras aparecem no blogue, outras ainda germinam na cabeça mas tal como ele não consigo escrever sem correr, ou antes, escrevo muito melhor quando corro... E também como ele desafiei-me até ao limite, embora eu tenha ficado pelos 42,195 Km e ele tenha ido muito mais além, e não sei sequer se alguma vez nos cruzamos nalguma maratona por aí, perdidos por entre dezenas de milhares de outros corredores, gostaria de o ter encontrado para correr ao seu lado nem que fosse durante um mísero quilómetro, não daria para muito mais porque ele dava-me uma hora de avanço, mas como o que interessa é chegar ao fim e ganhar o nosso desafio...
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"Murakami em Maratona, depois da primeira maratona..." - Foto: M. Kageyama |
"A verdade é que estou mais velho e o tempo deixou as suas marcas. Disso ninguém tem culpa. São essas, por assim dizer, as regras do jogo. Tal como o rio corre em direcção ao mar, faz parte da ordem natural das coisas uma pessoa envelhecer e tornar-se mais lenta, não tenho outro remédio senão aceitar essa evidência. Pode não ser um processo muito agradável, e corro sérios riscos de não gostar do que me espera, mas, vistas as coisas, que escolha tenho?"
ARIGATOU GOZAIMASU, MURAKAMI!
João Pena-Seca
(Escritor de Valmedo)