domingo, 31 de março de 2024

quinta-feira, 28 de março de 2024


 

João Plástico

(Artista de Valmedo)

 

O JARDIM DAS MEMÓRIAS


Revivo o maravilhoso passado ao longo da margem esquerda do Almonda, comecei este lento passeio junto à Ponte do Raro que servia de medida às grandes cheias de outrora, cheia era cheia quando as águas revoltas ficavam a menos de dois palmos de a galgar, e é ali que começa o jardim, com o beneplácito do mestre pintor Carlos Reis, uma das glórias de Torres Novas e que parece perscrutar o horizonte em busca de algo para retratar, hoje chamam-lhe o Jardim da Avenida mas dantes era apenas o jardim...O rio continua o mesmo, beijado pelos eternos e frondosos chorões e serpenteando sereno até saltar o açude, mantém-se pejado de gansos e patos passeando as suas crias mas há uma coisa que lhe dava outro encanto e que já não existe: os barcos a remos! Era obrigatório, quase uma praxe, no inicio dos períodos de aulas ir passear de barco em aventuras onde se desafiava a perícia com os remos ou então se treinava a oratória romântica com as meninas do colégio...   


"Barcos no Almonda" - Postal antigo

Renovados e limpos os lavabos públicos ainda funcionam e também eles reflectem a aura romântica do local ao ostentarem nas paredes juras de amor e projectos de paixão eterna... Encostados à margem ali continuam os mesmos bancos circulares onde tantas vezes me sentei, forrados a azulejos com desenhos de animais e flores, e até os canteiros de flores bem tratados parecem não ter mudado com os anos... Mesmo a meio, chegado ao velho quiosque onde ainda muito menino convencia por vezes a minha mãe a comprar-me um livro de cowboys, viro-me para o cimo da avenida que lembra a revolução e lá se vislumbra a imponente fachada da antiga Escola Industrial e Comercial e que agora tem o nome de outra figura torrejana ilustre, agora chama-se Escola Secundária Maria Lamas, lembranças perdidas no tempo me assaltam mas há que continuar... 


"Sob as glicínias" - Jean-Charles Forgeronne

Passo agora pelas piscinas, dantes ao ar livre e agora cobertas, lá estão as pranchas abandonadas, hoje em dia ninguém ensaia piruetas ou saltos mortais como dantes... Na outra margem e à sombra da colina do castelo espraia-se o recente Jardim das Rosas mas é este lado que me encanta, especialmente este passeio por debaixo das pérgulas de onde caiem glicínias com os seus enormes cachos de flores roxas. Chego então ao açude, onde antes se alugavam os barcos, e é tempo de tomar um café na esplanada do Toni, observando os estranhos que passam e os edifícios do outro lado da rua... 


"Altos voos" - Jean-Charles Forgeronne

É tempo de regressar, agora pela outra margem e pelo caminho se encontra outra vez Maria Lamas, agora pichada numa parede com as mulheres pelas quais lutou...


"Mulher, mulheres" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

sábado, 16 de março de 2024

 

LENDAS E NARRATIVAS - XXI


O TESOURO PERDIDO DE JÚLIO CÉSAR


Há uns dias dei por mim a ler duas vezes o convite: "Percurso narrado sobre a lenda do Pó - O tesouro de Júlio César"! E eu, há muito amante curioso e frequente explorador do planalto das Cesaredas, assim chamado porque se diz que o então chefe militar aí acampou com os seus soldados numa das suas expedições, não hesitei um segundo e inscrevi-me, em estado de choque porque já tinha ouvido muitas histórias sobre o planalto mas não sonhava sequer com a possibilidade de aí existir um tesouro! E hoje é sábado dia 16, ontem foram os Idos de Março em que passaram exactamente 2068 anos sobre a morte do imperador romano JÚLIO CÉSAR, assassinado na célebre e traiçoeira emboscada e aqui estou eu a chegar ao adro da capela dedicada a Santa Catarina de Alexandria, na aldeia do Pó, concelho do Bombarral, é daqui que terá início a caminhada guiada...  Ao longe, sob um céu que por sorte não ameaça borrasca, vislumbro a encosta norte do planalto, aqui deste lado chamam-lhe a Serra do Pó, é para lá que daqui a pouco marcharemos à boa maneira dos romanos...




Reparo que desta vez não sou o primeiro a chegar, já cá está o professor Nuno Ferreira, da Câmara Municipal do Bombarral, ele que tem andado por todo o concelho a recolher as lendas locais de cada terra antes que elas se percam para todo o sempre, e felizmente parece que um livro sobre esse património em risco está na calha... Far-nos-á também companhia o Presidente da Junta de Freguesia do Pó, Álvaro Benjamim, ele que se tornou famoso por ter vencido as últimas eleições apenas por um voto mas, o mais importante, um interessante depositário de histórias maravilhosas do antigamente...



"Pena da Gralha" - Jean-Charles Forgeronne

E assim lá fomos até à Pena da Gralha, local onde dizem os antigos e os antes deles que Júlio César lá enterrou ou escondeu um tesouro que pensava levar consigo quando acabasse a sua tarefa por estas terras do oeste peninsular e regressasse a Roma, mas, por esquecimento ou outra razão qualquer, por aqui o deixou ficar... Dizem que o tesouro se compõe de um sino e de um berço em ouro! Mãos à obra, digo a mim próprio, amanhã, munido de pá e picareta demandarei aquela encosta do planalto em busca da fortuna e só peço que não dê de caras com a enorme e sobrenatural ave branca que assustava os poenses antigos quando se aventuravam de noite por aqueles lados, assim o afiança Benjamim que o ouviu de pessoas idóneas e que para além disso lembra-se de que quando era pequeno aí se ter descoberto uma enorme pedra na encosta que se movia e que permitia uma entrada para o desconhecido... Será aí que estará o tesouro?


João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

domingo, 10 de março de 2024

 

9 de MARÇO, DIA da UBIQUIDADE


Neste mundo-cão em que há dias para tudo acaba de ser declarado por mim e pelo meu amigo Andarilho em reunião solene o dia 9 de Março como o DIA da UBIQUIDADE, o qual fica registado em acta e vem preencher uma grande lacuna na agenda daqueles que não conseguem estar em todo o lado ao mesmo tempo! E tal facto não vem incomodar muito nem muita gente porque não colide com qualquer outra comemoração por parte do comum dos mortais, a não ser, evidentemente, com as da Igreja Católica que tem tantas coisas importantes para comemorar que lhe faltam dias no calendário e vai daí muitas vezes tem que as juntar no mesmo dia, senão repare-se que no dia 9 de Março os católicos celebram o dia de Santa Francisca Romana, o dia dos Quarenta Santos Mártires de Sebaste (não confundir com os Quarenta ladrões do Ali Babá) e ainda têm tempo para o dia de Santa Catarina de Bolonha!  É obra, tanto santo junto e para estar em tanta comemoração ao mesmo tempo é porque eles têm (se não quem teria?) o dom da ubiquidade, por isso calha mesmo bem!


"Estilhaços de Escuridão" - Foto: Jean-Charles Forgeronne


Tinha ligado dias antes ao Andarilho para combinar o horário de partida e a estratégia da viagem até Torres Vedras para mais uma prometedora noite no Bang Venue, bilhetes comprados há meses, compunham o cartaz primeiro os Dapunkt Sportif que andam pela estrada a comemorar 20 anos de existência e excelência (muitos parabéns!) e depois Nick Olivieri, o célebre baixista que para além de outros projectos fez parte dos Queens of the Stone Age, a solo apenas com a sua guitarra e o seu rouco vozeirão... E então diz-me o Andarilho:
- "Pena não termos o dom da ubiquidade, porra, sabes que no mesmo dia e à mesma hora vai o Luxúria Canibal ao Teatro-Cine de Torres?
- A sério? - respondi desconsolado, logo o Adolfo de quem já tinha tantas saudades... E era a sério, no seu projecto "Estilhaços de Escuridão" lá perderíamos o Canibal e a sua poesia, e também a de Cezarini, ainda por cima acompanhado de músicos de excepção...


"Dapunkt Sportif" - Foto: Jean-Charles Forgeronne

E ontem, na vigésima-primeira hora  daquele dia que ficará eternizado como o DIA da UBIQUIDADE, após termos reconfortado o estômago na Maria Bonita batemos com o nariz na porta encerrada e selada do Bang Venue, "o que se passava?", interroguei-me, ninguém por aqui, é estranho...  Olhávamos em volta e nem sinal de vivalma, até que exclama o Andarilho: "Olha, só começa às 22.30h!". 
- "Outra vez confundidos com horários!" - exclamei eu... Sim, porque outras histórias de horas desencontradas existem por parte desta dupla pouco confiável, ficam para outras conversas, assim haja tempo e futuro...
E que mais nos restava do que deambular por ali pelas ruelas do casco histórico torreense para aproveitar a janela temporal e pôr a conversa em dia? Mas eis que, sem darmos por isso, vimo-nos em pleno largo da Igreja de São Pedro (não era o dia dele mas não há problema!) e vislumbro a espreitar sorrateiramente da esquina parte da bela fachada do Teatro-Cine de Torres... 
- Olha lá, não era hoje que vinha cá o Luxúria Canibal? - olhámos um para o outro e lá fomos, talvez ainda fosse possível assistir... E foi assim, ainda que um pouco atrasados no tempo, lá descobrimos que o dom da ubiquidade afinal existe...



"Nick Olivieri no BangVenue" - Foto: João Andarilho


João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

quarta-feira, 6 de março de 2024

 

ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - XII


MARIA NOTÁVEL LAMAS


Deixo a escola que também foi a minha e que tem o seu nome para trás, descubro o seu pequeno e ondulante jardim e ali está ela, a MARIA LAMAS esculpida por Armando Ferreira, artista plástico alpiarcense...  A primeira e estranha impressão que tenho é que a estátua não se parece nada com a imagem que tenho da ilustre torrejana mas também não era essa a intenção, disse o autor logo em 1993 aquando da sua inauguração, antes quis ele alegoricamente dar à obra a alma que aquela grande mulher simbolizou para todas as mulheres! E que bela saiu a encomenda, ademais quem preferir um retrato mais realista basta ir quanto antes à exposição "As mulheres de Maria Lamas" patente na Gulbenkian e deleitar-se com o busto em gesso que Júlio Sousa fez em 1929...

  

"Maria Lamas"- Jean-Charles Forgeronne



Segundo alguns a mais notável mulher portuguesa do século XX, e mesmo que não seja consensual esse louvor terá sido certamente uma das mulheres mais proeminentes do nosso país, MARIA LAMAS foi escritora e jornalista, pedagoga, investigadora, tradutora, fotógrafa e especialmente uma intrépida lutadora pelos direitos humanos e cívicos e um símbolo na luta pela dignidade e pelos direitos das mulheres durante o regime do Estado Novo! Presa por várias vezes e exilada em Paris na década de sessenta onde apoiou os refugiados políticos que se opunham à guerra colonial, mesmo assim conseguiu construir uma obra literária que vai desde a literatura infantil à poesia, da ficção à antropologia social e foi neste campo que a descobri, através da fantástica obra "Mitologia Geral - O Mundo dos Deuses e dos Heróis", comprada em boa hora juvenil com os trocos amealhados na apanha do figo preto de Torres Novas pois agora dizem que muito poucos dos seus livros se encontram disponíveis no mercado... Devo ter aqui um tesouro em casa, querem lá ver?!




João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

segunda-feira, 4 de março de 2024

 

A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - XXIII


Die ALPTRAUM zufulge Herr SCHMIDT!

(O PESADELO SEGUNDO O SR. SCHMIDT!)


Hoje acordei em sobressalto e completamente exausto, confuso e a tremer, e a culpa da noite horrível que passei é toda sua, Herr Schmidt! Senão veja bem, numa amálgama de imagens esquisitas e tenebrosas sonhei que o glorioso estava a ser trucidado por uma tribo draconiana, sem apelo nem agravo, e em muitas delas, as mais perversas de todas, o senhor tinha transformado os nossos craques em minúsculos diabinhos vermelhos que, por estarem fora do seu habitat natural, numa vertiginosa confusão só faziam porcaria e que não conseguiam disfarçar que estavam sob o efeito de um feitiço que tinha um único propósito: prejudicar a própria equipa e sofrer uma humilhante derrota! Não, não estou a exagerar nem a inventar, Herr Schmidt, aliás isso é o que senhor vem exacta e impunemente fazendo há tempo demais, provocando-me alptraum atrás de alptraum, e isto não é apenas um desabafo a quente, eu dei-me ao trabalho de investigar as causas deste meu grande mau-estar...... 


"O pesadelo" - Henry Fuseli, 1781

Diz Maria Lamas na sua obra "Mitologia Geral - O mundo dos deuses e dos heróis" que "os Germanos acreditavam que a Terra era povoada por uma multidão de seres de natureza sobre-humana" e que, de entre eles, os ELFOS, em alemão ALP, eram espíritos maléficos ou demónios que existiam por todo o lado, nas águas, nas florestas, nas montanhas, e que apesar da sua pequena estatura eram muito belos e mais esbeltos que os homens... Alguns elfos então tinham especial prazer em invadir as casas e atormentar o sono dos humanos, vinham pela calada da noite e sentavam-se em cima das pessoas que dormiam, asfixiando-as e importunando os seus sonhos, em alemão TRAUM, causando um enorme pesadelo, em alemão ALPTRAUM... 


Então tudo se explica, Herr Schmidt, eu fui atacado e oprimido por um elfo igualzinho a si, com a sua cara chapada, aliás tenho a impressão que ao abrir os olhos ainda a vislumbrei por breves instantes antes de se esfumar para outra dimensão... Na verdade, era o que o senhor também devia fazer, ir atormentar outras almas lá longe...  E já agora, atendendo ao facto de o senhor não falar uma palavra de português apesar de já estar entre nós há tempo bastante deixo-lhe esta: alptraum em português diz-se pesadelo (pesado + elo), e de facto tem sido muito pesado conviver consigo!


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"Piercing canino" - Jean-Charles Forgeronne