A IGNORÂNCIA PODE SER ETERNA...
Já com a primeira engrenada não resisti mais à curiosidade e pus o CD no leitor e não foram precisos dez segundos para deixar escapar um grosso palavrão da boca e do carro para fora porque tinha o vidro da porta do condutor para baixo, o que fez com que um par de olhos escuros e faiscantes de uma respeitável senhora que ia a passar me olhassem reprovadoramente por cima de uma máscara a necessitar de lavagem... E eu que estava exposto por já ter tirado a minha máscara acelerei dali para fora dizendo baixinho mais alguns impropérios e tentando decidir se voltava atrás para reclamar do produto defeituoso... - "olha! que se lixe, não fosses parvo! nunca mais aprendes, abre os olhos!..." - disse para mim próprio e lá fui... Mas espera, depois daqueles iniciais ruídos estranhos ouviam-se agora as guitarras e a bateria a sair das colunas, será que...?
Tudo começara uma meia hora antes quando tinha entrado na feira, e uma feira de velharias nunca é igual, há sempre novidades e há sempre algo que estava ali aquando da última visita mas que ficou entretanto pelo caminho, sabe-se lá onde porque estes vendedores têm sangue de saltimbancos, hoje aqui na Lourinhã nesta solarenga e ventosa manhã de sábado e num espaço diferente por causa da pandemia, amanhã no Cartaxo, depois nas Caldas e a seguir segue-se Torres Novas, como me dizia o senhor de meia idade com o qual eu tinha entabulado uma conversa que ainda não era de negócio... Eu tinha ido ali pelos livros, aliás vou lá sempre pelos livros, em busca daqueles exemplares de colecções antigas que me faltam e que gostaria de ter e se por acaso e sorte os encontro então é a suprema felicidade, prova de que nunca é tarde demais para encontrar algo que se procurou em vão por tanto tempo, de resto não me interessa nenhum outro tipo de objectos por mais valiosos, curiosos ou inusitados que sejam, embora goste de os observar porque há sempre alguma lembrança do antigamente que nos assalta e que nos faz soltar um nostálgico sorriso...
GUANO APES, 1997, o nome não me era completamente estranho, tirei o CD para fora para ver bem a capa, sim, já a tinha visto algures mas não me vinha qualquer memória musical à cabeça, talvez tenha lido alguma coisa sobre eles nalgum suplemento musical, talvez até tenha ouvido alguma coisa na rádio mas aquela banda tinha-me passado completamente ao lado, santa ignorância, não fazia a mínima ideia do que estava dentro daquele compacto! Olha, por um euro podes matar a curiosidade e a ignorância...
- Veja se tem o CD dentro, nunca se sabe! - disse-me o vendedor de ar sério mas sereno enquanto eu lhe estendia a moeda...
- Não importa, só a capa já vale o euro... - respondi sorridente, mas pelo sim e pelo não abri a caixa e constatei com alívio que estava completo...
- Obrigado! - volveu ele e acrescentou - Espero que esteja bom, nunca o experimentei...
- Hummm.... Parece novo... - disse eu já a afastar-me para a saída.
E para quem já conhece perceberá a minha desilusão inicial, é que "Open your eyes", a primeira faixa do disco, começa com uns ruídos estranhos que não têm nada a ver com reprodução musical e faz pensar se o CD não estará todo marado, mas não está, é mesmo assim, constatei eu próprio ao ouvir o tema no Youtube assim que cheguei a casa, e este exemplar que me custou apenas 1 euro não só nunca mais saiu do leitor do carro como ainda por cima me pôs à procura do segundo álbum da banda e a investigar vários mistérios, o primeiro dos quais porque é que os Guano Apes nunca em trinta anos tinham entrado na minha órbita musical, demorou um pouco, é certo, mas a vida explica-se, não há tempo para tudo e naquele período 97/98 todo o tempo era dedicado a preparar a paternidade que se avizinhava... E muitas outras coisas e não só na música me passaram ao lado por uma qualquer razão, ninguém estará imune a isso, penso eu, mas que bom é passado tanto tempo matar a ignorância, ela que neste caso foi morta por acaso mas que poderia durar até à eternidade não fosse uma feira de velharias onde velhos são os trapos e o saber não tem idade...
João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)