quarta-feira, 29 de junho de 2016

AS AMEIJOAS DO POETA


        BULHÃO PATO, fidalgo, poeta e ensaísta, ficou mais célebre por um petisco do que pelas suas artes literárias. Consta que era um bon vivant, apreciador de caçadas e tertúlias literárias, para além de ser dotado para as artes culinárias o que lhe proporcionou a participação com algumas receitas no livro gastronómico mais famoso da sua época: "O cozinheiro dos cozinheiros" de Paul Plantier (1860). Acresce ainda que a sua poesia, para além de satirizar a sociedade e os políticos da época também demonstra a grande empatia que Bulhão Pato tinha com o sexo oposto, rezando as crónicas que nesse campo granjeava apreciável sucesso. 



Bulhão Pato  retratado por Columbano 

      E se o poeta e caçador confeccionava com mestria pratos como "Perdizes à Castelhana" ou "Lebre à Bulhão Pato", não deixa de ser curioso que a receita das ameijoas mais famosas deste cantinho lusitano não tenha sido da sua autoria, antes parece certo que o cozinheiro autor da proeza decidiu homenagear o nosso herói dando o seu nome à iguaria como agradecimento pelos louvores recebidos nalgumas obras.

        Mas agora que o verão se instalou e que no regresso da praia apetecem petiscos ao ar livre, montemos a mesa e confeccionemos um dos mais simples e esplêndidos petiscos lusitanos, tarefa que não exigirá mais do que um quarto de hora e que está ao alcance do mais imaturo dos principiantes:

AMEIJOAS À BULHÃO PATO

Ingredientes:

ameijoas
azeite
alho q.b
coentros
sal
                                                                
 Aquecer o azeite num tacho e juntar os dentes de alho esmagados e com casca; deixar amolecer;
Juntar as ameijoas (já bem lavadas) e metade dos coentros;
Temperar com sal e deixar cozinhar em lume forte;
Quando as ameijoas começarem a abrir, reduzir o lume, tapar e deixar cozinhar por alguns minutos até todos os bivalves estarem abertos;
 Servir de imediato, com os restantes coentros picados por cima e acompanhando com um bom pão, eventualmente torrado.. 
                   
                              


        E se, bem acompanhados, for caso de se fazer um brinde à alegria de viver, façamo-lo  também à moda de Bulhão Pato:


UM BRINDE

Amigos, à formosura
que nos cerca neste instante,
erga-se a taça escumante
de purpurino licor.
Vivo entusiasmo rebente
agora das nossas almas,
caiam palmas sobre palmas
cada vez com mais ardor.

Aqui floresce na horta
a viçosa laranjeira,
corre o Champagne e o Madeira
que ofertara nívea mão,
aqui não chegam as garras
de tanta velha leoa
que esfaimada por Lisboa
se atira a tanto leão.

Aqui livre em nossos peitos
pula impaciente alegria,
porque ao sol de um belo dia
tudo vem reflorir!
Que importa pois que os ministros
ressonem no parlamento,
e que os homens de São Bento
nem sequer nos façam rir?

Para nós sorri-se o mundo,
para nós a vida é esta,
logo festa, amanhã festa,
glória, encantos, ilusões!
Junto a nós temos as belas
mais fragrantes do que as rosas,
longe o mundo das preciosas
e o mundo dos papelões!

Eia pois! à formosura
que nos cerca neste instante
erga-se a taça escumante
de purpurino licor.
Vivo entusiasmo rebente
agora das nossas almas,
caiam palmas sobre palmas
cada vez com mais ardor


Bulhão Pato  (1859)




João Ratão

(Chef de Valmedo)








A ESFINGE



ESFINGE  - Praia de Vale de Frades


Jean Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

         O FOGO, O ARTIFÍCIO E O INFERNO


  - Anda James, vamos à festa! - disse o J.C já com um pé na rua mas, vendo o meu ar desconfiado, acrescentou: - Anda, vai ser giro..
   - Não! - disse eu com a melhor pose de orelhas que consegui.
   - Ele se calhar pensa que vamos àquele festival na China de que falámos ontem. - disse o M.

      - Então porta-te bem! E não tenhas medo dos foguetes, eles não te vão cair em cima... - acrescentou a N. 
      - Não queres mesmo vir? - ainda tentou a L. mas eu não mostrei  muito interesse e eles lá foram...    
      E por aqui fiquei eu, fazendo rondas e olhando a lua, guardando o vazio que me deixaram e suspirando que aquela festa não fosse daquelas que abusam daquele estranho artifício de luzes e explosões que descambam por cima de nós. Não sei, amigos caninos, se pelos vossos sítios se passa o mesmo que por aqui em Verde Erva Sobre o Mar em que, nesta altura do ano em que os humanos andam com o pelo mais à mostra, há festa por todo o lado e todos os dias, sejam eles santos ou não, e santa paciência, tive que me habituar... Foi difícil ao princípio compreender que todas aquelas explosões não era o céu a cair e que não vinha nenhuma ameaça daquela chuva de luz que matava a tranquilidade das estrelas mas, agora que estou habituado, quando começa o alvoroço já não corro a esconder-me no primeiro buraco que encontrar...


       A verdade, amigos caninos, é que não me apeteceu ir à festa porque tenho andado a matutar nesta história do fogo de artifício, é verdade, não por ter medo dele mas porque descobri que os foguetes estão na origem de uma monstruosa conspiração contra a nossa espécie e senti uma premente necessidade de partilhar convosco as minhas preocupações.

         Sabiam que a pólvora foi descoberta na CHINA há quase 2000 anos?
       E que o fogo de artifício também foi inventado pelos chineses com a finalidade de entreter e divertir os divinos e exigentes imperadores?
         E que ainda hoje os chineses são os maiores produtores e especialistas em tudo o que se refere à pirotecnia?
         Sim, tudo isto ouvi da boca do J.C e mais coisas preocupantes como seja aquela petição que corre na Inglaterra, uma região longínqua, em que a Real Sociedade contra a Crueldade com os Animais pretende, com o apoio de milhares de apoiantes subscritores, levar a votação no Parlamento a ideia de acabar com o fogo de artifício com a justificação de que essa milenar arte de entretenimento causa STRESS à nossa espécie canina....

          - E não tarda nada, à velocidade astronómica como nós copiámos tudo o que de mau vem dessa geringonça chamada Europa, depressa vamos ter aqui em Verde Erva Sobre o Mar muita gente a querer acabar com a bicha de rabiar....
             - ?
        - Estes puristas radicais estão a ultrapassar todos os limites, James... - continuou o J.C a desabafar. - Qualquer dia os animais têm mais direitos que as pessoas! Mas porque é que esses inquisidores não vão ao FESTIVAL DO CÃO, na China, para verem o que é o verdadeiro stress animal?
          Devo ter feito um focinho de tal estranheza porque não me foi necessário pedir esclarecimento, ele avançou com a explicação:



     - James, na China está a acontecer neste preciso momento um Festival em que são mortos e cozinhados cerca de 10 000 amigos teus, bastantes são vadios mas muitos deles são roubados aos donos. Antes de serem assados ou esquartejados grande parte é torturada, aparentemente para a carne ficar mais macia....
         Devo ter feito expressão de horror porque o J.C sentiu necessidade de me acalmar e, fazendo-me uma festa no pescoço, acrescentou:
        - Calma, bicho! A China fica lá muito longe e eu nunca permitiria que fosses a um festival desses....
         



    E então, amigos caninos, fez-se luz na minha cabeça e com um grande estrondo acordei para a realidade: parece-me evidente que estes festivais gastronómicos são uma vingança dos Chineses (esses habitantes de um país que deveria chamar-se antes Inferno Canino) contra nós que, embora involuntariamente, estamos a ameaçar as festas e os fogos de artifício e a questão torna-se mais preocupante porque já imagino os ingleses a votarem a favor e então, aquilo que parecia acontecer lá muito longe, quase noutro mundo, está perto de nos bater à porta... Quem me garante que um dia destes aqui em Verde Erva Sobre o Mar, depois de proibidos os fogos festivos, não surgem mais festivais do cão? 

   E pronto, já estalam os foguetes da festa e despeço-me com um apelo: façam um esforço para tolerar as festividades humanas, não stressem demasiado e convençam os vossos donos a não entrarem nestas exageradas e ridículas exigências, senão corremos o risco de ir parar ao espeto um dia destes...
       






James

(Cão de Valmedo)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

EFEMÉRIDE # 2 -      JAMES

     Eu o James estamos de parabéns, ele porque nasceu há precisamente 2 anos (!) e eu porque com ele a minha existência ganhou novos contornos e horizontes....





          Graças ao James existe o Planando no Mundo Cão, foi ele que me fez sentar aqui e começar a escrever umas notas, e depois a surpresa maior veio da sua colaboração, sem ele nada disto seria talvez realidade....



            Mas o James não é apenas o meu colaborador nesta aventura, é também aquele amigo especial, fermento de uma amizade incondicional e impossível de catalogar, só ao alcance da nobreza de um cão...  




               
    E agora que o James está mais adulto, emocionalmente equilibrado, e que muitos disparates do passado já são apenas histórias para contar, sinto-o de corpo e alma nesta demanda e isso levanta-me o ânimo quando a cabeça requer repouso e o corpo se recusa a exercício...

                  Por isso, James, obrigado por existires e PARABÉNS...

Vamos lá então comemorar e passear por Verde Erva Sobre o Mar...

            


J.C.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

EFEMÉRIDE # 1 - O HERÓI ORDINÁRIO

          Há precisamente 112 (!) anos, no dia dia 16 de Junho de 1904, aconteceu a invulgar odisseia de Leopold Bloom, um experiente e acomodado publicitário de Dublin, numa luta insana e heróica entre a vontade do compromisso e a esterilidade da existência....  Tudo seria mais simples se Bloom não passasse de uma invenção de James Joyce, mas o problema interessante é que essa personagem incarna ULISSES, o herói de HOMERO, na mítica aventura ODISSEIA...


Homero


           Resumidamente, a Odisseia relata as aventuras e provações pelas quais passou ULISSES, herói grego, na demanda da sua viagem para casa após o términus da Guerra de Tróia, aventura essa que durará 10 (!) anos de luta perante as adversidades não só naturais mas também aquelas provocadas pelas divindades invejosas... É que o nosso herói acabará por regressar aos ansiosos braços de PENÉLOPE, a sua obstinada e fiel esposa, ao contrário de Bloom que, apesar da sua luta diária e persistente terá à sua espera uma traidora e compulsiva companheira. ...




             Dez anos resumidos a um dia de existência, assim alguns poderão sintetizar a trama de Ulisses, mas é bastante mais do que isso....  O maior romance do século XX, assim foi catalogado por muitos, uma leitura exigente e recompensadora considerada por muitos outros, mas eu, sinceramente, achei uma leitura demasiado complexa e inacessível (as grandes obras são para toda a gente, certo?) que acabou por redondar numa grande desilusão!...  Ainda hoje é dos poucos exemplos em que não me é possível tentar uma releitura ainda que parcial para aprofundar e redescobrir a obra... E garanto, já tentei demasiadas vezes....
              O Ulisses de Joyce foi bem vendido como uma obra imortal, tudo bem, respeite-se, mas na minha modesta opinião não passa de uma obra chatérrima...!
                Demasiada complexidade, demasiada exigência, demasiada frustração com a leitura.... Embora seja sedutora a ideia do relato de um dia de vida de um herói moderno, especialmente quando na modernidade não há lugar para grandes feitos ou heroísmos de monta, o resultado final acaba por ser uma maçadora exposição das técnicas linguística e expressiva.... Na minha singela apreciação, um romance gigantesco (no tamanho também) mas chato, inconsequente, como todos aqueles que pretendem ser técnicos ao extremo mas que  acabam por ser pouco tocantes.... Até pode ser aquela obra que revolucionou a forma de escrever ou abriu espaço a novas técnicas de expressão, tudo bem, mas, porque demasiado complexo e erudito, nada acrescentou ao meu prazer da leitura,,, E apesar da monotonia e da complexidade resisti a não desistir, fui um herói moderno que conseguiu ler o Ulisses, mas no final senti que fiz uma maratona para pouco prémio...


James Joyce


         Poder-se-á sempre argumentar que se não apreciamos ou entendemos ou valorizámos uma determinada obra isso se poderá dever às nossas insuficiências, de acordo, mas uma obra que é considerada a melhor de um século terá que cativar para além disso, e este não é seguramente o caso.... O que leva à questão seguinte: estará o problema na avaliação dos críticos especializados?

            Finalmente, fica a ideia genial do autor: há ainda lugar para heróis ou façanhas heróicas nos tempos modernos?  Ler o Ulisses de uma assentada é uma façanha ao alcance de poucos heróis...




João Breve

(Cronologista de Valmedo)
                         
100 EFEMÉRIDES

      
      Comparada com a duração da vida da EFEMÉRIDA, insecto que não vive mais do que umas horas, no máximo 1 dia, a longevidade humana parece uma eternidade, especialmente quando se é jovem...

Efemérida
E embora provavelmente tenha um dos cérebros mais minúsculos da biodiversidade, a efémera talvez chegue ao último segundo da sua breve existência com a cabal memória de todos os acontecimentos do seu mágico dia de aventuras neste planeta mirabolante, facto impossível para qualquer exemplar da divina espécie humana apesar de estar apetrechado com a mais fabulosa, complexa, misteriosa e brilhante criação da evolução cósmica: o CÉREBRO HUMANO! Evidentemente que existem muitos modelos e variantes de cérebro, a escala de qualidade é tão vasta que nalgumas vezes abrimos a boca de espanto e admiração perante a genialidade de alguém e noutras concluímos com toda a certeza de que vivem ainda muitos Neandertais  entre nós...  Mas em relação à MEMÓRIA, essa fantástica capacidade de conservar e viver novamente estados de consciência passados, ninguém, nem os mais trogloditas nem os mais eruditos, sem excepção, estão a salvo de a não conseguirem preservar, seja por doença ou seja pela ordem natural das coisas, o tempo, a idade.... E se mesmo na juventude não nos lembrámos de tudo o que vivenciamos, o que dizer das idades posteriores? Foi então que certamente alguém com problemas de memória se lembrou de anotar tudo o que de importante se relacionava com um determinado dia, uma data, por forma a que, embora tenha sido esquecido por determinado período de tempo, tal facto ou acontecimento, ou apenas uma simples ideia, seja pela sua importância ou apenas pela curiosidade, nunca caísse no esquecimento.... Esquecer é morrer um pouco....  Lembrar é viver novamente...

Cabeça mecânica, 1920, Hausmann


          Regozijemo-nos então com as EFEMÉRIDES, essas celebrações de acontecimentos importantes ou gratificantes acontecidos numa determinada data e cuja revisitação permite manter vivo o espírito daquilo que de mais importante aconteceu na história desta nossa efémera existência...

           E agora que, ocasionalmente, a memória já me prega algumas partidas, porque não aventurar-me a uma visita ao baú mais profundo do meu sótão? As próximas 100 efemérides não obedecem a nenhum critério, a nenhuma razão especial nem objectivo concreto, são apenas celebrações de algo que aconteceu e que marcou a existência deste vosso escriba, ainda que algumas possam não fazer sentido para alguns.... mas a vida é isso mesmo, uma interpretação global  e por vezes estranha mas sempre uma vivência pessoal.... Aí vai a primeira..... e que a memória não me abandone...




João Breve

(Cronologista de Valmedo)

segunda-feira, 6 de junho de 2016



A IDADE E A SABEDORIA



       Muitos erradamente confundem SABEDORIA com CONHECIMENTO e se é verdade que este pode contribuir para aquela também é certo que se pode ser sábio sem ter uma grande instrução enciclopédica, não é a quantidade que faz a diferença mas sim a qualidade, a sabedoria dá muito trabalho, evidentemente, mas também é um dom apenas ao alcance de alguns....




Tentando pensar na casa de  Rodin



       Ora vejamos, segundo o insuspeito Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o que se sabe e o que se conhece:

               CONHECIMENTO - apreensão intelectual de um facto, entendimento de um fenómeno; domínio prático ou teórico de um assunto, arte, ciência ou técnica...

               SABEDORIA - é um dom, o discernimento no modo de agir que nos permite escolher o melhor caminho a seguir, a melhor atitude a adoptar nos diferentes desafios que a vida nos apresenta...

             Ora, quantos exemplos poderemos arranjar de indivíduos bastante cultos que se mostraram uns absolutos incompetentes na vida comum, uns autênticos desastres na arte da sobrevivência racional e emocional? 

              Outra ideia errada é a de que, à boa maneira japonesa, é necessário tempo, muito tempo e apenas tempo para se ser sábio, a noção de que basta ser velho para saber, mas essa ideia é desmentida pelos muitos milhões de exemplos de velhos que chegam a essa condição sem terem aprendido grande coisa enquanto muitos  outros podem ter aprendido desde jovens, tudo depende da atitude....

             Já ERNEST HEMINGWAY dizia que "a sabedoria dos velhos (apenas alguns, acrescento eu) é um grande engano. Eles não se tornam mais sábios, mas apenas mais prudentes". E também o grande mestre do realismo mágico, GABRIEL GARCIA MARQUEZ, chegou à conclusão de que "a sabedoria é algo que quando nos bate à porta já não nos serve para nada..."
             
            E depois, como nos avisou SCHOPENHAUER, filósofo alemão que se finou há 165 (!) anos, se a sabedoria é a arte de tornar a vida mais feliz e agradável possível, então acordemos e sejamos felizes, não esperemos pela velhice e aprendamos alguma coisa, dia a dia....



Walt Whitman pensando...

     
  E haverá melhor sugestão do que ouvir e pensar sobre o que o grande poeta da Revolução Americana, da democracia e da apologia da Natureza nos transmitiu sobre o assunto? Eis um exemplo, escrito na fase final da sua longa vida, já com a larga sabedoria de experiência feita:



                    DIAS TRANQUILOS
     
                     Não vêm só do amor feliz,
                      Nem da riqueza, nem de uma idade amadurecida e honrada, nem
                                                           das vitórias dos políticos ou da guerra,
                     Mas, quando a vida declina e todas as paixões se acalmam,
                     Quando os leves e silenciosos matizes cheios de esplendor cobrem
                                                            o céu ao anoitecer,
                      Quando a suavidade, a plenitude e o repouso inundam o ser,
                                                   como uma aragem mais fresca e reparadora,
                      Quando os dias adquirem uma luminosidade mais suave e as
                                     maçãs, por fim, pendem indolentemente plenas e maduras
                                      das árvores,
                      Então, entre todos os outros,  vêm esses dias cheios de calma e
                                              felicidade!
                       Os dias tranquilos de meditação e bem-aventurança.


                                     
    Walt Whitman, "Folhas de Erva"







J.C.

(Poeta de Valmedo)           
      
    
       

quarta-feira, 1 de junho de 2016

A INDIFERENÇA E O EQUILÍBRIO MENTAL


2016

        SARA DI PETRANTONIO,  22 anos, estudante, morre em Roma. corria o domingueiro 29 de Maio. Enquanto conduzia numa estrada periférica da capital italiana foi atacada pelo ex-namorado, o qual, inconsolado pela recente separação, não foi de modas e, regando-a com álcool, teve ainda o atroz discernimento para lhe pegar fogo com o isqueiro... 
          Para além de ter sido queimada viva, Sara teve ainda outra experiência inusitada, a de pedir suplicantemente ajuda aos condutores que passavam no local e, ora porque apressados para compromissos deveras importantes ora porque não tiveram a lucidez suficiente para entender a realidade, nem um deles teve tempo ou vontade para parar e prestar auxílio, assim revelam as chamadas câmaras de segurança e vigilância aí instaladas que se limitaram a registar a carbonização da jovem e da sua viatura... Quem sabe se, ao invés da INDIFERENÇA, alguém tivesse parado para auxiliar e hoje Sara ainda estaria viva?....



Sara Di Petrantonio
1957

       LEON FESTINGER, 38 anos, psicólogo social da Universidade de Stanford, Estados Unidos,   apresenta a sua "TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA", um dos mais relevantes estudos sobre o comportamento humano feitos até hoje!   
        A teoria é assustadoramente simples: o nosso cérebro tem de estar em EQUILÍBRIO entre as nossas crenças, ideias e pensamentos e o nosso COMPORTAMENTO, quando nós fazemos algo que é contrário à nossa matriz de valores entramos em DISSONÂNCIA, ou seja, um estado de contradição intolerável para o nosso cérebro! E aí, só existem 2 soluções: ou se muda o comportamento ou se mudam os valores, mas como o comportamento é muito mais difícil de mudar (devido essencialmente ao prazer sensorial das coisas "boas da vida") o que é assustadoramente comum é que se mude a atitude mental!!!



Leon Festinger

  
     Um dos exemplos mais famosos desta teoria é a do caso dos fumadores:
           - alguém que fuma experimenta a dissociação cognitiva, ouve falar dos riscos para a saúde, das probabilidades enormes de contrair cancro do pulmão e então a solução mais óbvia é DEIXAR DE FUMAR!!!!
         - mas como o comportamento é muito difícil de alterar, o mais comum é o fumador alterar as suas crenças e ideias por forma a sustentar uma atitude contrária  às evidências: se deixar de fumar vou ganhar 20 Kgs e tornar-me menos "sexy", vou ficar mais intolerante, afinal quem me diz que não posso morrer de outra coisa qualquer do que pelo tabaco? E o bem que um cigarrito  me sabe depois de uma almoçarada? Valerá a pena tanto sacrifício? E depois conheço não sei quantas pessoas que fumaram até aos aos 80 e só morreram aos 90!...

         TUDO VALE PARA MANTER OS HÁBITOS QUE DÃO PRAZER APESAR DA CONSCIÊNCIA DIZER QUE SÃO NEFASTOS, GOZEMOS AGORA E PENSEMOS DEPOIS, A VIDA É CURTA E NINGUÉM TEM OUTRA OPORTUNIDADE.... É ISTO QUE O NOSSO CÉREBRO  NOS DIZ... (pelo menos alguns...)


               

        


        Ora, está claro que todos os condutores que passaram pela Sara Petrantonio em chamas sofriam de dissonância cognitiva, eles "viram" uma jovem a ser imolada pelas chamas mas, de acordo com as suas crenças e experiências de vida, provavelmente entenderam a situação como normal, que poderia ser alguma brincadeira pirotécnica ou até uma encenação de alguém perturbado que devesse estar num hospital psiquiátrico... E depois haveria que sair da zona de conforto, do comodismo, do não se ralar, outros que o façam...
         Produto dos tempos modernos, poderíamos dizer... Mas infelizmente, talvez seja a pior característica  da humanidade nos tempos que correm, a alienação, a indiferença....
            E desde que o nosso equilíbrio mental se mantenha, ainda que em bases falaciosas, todo o mundo que nos rodeia se apresentará paradisíaco....


João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)