quarta-feira, 24 de agosto de 2022

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XIX


SARRABULHO À SÃO BARTOLOMEU


Ontem tinha decidido já pela tardinha que a corrida matinal de hoje seria por trilhos de São Bartolomeu dos Galegos, não por causa das orquídeas que só lá para Janeiro começarão a despontar, nem pelo santo nem tão pouco pelos galegos que aqui chegaram há séculos para a caça da baleia e que por cá ficaram, então Peniche ainda era uma ilha e o mais importante porto da região ficava na Atouguia, a da baleia, claro...  Apenas tinha saudades, só isso, e foi com surpresa que quando cheguei ao largo da igreja do século XV senti uma atmosfera diferente, quase festiva, algo de especial se passava e o mistério esclareceu-se quando dei de caras com o panfleto afixado na Junta de Freguesia: era dia da famosa feira anual! Bela pontaria, disse para comigo mesmo...




Corrida tranquila feita por trilhos imaculados e húmidos devido à borriceira que ia caindo, toca a vestir um fato de treino apresentável e vamos lá então ver como está a feira, que isto não acontece todos os dias, apenas uma vez por ano, no dia em que o apóstolo Bartolomeu terá, segundo a lenda, sido morto por esfolamento... E lá desci a Rua da Pedreiras ou não fosse a terra conhecida desde a Idade Média pelas oficinas de mestres canteiros ímpares a trabalhar a pedra abundante na região, por entre tendas e grupos de pessoas que punham a conversa em dia, fugindo ao cheiro dos churros acabados de fritar e mirando rapidamente as bancas, "Amigo, veja só estas calças de ganga, não encontra melhor! Pode mexer!" dizia o vendedor com voz gitana, "Cinco pares de meias por dois euros e meio! Veja, freguês, qualidade..." gritava a mulher esganiçada do outro lado...



    

E depois tudo se vendia, roupas e toalhas, amendoins e sapatos, gaiolas e grelhas, ou não fosse a grelha o símbolo de São Lourenço, o outro santo da aldeia trazido pelos galegos de antanho e que terá sido grelhado na Ásia quatro séculos depois de Cristo... E de repente o magote de gente, feito especialmente de homens porque as mulheres ficavam para trás alcovitando, começou a dirigir-se para o fundo através de um extenso terreno que outrora fora o campo de futebol, balizas arrancadas que já não serviam para nada e os antigos balneários reconvertidos em WC's públicos, um palco em cimento para as festas de verão e um pequeno pavilhão que serve de cozinha e zona de refeições... 




Claro, aproximava-se a hora do almoço e que bem cheirava, lembrei-me então do cartaz, havia take-away, cheguei-me à frente para ler a oferta e parei no SARRABULHO, também havia carne de porco à portuguesa e bifanas mas que interessava isso, havia sarrabulho e isso levava-me até aos tempos de infância ribatejana onde em semana de matança do porco se comia a sopa da cachola em casa da Ti Olinda e onde nas vésperas pela noitinha admirava as mulheres a encher as tripas a dedal para fazer chouriças como já não há... E enquanto me punha na fila para encomendar ia observando o chef  Gilberto debruçado sobre um fogão rasteiro a dar as últimas agitadelas no dito cujo...




Sem reservas ou queixumes, chegado a casa senti-me num antro de prazer de tão bom estava o sarrabulho, ainda para mais quando a mesma sensação só chegará daqui a um ano exacto... 


João Ratão

(Chef  de Valmedo)

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

"Flying rocks" - Peniche

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

domingo, 21 de agosto de 2022

ESCRITO NA PAREDE - XIX


FÃS DA LENINHA, CUIDADO!


Pois é, (não é)? Como diz a célebre canção dos Clã há coisas assim, curiosas e brincalhonas que podem iludir o mais dedicado, fervoroso e distraído fã de um músico ou de uma banda, como é o caso daqueles que se fazem à estrada para ir ver um espectáculo da LENA D'ÁGUA, seja ele onde for, só que hoje não convém fazerem confusão e deixem-se estar tranquilamente em casa porque quem vem actuar às Papagovas não é a Lena, Leninha para os mais chegados, mas sim os Linha D'Água, grupo do este que anima os bailaricos até cair...



 

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

 

JAMES, A MASCOTE...


- Olha James, já imaginaste se fosses a mascote aqui do Atlético Clube de Valmedo? - ouvi o J.C lançar na minha direcção enquanto via naquela viciante caixa mágica um documentário sobre aquele jogo chato que se arrasta por demasiado tempo em que eles andam para lá aos pontapés a uma bola, ainda por cima muitas vezes maltratada... - Repara só, em LILLE, cidade bem lá no norte da França e considerada a capital da Flandres francesa, o clube local, chamado  LOSC LILLE, tem como mascote este imponente mastim! Não é um espectáculo?




E de facto, amigos caninos, aquele cão era imponente e metia respeito, sem dúvida que foi uma bela escolha para símbolo do clube mas porque razão?, perguntei ao J.C inclinando a cabeça e levantando a orelha esquerda:
- Pois, parece que há muitos anos, ainda no século passado, o LILLE, então ainda um clube modesto, foi jogar ao Parque dos Príncipes com os todo-poderosos parisienses e fez um heróico brilharete e que levou um célebre jornalista a a estampar na primeira capa que os de Lille pareciam cães a jogar tanta era a sua raça e coragem... Este elogio caiu tão bem que a partir daí o símbolo do clube passou a ser um cão, este enorme mastim que ali se vê!



Uma bela história, não acham, amigos caninos? Pena que não hajam mais clubes a terem cães como símbolo e pena também que eu não possa ser a mascote do Atlético de Valmedo, muito simplesmente porque o clube não existe sequer, era só o J.C a meter-se comigo mas agora, depois desta curiosa conversa ao entardecer deu-me a veneta de ir lá pra fora dar uns toques na bola e apurar a minha técnica, sim, eu poderia ser jogador de futebol e se duvidam reparem no meu domínio de bola com a maxila e com a pata esquerda, já não para falar no controlo do esférico a grande correria, tirava lugar a muitos jogadores do glorioso que às vezes parecem que andam a pastar em campo...
- Ah! E este ano vamos apoiar o Lille porque o treinador é português, sabias? Só é pena que o Renato tenha saído... - ouvi o J.C a lamentar-se enquanto eu já me dirigia para o relvado cá de casa...






James

(Cão de Valmedo)

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

 

O RITUAL DA BENDITA VACINA ANUAL...


E pronto, a vida canina neste mundo-cão é assim, no meio de tanto marasmo lá acontece de muito em muito tempo o ritual da vacina, dizem-me cá em casa que tem de ser, que é para o meu bem e que me vai proteger de uns bicharocos malvados que andam por aí... E afinal que podemos nós fazer, amigos caninos, a não ser confiar nas pessoas da nossa família e que nos querem bem? Aqui estou eu no largo da igreja do Toxofal, preso pela trela e em fila de espera para a breve pica, também não era necessário tal aparato porque eu não iria fugir e se de vez em quando dou um esticãozito é porque não resisto ao desejo que sinto de entabular conversa com algumas donzelas que também aguardam pela sua vez... Lá ao fundo a N. vai falando com o veterinário municipal, mostra-lhe o meu boletim de vacinas, dá-lhe uma nota para mão que a saúde não está barata,  informa-se sobre outras questões relacionadas com a minha idade, sim, é verdade, estou a ficar maduro, amigos caninos e finalmente parece que chegou a minha vez...   




A coisa foi rápida, até demais porque entretanto já eu estava a ser arrastado à má-fé pelo J.C e eu a reclamar e a tentar fincar o pé, olhando desesperadamente para o outro lado da rua de onde me vinham chegando estonteantes feromonas lançadas  por uma rafeira de belos olhos castanhos... A coisa só veio a compôr porque entretanto vi a N. seguir viagem sozinha no carro e então instintivamente me lembrei de que tradicionalmente o dia de vacina contemplava o regresso a casa com o J.C por caminhos e florestas que há muito tempo eu não cheirava...  Aquela sensação de liberdade e aventura, entendem?



James

(Cão de Valmedo)

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

 

DIAS EM QUE O MUNDO-CÃO É NOSSO!


Há dias assim, mui prezados amigos caninos, e apraz-me dizer que deveriam ser eles muito mais frequentes tanto é o bem que nos fazem à alma, dias especiais em que só parece que este mundo-cão foi feito para nós e à nossa exclusiva medida... Dormitava eu ontem pela manhãzinha refastelado na fresca tijoleira do escritório, arrefecendo do calor agustino que grassava lá fora enquanto o J.C ia dando ouvidos a uma conversa tagarelada da Antena 3 que me ia arrastando para uma sonolenta apatia, reparem só, nem uma musiquinha, tão só conversa fiada, que razão de ser poderia aquilo ter?, ia eu pensando quando  de repente desembrenhou ele do ecrã do computador e voltando-se de sopetão na minha direcção lançou:

-Ouviste James? Ouviste bem o que a Garota Não acabou de dizer?

E eu, abrindo os olhos surpresos, limitei-me a esperar que ele esclarecesse melhor, geralmente esta táctica funciona, o J.C faz as perguntas mas depois de um breve silêncio encarrega-se ele próprio de lhes dar a conveniente resposta...

- Pois a Cátia acabou de dizer que deve muito da sua experiência artística e orientação musical a um colega de faculdade e músico e também de Setúbal e que se apresenta como, imagina,  JAMES!

E não dando tempo para qualquer reacção minha já ele me mostrava o outro James, rapaz apresentável pela foto e que entretanto já ecoava pelo éter de Valmedo com uma das canções do seu álbum "Mnemonic Devices" chamada "Paraíso" e nem de propósito veio-me à lembrança o facto de o J.C estar a precisar de um aparelho qualquer que lhe avive a memória, e isto, amigos caninos, são palavras do próprio...





Ainda ecoavam os últimos acordes quando a N. abriu a porta e sentenciou:

- Então? Está na hora da vacina! Estão à espera de quê?

E o ambiente que até àquele momento tinha estado agradável e sereno ficou mais tenso, é que se ainda não repararam tratava-se da "minha" vacina anual! Prepara-se a coleira, sobe-se para a bagageira do velhinho Opel até parecer um condenado enjaulado num carro-prisão, aguenta-se os solavancos pelo caminho demasiado sinuoso até ao local do sacrifício e eis que se ouve o J.C. gritar:

-Olha para ali James, parece que é mesmo o teu dia! - e apontava para a berma da estrada onde numa enorme tabuleta estava escarrapachado o meu nome...  

Desde então, aqui em casa, nunca se veio a descobrir quem raio era aquele James à beira do caminho... Se algum de vós, amigos caninos, souberem de quem se trata avisem-me por favor, dou alvíssaras...





JAMES

(Cão de Valmedo)

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

"Dante in Termini", Roma - Jean-Charles Forgeronne

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XVIII


TERMINAR EM BELEZA N(O)A  ANDREA 


O antro de prazer onde jantámos hoje fica a escassas duas centenas de metros da Termini, a central estação ferroviária de Roma aonde tudo chega e de onde tudo parte, numa esquina sossegada da Via del Mille, que é como quem diz em lusitano "Rua dos Mil" e de chofre surge-nos a curiosidade: quem serão esses mil? Enquanto aguardamos por autorização para nos sentarmos na mesa vaga à nossa frente faço uma breve pesquisa mas sem sucesso, nem enciclopédias nem o próprio sítio da cidade de Roma e nem a simpática empregada que nos atende nos irão oferecer a mínima pista para o mistério, esses mil ficarão ocultos talvez para sempre...





Estamos nANDREA ristorante se entrarmos por uma porta ou na ANDREA pizzeria se pela outra entrarmos e ainda bem que decidimos vir cedo porque as salas interiores já estão muito compostas e cá fora na tranquila e pequena esplanada a temperatura é muito agradável...  E foi pelo simpático  recepcionista do nosso hotel ali à beira que aqui chegámos, o ditado lá diz que é pela boca que se chega à melhor Roma!



Não é um Andrea nem uma Andreia que nos serve, que nisso de nomes próprios masculinos e femininos os italianos são muito sui generis, é antes uma encantadora Paola e aquilo que nos vai trazendo, felizmente sem pressa, vai maravilhando o palato e a alma, desde o antipasto misto (presunto e salame toscanos) à salada romana, desde o pão tostado ao molho avinagrado de tomate seco para acompanhar uns deliciosos Scaloppine al vino bianco, que é como quem diz uns escalopes de vitela em molho de vinho branco...




Aqui, nesta noite primaveril e neste pacato bairro residencial, cheira a dolce vita e a coisa ainda mais doce ficou quando, para a despedida, fomos presenteados sem aviso prévio com umas bolachinhas e uns limoncellos caseiros... E então sim, depois destes carinhos, depois da óptima comida que serviu para desenjoar das pizzas e das pastas e depois da agradável surpresa da conta em conta (nada caro), revelou-se o mistério inicial: os mil são os mil agradecimentos à italiana - "Grazie mille"!


"Mille grazie e lunga vita, Andrea"


 João Ratão

(Chef  de Valmedo)

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

 

LOUCURAS TURÍSTICAS...


Atravessando a Ponte Palatino, com a mais pequena ilha habitada do mundo à ilharga e à qual chamaram Isola Tibertina, deixámos o Tibre e o vale para trás e de mãos heroicamente ilesas após terem sido postas à prova na Bocca della Verità lá encaramos a penosa subida para o Aventino, um dos sete montes ou colinas da Roma antiga... Tínhamos que lá ir, disseram-nos outros turistas, era obrigatório, recomendavam todos os guias de viagem, imperdível aquela foto diferente de todas as outras, uma secreta visão da vaticana cúpula prometia-se... 


A fila turística - Jean-Charles Forgeronne


E começou por valer a pena chegar lá acima ao chamado Giardino degli Aranci, que é como quem diz o jardim das laranjas, mui amargas por sinal, embora por ali também se encontrem muitos pinheiros... O jardim, situado num dos mais tranquilos locais de Roma e também conhecido por parque Savello, foi construído sobre uma antiga fortaleza com o intuito de oferecer ao público magníficas vistas sobre o Tibre, Trastevere e São Pedro e quanto a isso ninguém se pode queixar...  





Mas a verdadeira atracção, aquilo que de facto nos movera naquela demanda estaria muito perto, poucos metros adiante da luminosa basílica Santa Sabina que nem deu para visitar porque tanta era a excitação naquela ocasião especial porque recebia um engalanado casamento... Limitámo-nos a passar defronte, desejando muitas felicidades aos noivos e que só a morte os separasse mas eis que quando chegamos ao pequeno largo ao fundo e após alguns momentos de desorientada surpresa desabafei em voz alta: - "Fogo! Também aqui? Verdade seja dita, se soubesse que iria ser assim não tínhamos vindo!" 



Mais uma interminável fila turística, dezenas e dezenas de pacientes criaturas serpenteando defronte de um portão, ia chuviscando de vez em quando sobre as moleirinhas e notava-se por entre sorrisos e sapateados o desconforto da espera, e tudo para quê? Para uma singular e extraordinária fotografia da cúpula do Vaticano tirada através de um minúsculo orifício, uma espécie de buraco de fechadura que abria as portas do céu!  Uma boa meia hora já tínhamos gasto ali, alguns iam desistindo e com isso animavam os restantes e outros ainda depois de tirarem a foto obrigatória saiam dali a sorrir encolhendo os ombros como se não tivesse valido a pena tanto sacrifício, e de facto não vale, ainda para mais quando entre tanta pressão o boneco não sai bem ou porque a luz era demasiada ou porque entre tremuras a coisa sai desfocada! E foi o que me aconteceu, tanta luz que parece que fotografei uma aparição da Nossa Senhora de Roma!





"Aparição" - Jean-Charles Forgeronne


Só depois de me retirar do miraculoso orifício constatei o fracasso da foto e agora era tarde demais, já a fila estava outra vez enorme e nem pensar ficar em espera por mais meia hora, para além disso a foto que a N. tinha tirado e que poderia salvar a jornada também não ficou muito melhor! Quem sabe, talvez o meu amigo Henrique Gomes que passou por ali meses antes e me recomendou o sítio pudesse salvar a história desta louca aventura turística... Certo certo é que não há melhor vista para o Vaticano do que aquela do jardim das laranjas por mais que os guias turísticos aconselhem o buraquinho no portão... 












Photo by - Henrique Gomes



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)