TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XIX
SARRABULHO À SÃO BARTOLOMEU
Ontem tinha decidido já pela tardinha que a corrida matinal de hoje seria por trilhos de São Bartolomeu dos Galegos, não por causa das orquídeas que só lá para Janeiro começarão a despontar, nem pelo santo nem tão pouco pelos galegos que aqui chegaram há séculos para a caça da baleia e que por cá ficaram, então Peniche ainda era uma ilha e o mais importante porto da região ficava na Atouguia, a da baleia, claro... Apenas tinha saudades, só isso, e foi com surpresa que quando cheguei ao largo da igreja do século XV senti uma atmosfera diferente, quase festiva, algo de especial se passava e o mistério esclareceu-se quando dei de caras com o panfleto afixado na Junta de Freguesia: era dia da famosa feira anual! Bela pontaria, disse para comigo mesmo...
Corrida tranquila feita por trilhos imaculados e húmidos devido à borriceira que ia caindo, toca a vestir um fato de treino apresentável e vamos lá então ver como está a feira, que isto não acontece todos os dias, apenas uma vez por ano, no dia em que o apóstolo Bartolomeu terá, segundo a lenda, sido morto por esfolamento... E lá desci a Rua da Pedreiras ou não fosse a terra conhecida desde a Idade Média pelas oficinas de mestres canteiros ímpares a trabalhar a pedra abundante na região, por entre tendas e grupos de pessoas que punham a conversa em dia, fugindo ao cheiro dos churros acabados de fritar e mirando rapidamente as bancas, "Amigo, veja só estas calças de ganga, não encontra melhor! Pode mexer!" dizia o vendedor com voz gitana, "Cinco pares de meias por dois euros e meio! Veja, freguês, qualidade..." gritava a mulher esganiçada do outro lado...
E depois tudo se vendia, roupas e toalhas, amendoins e sapatos, gaiolas e grelhas, ou não fosse a grelha o símbolo de São Lourenço, o outro santo da aldeia trazido pelos galegos de antanho e que terá sido grelhado na Ásia quatro séculos depois de Cristo... E de repente o magote de gente, feito especialmente de homens porque as mulheres ficavam para trás alcovitando, começou a dirigir-se para o fundo através de um extenso terreno que outrora fora o campo de futebol, balizas arrancadas que já não serviam para nada e os antigos balneários reconvertidos em WC's públicos, um palco em cimento para as festas de verão e um pequeno pavilhão que serve de cozinha e zona de refeições...
Claro, aproximava-se a hora do almoço e que bem cheirava, lembrei-me então do cartaz, havia take-away, cheguei-me à frente para ler a oferta e parei no SARRABULHO, também havia carne de porco à portuguesa e bifanas mas que interessava isso, havia sarrabulho e isso levava-me até aos tempos de infância ribatejana onde em semana de matança do porco se comia a sopa da cachola em casa da Ti Olinda e onde nas vésperas pela noitinha admirava as mulheres a encher as tripas a dedal para fazer chouriças como já não há... E enquanto me punha na fila para encomendar ia observando o chef Gilberto debruçado sobre um fogão rasteiro a dar as últimas agitadelas no dito cujo...
Sem reservas ou queixumes, chegado a casa senti-me num antro de prazer de tão bom estava o sarrabulho, ainda para mais quando a mesma sensação só chegará daqui a um ano exacto...
João Ratão
(Chef de Valmedo)