segunda-feira, 31 de outubro de 2022


A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - XXII 


FLÂNEUR, O CURIOSO ERRANTE...


Afinal também sou um flâneur e não sabia, dizia para si mesmo Jean-Charles Forgeronne enquanto serpenteava por entre aqueles luminosos cubos espalhados pela praça central da Lourinhã, um original projecto de intervenção artística em plena rua ou praça de vilas e cidades, acessível a qualquer hora do dia ou da noite, neste caso uma exposição fotográfica de paisagens urbanas e rurais do oeste e intitulada "FLÂNEUR AO CENTRO"...  Em cada uma das cinco faces visíveis de doze cubos uma paisagem e aquela que corresponderia à base está no chão a seu lado, são ao todo cerca de 80 fotografias da autoria de quatro flâneurs fotógrafos convidados...


"Flânerie" - Jean-Charles Forgeronne


  Mas afinal que é um flâneur? Investigou Forgeronne e descobriu nos dicionários:

- Flâneur - passear, vaguear, vadiar...

- Flânerie  - passeata, passeio sem destino, vadiagem...

- FLÂNEUR - ocioso, passeante, errante...

Então era isso! Quando ele se perdia por todos os cantos inimagináveis e era atraído por qualquer coisa desconforme no mosaico citadino e errantemente desatava a disparar a câmara isso significava que estava à procura do elo que faltava, o entendimento cultural, social e até económico das expressões do asfalto e cimento citadinos, como disse Baudelaire, um flâneur é "alguém que deambula pela cidade com o objectivo de experimentá-la" ou então como alguém que seja um botânico do asfalto e que ande à procura de novas espécies vegetais, afinal tudo junto desemboca num novo olhar sobre o mundo-cão....    


"Os cubos mágicos" - Jean-Charles Forgeronne


E, como que por estranhas coincidências, uma das flâneurs representadas no evento, Catarina Botelho, vive actualmente entre Lisboa e Barcelona  e então exclamei: Caramba! Como o mundo é pequeno, estava eu na véspera da minha programada flânerie por Barcelona!  


João Portugal

(Linguísta deValmedo)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

 

A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - XXI


ERRARE HUMANUM EST


É mesmo misteriosa a origem da expressão latina "Errare humanum est..." pois  não se conhece o seu autor e alguns especialistas consideram-na um ditado de origem popular que mais tarde foi celebrado nos seus escritos por vários santos católicos como Jerónimo, Agostinho, Beda ou Bernardo, revestindo-a de aura religiosa ao juntar-lhe "persevare antem diabolicum", ou seja, "errar é humano mas insistir no erro é diabólico, pecaminoso"... Mas o mistério adensa-se se nos restringirmos à expressão essencial, "errare humanum est", à qual, por hábito e instinto reduzimo-la ao "errar é humano" mas esquecendo ou desconhecendo o outro não menos importante significado e que é: "errar, viajar, deambular sem destino é humano"! 


"O errante Álvaro" - FÓLIO - Jean-Charles Forgeronne

  Atente-se num dos significados de "errar", segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: "andar sem rumo certo, vaguear, percorrer...". Um errante é então alguém que vive em estado de errância, que erra por aí, um erradio, um vagabundo, um viajante sem destino nem trajectos exactos e como muito bem acertou Álvaro Laborinho Lúcio em "Breviário do Tempo Contado": "Errare humanum est, pensa o viajante a descomprometer-se de roteiros pré-delineados, avessos ao risco, assustados com a surpresa. Errare! Como se a aventura da errância se rendesse aos pés de uma moral de pacotilha, aceitando-se como erro e confortada com a tolerância e a compreensão afectuosas de um simples humanum est."






Errar faz então parte da essência humana e por isso mesmo vou pôr-me ao caminho em busca de qualquer coisa, de um outro mundo-cão talvez, de uma qualquer verdade longínqua, de mim próprio, quem sabe...


João Portugal

(Linguísta de Valmedo)

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

 

CAMINHO FEITO DE POEMAS E MÚSICA... 


Pode passar despercebido a quem passa no largo a olhar para outras coisas mais imediatas como a pequena mas belíssima igreja ou o chafariz do século XVII ou até a enorme tenda literária instalada para estes dias mas o Jardim do Solar da Praça de Santa Maria, em Óbidos, é um surpreendente recanto encantatório, especialmente quando ao anoitecer se é brindado com música e poesia... E assim, sob os braços gigantescos de uma vetusta nogueira e vendo o espectro luminoso reflectido num limoeiro também já velho, embarcamos numa viagem sonora a bordo de um louco navio na companhia da viola campaniça de João Morais, também chamado de "O Gajo", do contrabaixo do Carlos Barreto e da voz e dos poemas de José Anjos, que também tamborilava o ritmo... E numa mistura de sons e palavras declamadas que nos transportam para o sul e até para as arábias ainda couberam alguns poemas de Cláudia Sampaio ditos pela própria e a noite foi levemente ficando cada vez mais doce...




"O Navio dos Loucos" - Jean-Charles Forgeronne

O caminho é o poema

É uma linha lenta

sempre recta, sempre certa, incerta

para onde quer que se vire

é uma linha lenta

sempre recta, sempre certa, incerta

para onde quer que se vire

o caminho é como o poema

revela-se e auto destrói-se nesse preciso momento

torna-se desnecessário,

irrepetível, em vício ermo de um deus obsoleto

O caminho é como o poema

depois de percorrido até ao fim, torna-se outro

e outro e outro e outro e outro

até chegar aqui, a este lugar onde acabo

e parto com uma única certeza

a de que não poderei continuar em frente

por isso paro.


"Solar de Santa Maria" - Jean-Charles Forgeronne

Paro por uns instantes e olho para trás,
não para fugir
mas apenas para contemplar uma última vez
as ruínas os poemas as portas que escolhi
agora são ombros sem cabeça sem carne sem sombra
são esqueleto cimento
nuvem noite e silêncio seco, morto
são pedaços de sol morto com vários nomes que trago comigo
cabelos e pele
pessoas inteiras que não consegui recuperar
da condição mágica e cruel do sonho
por mais que as segurasse
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa
incerta, certa
para onde quer que eu vire
o caminho é o poema
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
o caminho é como o poema,
ainda não existe
por isso no bolso trago apenas a moeda de Heisenberg
com o saldo da minha vida
de um lago crédito
do outro dívida
uma linha lenta
sempre recta, incerta
uma linha lenta sempre recta, incerta
de um lado crédito, do outro dívida
saberei quanto pagar?

José Anjos in "Manual de instruções para desaparecer"






João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

domingo, 16 de outubro de 2022

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XX


COELHO EM TERRA DE URSOS


Entre livros e palestras e antes das artes musicais que iriam encerrar a jornada já rica e longa lá demandamos uma das colinas que sobranceiam Óbidos em busca de apaziguamento para o estomago carente, a salvação estava em território que já foi de ursos ou não se chamasse a aldeia Usseira mas onde nos dias que correm quem reina é o coelho... Ainda a tinta do autógrafo da Bernardine Evaristo não tinha secado e já estávamos abancados na TOCA do COELHO, moderna e aconchegante lura que tanto serve de restaurante como de petisqueira...




E claro que para primeira visita é obrigatório conhecer o "Coelho à Toca" em que o leporídeo nos é apresentado imaculadamente assado, crocante até nalgumas porções e acompanhado de um divinal arroz de feijão e umas deliciosas batatas fritas em ervas aromáticas, uma delícia para roer e chorar por mais que casou muito bem com um Lagoalva tinto...





Apesar das doses serem generosas e poderem ser partilhadas quando são vários os comensais, já satisfeito de coelho ainda fui  desafiado para provar uns "Lagartinhos de Porco" que alguém não conseguia despachar e o sacrifício recompensou, carne tenra e saborosa de exímia assadura... E se a coisa já estava muito bem então acabaria em beleza quando alguém guloso se deixou convencer a provar o "Bolo de Chocolate com caramelo salgado e frutos vermelhos", uma delícia que merece um boicote a qualquer restrição calórica! Obrigatório voltar para explorar a açorda, o bacalhau e outros petiscos...




João Ratão

(Chef de Valmedo)

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXX


AS RAPARIGAS, AS MULHERES E AS OUTRAS...


Bernardine Evaristo, escritora anglo-nigeriana, já tinha agitado as águas anteriormente com romances, poesias e contos mas foi com este livro explosivo que dinamitou as consciências acomodadas deste mundo-cão autista, vencedor do Booker Prize em 2019 "Rapariga, Mulher, Outra", que muito a propósito faz parte do nosso Plano Nacional de Leitura, é um exuberante exercício subversivo que relatando as aventuras de doze personagens retrata a condição feminina e especialmente das mulheres negras na multicultural e esquizofrénica sociedade britânica enferma da herança colonialista... Bernardine obriga-nos através de uma escrita frenética e bem-humorada a ver o mundo com outros olhos, a colocar-nos no lugar dos outros, neste caso das outras e isso não é nada pouco...




"  e também havia a Georgie, a única que não chegou a viver os 

anos 90

vinha do País de Gales e estava atirar o curso de canalizadora,    

os pais eram Testemunhas de Jeová e tinham-lhe virado costas por ela ser 

gay

era uma órfã perdida e então elas adoptaram-na

era a única mulher na sua equipa de canalizadores e tinha de aguentar as  

piadas dos colegas masculinos sempre a falar em 

buracos, brocas, ajoelhar, bicos, válvulas, boias e tanques cheios 

e o que lhes apetecia fazer ao traseiro quando ela estava enfiada 

debaixo de um lavatório a consertar um cano ou de gatas a    

espreitar a uma sargeta   "                                                                                                  


"Bernardine no Folio"

E depois, que delícia foi assistir à conversa entre Bernardine Evaristo e a colombiana Pilar Quintana sobre a condição feminina e as suas lutas femininas, e claro, para acabar em beleza, não poderia deixar de trazer o tão desejado autógrafo para casa...



João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

terça-feira, 11 de outubro de 2022

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

"Oppidum nebula"


 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

UM DIA DE RICO FOLIO


Começar a segunda jornada do Folio com uma bela surpresa é sempre bom e enquanto subia a Rua Direita direito ao Largo de Santiago deparo em pleno Largo de Santa Maria com uma actuação incrível de um trio de andarilhos chamado The Old Times Rags, divertidos artistas de rua que calcorreiam o mundo e grandes festivais oferecendo concertos de music hall, jazzblues ancestrais e dança de sapateado em troca de uns cobres ou da compra do seu CD a 10 euros, uma pechincha... E ali os ouvi, à sombra e entre laranjas, entretendo os passantes e a esplanada bem composta de turistas, show que nem constava do programa oficial do festival...


"The Old Time Rags"

The Old Time Rags

De espírito saciado subi então até à Igreja-Livraria de Santiago, outrora templo de missas e reflexão, agora templo literário em que a religião são os livros, afinal quem disse que a leitura também nos pode abrir as portas do céu? E ali, de livro aberto no altar e rodeado de estantes recheadas de obras para todos os gostos, algumas canónicas e outras nem tanto, assisti a uma agradável conversa luso-brasileira sobre como se constrói um romance e tanto Rute Simões Ribeiro, jovem escritora de origens coimbrãs, como Lucrecia Zappi, jornalista e romancista argentina de nascimento, paulista de crescimento e nova-iorquina de vivência actual, coincidiram na ideia de que não têm qualquer cartilha ou receita para começar uma escrita, a coisa tanto pode nascer de uma ideia como de uma simples conversa em que se em pleno autocarro... Saí dali animado, afinal qualquer um pode descobrir inspiração em qualquer lado, pensei...

"Conversa no altar"

Já tardinha e antes de uma pausa para o premente reconforto gástrico desci aos ziguezagues por entre turistas em busca da casa onde se hospeda a Editora Abysmo, criação de João Paulo Cotrim, jornalista, escritor e apaixonado pela banda desenhada e ilustração, figura incontornável e agitadora do panorama artístico português, desaparecido demasiado novo faz em Dezembro um ano... Foi com o intuito de relembrar histórias surreais e caricatas passadas com Cotrim que vários amigos seus se reuniram mas a emoção tomou conta dos oradores e se na plateia houvesse alguém que desconhecesse de quem se falava então apercebeu-se da figura extraordinária que era o homenageado...


"Os amigos do João"

Para terminar o dia em beleza nada melhor do  que ouvir as palavras de NBC, um são-tomense de cor naturalmente preta radicado em Torres Vedras e que acompanhado com mestria ao piano e com as suas mensagens fortes e inspiradoras bem poderia fundar grupo de auto-ajuda ou então um culto evangélico tal a empatia que desperta na assistência, nunca tinha visto um artista  tão emocionado em palco com a entrega do público e o concerto terminou em apoteose quando o Timóteo decidiu ir cumprimentar um por um todos os espectadores... 


"Natural Black Colour"

João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

sábado, 1 de outubro de 2022



"LOVE YOU MADLY!" - said the irishman...


Sei-o agora que se quisesse não acharia maneira mais bela de me despedir de Setembro do que aceitar o amável convite da Antena 3 para assistir ao concerto inaugural da tournée em modo acústico dos VILLAGERS, isto é, de Connor O'Brien, um trovador irlandês de Dublin que se diz perdido de amores por Portugal e pelos portugueses e que se fez acompanhar apenas por um músico amigo convidado ao piano, sintetizador e saxofone, aliás excelente... Fica já a dica para quem quer começar da melhor maneira um Outubro que se adivinha exigente para se dirigir hoje à noite ao Theatro Circo de Braga e assistir ao segundo show da tournée, não se irá arrepender e se não puder ainda resta a hipótese de assistir a um dos outros 22 concertos que percorrerão a Bélgica, a Holanda, a Noruega, a Dinamarca, Inglaterra e claro, a natal Irlanda... 


"Villagers" - Jean-Charles Forgeronne

 
Lá me dirigi então ao Estúdio Time Out, lugar que começa a ser imprescindível para conviver intimamente com os artistas, o espaço presta-se a isso já que estamos mesmo ali em cima do palco, músicos à distância de braço que até parece que estamos sentados no sofá e eles estão na nossa sala de estar... E ali estavam também muitos irlandeses animados e de baterias carregadas a Guiness lá em baixo nos bares do Mercado da Ribeira, sedentos ainda de ouvir o seu conterrâneo cantautor de melodias ímpares e voz poderosa, a lembrar um tal Cat Stevens na opinião da N. que, emocionada a meu lado e que até à véspera não conhecia os Villagers, se tornou num ápice numa eterna fã, coisa que aliás pode acontecer a qualquer um...    





E no final,para despedida, ainda o irlandês parafraseou Jim Morrison com um autêntico e irresistível "Love you madly"... "I Love Ireland", pensei então eu...


João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)