segunda-feira, 30 de março de 2020




A MAIS BELA ESTAÇÃO DE COMBOIOS...



Estação de Brugges
É um outonal sábado luminoso e agradável a convidar a uma saída de casa e estes belgas não se fizeram rogados, encheram o comboio que vai lento e silencioso até ANTUÉRPIA e como pára em todas as estações e apeadeiros permite-me esclarecer o fugaz enigma de as estradas que consigo descortinar pela janela se apresentarem desertas, é que por aqui pela Flandres e aos fins-de-semana toda a gente viaja de comboio, não se vêem carros e mesmo no percurso de casa até à estação vai-se de bicicleta... Nunca tinha visto tanta bicicleta junta como no parque de estacionamento da estação de Brugges, de onde venho, não deu para contar mas não erro nada se disser que eram aos milhares, todas matematicamente alinhadas e encadeadas a perder de vista, todas menos esta que uma jovem decidida e acabada de entrar vai desmontando com rapidez e perícia à minha frente, parafusos aligeirados, guiador dobrado em dois, roda traseira recolhida e eis que a bicicleta num milagroso espectáculo de malabarismo encolheu de tal forma que agora repousa despercebidamente ali no canto e que se a atlética e bem proporcionada ciclista quisesse caberia na mochila que leva às costas... E eu, num assomo de simpatia lusitana de que às vezes padeço ia quase a meter conversa para dizer que também era adepto e praticante das duas rodas quando arrepiei caminho e, talvez evitando alguma humilhação, limitei-me a esboçar um inconsciente sorriso ao lembrar-me que da última vez que tinha transportado a minha bicicleta, para ela caber, o que eu tive de desmontar foi o carro e não a Bulldozer...  


Comboios em Antuérpia
Estamos agora a chegar ao meu destino de hoje, ANTUÉRPIA, a celebrizada capital mundial dos diamantes, mas existem muitas outras boas razões para se chegar aqui, não venho fazer negócio e não carrego comigo no bolso nenhuma pedrinha contrabandeada em Angola... Abro os olhos o mais que posso, sedento de reparar em todos os pormenores, é que desaceleramos e vamos entrar agora muito lentamente num dos grandes ex-libris da capital da Flandres, exactamente a sua famosa estação de comboios, e meus amigos, tentando controlar a excitação do momento tão aguardado, digo-vos que esta é a "única" e obrigatória forma de aqui chegar sob pena de se perder o encantamento!  E tem de ser vindo de sul, de Bruxelas ou de Brugges porque no outro sentido, chegando de Amesterdão ou Londres, por exemplo, não se desfruta tanto da maravilhosa contemplação do espaço...     




"Centraal Station" - Antuérpia




É unânime considerar-se a estação de comboios de Antuérpia a mais bonita da Bélgica e arredores, e enquanto que para uns ela é uma das dez mais bonitas estações do mundo inteiro para muitos outros foi eleita mesmo mesmo a mais bonita do mundo, e de facto, embora eu não conheça meio mundo é a mais bela e fascinante que alguma vez vi, nem em filmes!  




"Centraal Station" -Antuérpia



O edifício da estação original apresenta uma riqueza arquitectónica impressionante e foi construído entre 1895 e 1905, sob o comando de Leopoldo II, pelos vistos um dos reis mais sanguinários que a Bélgica e a Europa conheceram e que assim dá razão àqueles que dizem ter esta bela e faustosa obra um senão: foi edificada à custa da remessa de dinheiro ensanguentado proveniente do Congo, antiga colónia belga, onde o reino enriquecia graças aos genocídios aí perpetrados durante as desumanas colheitas da borracha...  Muito castigada pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial foi então sujeita a obras de restauro e na última das quais, há dez anos atrás, escavou-se até aos 18 metros abaixo da cúpula de vidro para desnivelar as várias linhas proporcionando um centenário fantástico a quem sobe de escada rolante do nível mais abaixo até ao piso superior... E que espectáculo é quando se cruzam comboios em três níveis diferentes, caso único no mundo...





"Centraal Station" - Antuérpia




João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

sexta-feira, 27 de março de 2020



OS DIAMANTES SÃO ETERNOS...



Estamos fartos de ouvir dizer que os diamantes são eternos, e provavelmente serão eles a única coisa a resistir ao fim do mundo, quem sabe, mas a miséria também não andará longe da eternidade, convenço-me agora depois de reler não só a amarelecida primeira VISÃO que guardei religiosamente durante todo este tempo como também outras reportagens mais recentes sobre o panorama social da LUNDA... Lunda, perguntarão alguns, o que é isso? Quereria ele dizer Luanda e ter-lhe-á falhado o dedo no do teclado, questionarão outros?


Poderia muito bem ser esse o caso, um erro de escrita, afinal quantas mentiras se contam hoje devido a um caracter a mais ou a menos, a uma simples vírgula mal posta, a um nome mal transcrito, manuscrito após manuscrito copiado até à exaustão desde tempos imemoriais? Mas não é este o caso, trata-se mesmo da LUNDA, mais propriamente da Lunda Norte porque, logicamente, também há a Lunda Sul, mas que não é chamada para aqui... Olhando para o mapa a Lunda Norte parece ser uma pequena província do país encavalitada lá no nordeste e de facto isso é verdade mas enganador porque em ANGOLA caberiam quase 14(!) portugais! De facto, e apesar de só ter um milhão de habitantes a Lunda Norte é maior que Portugal e muito mais rica também, toda ela é uma autêntica mina de diamantes... E há quase trinta anos disso fez eco o primeiro número da Visão que para além de destacar a miséria e o êxodo provocados pela guerra civil na província do Huambo apresentou ainda uma reportagem exclusiva sobre a exploração e o contrabando de diamantes na cidade de Lucapa, cidade mineira então sob o domínio do MPLA e que era uma autêntica ilha numa região dominada pela UNITA...




in "VISÃO nº 1" - Março 1993


Dois enviados-especiais da VISÃO, Filipe Luís e Gonçalo Rosa da Silva, fizeram reportagem na Lunda Norte, onde nunca tinham entrado jornalistas em tempo de guerra! E o que viram eles e relataram? Disseram eles que a SML (Sociedade Mineira de Lucapa), de capitais maioritariamente do governo angolano mas em que o estado português era sócio e parte interessada, detinha a exclusiva autorização legal para a exploração das minas e filões de diamantes! Também disseram eles que devido à guerrilha, só a segurança e o patrulhamento de ex-comandos e ex-páraquedistas portugueses permitia o funcionamento das ditas minas "oficiais", seguramente com o beneplácito e interesse das autoridades lusitanas... Ainda relataram a perseguição que era votada aos garimpeiros, eles que mais do que ninguém sabiam onde e quando encontrar as melhores pedras! E constataram que o que movia tudo aquilo era o contrabando, "Queres comprar pedrinhas?", perguntava-se nos hotéis de Luanda...
E claro, até a De Beers, o gigante da distribuição de diamantes na altura, enquanto investia 250 milhões de dólares legalmente depois investia mais 300 milhões em pedras contrabandeadas na capital mundial do diamante, ANTUÉRPIA! Quem ganhava com tudo isto já sabemos, governo angolano, governo português, angolanos e portugueses corruptos, traficantes e oportunistas... E só perdia o povo da Lunda e o garimpeiro que se matava na busca das pedrinhas das quais nem sabia o real valor, afinal ele só queria sobreviver, à miséria, à guerra, à vida! É que ali ao lado, morriam três crianças por dia de diarreia e de sarampo, mas nisso ninguém reparava!

Curiosamente, as notícias recentes, passados quase trinta anos, são as mesmas, garimpeiros arriscando a vida na busca ilegal de pedrinhas para tentar arranjar sustento para a família e às vezes para a aldeia inteira, a única saída da miséria... E disse um traficante: " Cheguei a trocar um garrafão de vinho  por um diamante! O garimpeiro não tem a noção do que está a vender. A pedra não lhe serve para nada, ele quer é o Nissan Patrol, o vídeo, ou pelo menos, a grade de cerveja". E muitas vezes a coisa corre mal, melhor para a corrupção e para os interesses instalados!


ANGOLA

Angola: Garimpo continua a matar na Lunda Norte

Ativistas angolanos ouvidos pela DW afirmam que, devido à pobreza extrema da população, os assassinatos de garimpeiros vão continuar a existir naquela região.


"Notícias de 2019"


Eternos são os diamantes, mas, pelos vistos, eternos são também a miséria e a injustiça...



João Caixa

(Jornalista de Valmedo)





"Angola's Nature Map"


João Plástico

(Artista de Valmedo)

quarta-feira, 25 de março de 2020



EFEMÉRIDE # - 70

SE PUDERES OLHAR... VÊ!


"Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara!" Esta extraordinária frase que José Saramago botou na contracapa do magistral e actual "Ensaio sobre a cegueira" é tão curta quanto profunda, apenas oito palavras que podem catalisar milhares de pensamentos e reflexões e na sua sintética criação atesta a sabedoria do seu criador... Começa por condicionar tudo com a liberdade de agir no "se puderes", acontece que nem toda a gente pode olhar mesmo que não seja cego e de entre esses nem todos são capazes de ver, seja por falta de tempo ou por desinteresse ou por ignorância ou por outra coisa qualquer e depois, nem mesmo aqueles que viram algo de diferente e importante num acontecimento qualquer conseguem reparar porque para reparar é necessário primeiro parar e depois dar atenção, examinar, pensar, questionar, e isso muitas vezes dá trabalho! O que Saramago nos diz, em última análise, é que quem tem o privilégio de ver e não repara é a mesmíssima coisa que não enxergar nada, é apenas mais um cego e mais um desperdiçador do sublime sentido da visão, alguém de pouco alcance... Fica ainda aquilo que ele não disse e que seria: "Se reparares, faz!", repara o que está mal, agita o mundo para o tornar melhor, mais justo e mais verdadeiro, mais humano... 




VISÃO - Nº 1



Mas depois também é verdade que se o nosso mundo fosse apenas aquilo que cada um de nós vê ou consegue ver então viveríamos num mundo pequenino e mesquinho, irreal porque nos sentiríamos como Platão na sua caverna de sombras e assim, para o bem e para o mal, somos impelidos a construir o nosso mundo também pelos olhos dos outros, sejam eles pensadores, filósofos, escritores, cineastas, cientistas, políticos, jornalistas, todos aqueles que não sendo cegos conseguiram ver e reparar e outros que, melhor ainda, conseguiram melhorar um pouco esse mundo que encontraram! Claro que é essencial escolher bem esses observadores que nos emprestam os seus olhos para vermos mais longe e cada vez mais, nesta era de intoxicante e descartável informação, é necessário encontrar referências porque sem confiança poderemos cegar e não ver nem reparar no que é essencial e importante... E é aqui que entra a VISÃO que desde 25 de Março de 1993, há exactamente 27 anos, luta contra a cegueira e nos permite ver melhor o mundo, se reparamos nele ou fazemos algo por ele isso é outra história e depende de cada um... Por isso, obrigado e parabéns, VISÃO!



João Caixa

(Jornalista de Valmedo)






A VIDA BOA NA ALDEIA...

(... e ESCRITO NA PAREDE - VII)




Subindo a Rua D. Pedro, da mercearia de livros do professor até ao café-mercearia do Jorge são uma breve centena de passos que vale a pena dar mais que não seja para descansar um pouco nos bancos de pedra muito bem situados ali  na esquina... Dali vislumbra-se o cocoruto do campanário da igreja e mais ao longe é possível descortinar uma franja da floresta de onde acabo de vir de mais uma exploração. Hoje não se vê chávenas de café ou garrafas de cerveja sobre a mesa de mármore deixadas à pressa antes da ida para o trabalho ou pelos exploradores do planalto que necessitaram de uma salvadora hidratação, a culpa é deste maldito vírus que obrigou as autoridades a fechar o café ontem à noite! A aldeia parece imune à pandemia porque mesmo que a escola primária, a junta de freguesia e o café não tivessem sido encerrados ela estaria igual na quietude de todos os dias, são mais as obras de arte na rua do que vivalmas e só de quando em longe alguém passa em direcção às hortas perdidas por entre os moledos... Esta tranquilidade não tem preço, o sossego e o ar puro inebriam e se retivermos a respiração por um instante só a natureza ou os bichos se fazem ouvir, parece a Tormes das serras do Eça de Queiroz que salvou o Jacinto da terrível cidade que o asfixiava numa agitação fútil e doentia... E neste período de tormenta que se quer breve e  em que nas grandes metrópoles milhões de citadinos estão confinados a parcos metros quadrados e asfixiados pelo betão, que bom e apaziguador é ter esta natureza toda como quintal por onde espairecer e respirar sem medo, não trocava hoje este cenário por qualquer outro no mundo inteiro! 
E agora que abri os olhos e acordei deste devaneio lembro-me que vim aqui para vir à mercearia paredes meias com o café buscar o encomendado e ainda quentinho pão cozido em forno de lenha com chouriço de fumeiro e torresmos, assim não passo pela tormenta da fila do supermercado... Mas as boas vibrações continuaram quando cheguei a Valmedo e sou surpreendido, não pelo JAMES que já me esperava como sempre pendurado no gradeamento do muro, mas por um saco cheio de robustos limões que um generoso vizinho deixara. Por vezes são corpulentas abóboras como aquela que na semana anterior o senhor Serralha depositara à porta, noutro dia apareceu o Zé Jorge com maçãs, até com ovos de galinhas verdadeiramente do campo me presenteiam por vezes e noutra altura aconteceu a Dona Edite desfazer-se em desculpas pelo aspecto da couve galega que me estendia e eu mil vezes agradecido só lhe dizia que estas genuínas couves eram muito mais saborosas que as do supermercado, só ficou por lhe dizer noutra altura porque não me veio à lembrança que eu ainda sou do tempo em que a garotada crescia sã e robusta à base de feijão com couves azotadas com o adubo natural do penico matinal, se é que me entendem... Só na aldeia há verdadeiros vizinhos!










E amanhã continuarei a minha luta contra a crise e contra o desânimo, será dia de ir em busca dumas fofíssimas arrufadas e de pão de centeio que sairão do forno da padaria do Nadrupe e aí sim é evidente o impacto da pandemia, o Largo da Nª Srª da Graça estará deserto, ele, que costuma ser o festivo e movimentado coração da terra e porque tanto a Associação como a igreja encerraram portas amanhã apenas será cruzado por solitários que vão ao pão... E se me tem sido deveras penoso passar sem os renhidos torneios de snooker das terças-feiras, já para não falar das resmas de conversa e convívio que se desperdiçam, já o encerramento da igreja me passa completamente ao lado, aliás todas elas, do mundo inteiro, poderiam muito bem continuar encerradas muito para além do fim da pandemia e de tudo o resto ter voltado ao normal, assim os bispos, padres e similares, ao poder gozar de uma profunda reflexão talvez a aproveitassem para diminuir os pecados da Igreja!  Bom, mas agora sou eu que me penitencio: podiam fechar todas as igrejas menos esta do Nadrupe, edificada pelos nadrupenses há 151 anos em honra de Nossa Senhora por esta os ter salvo da terrível epidemia de febre amarela , doença hemorrágica grave e que também é provocada por um vírus através da picada de um mosquito e que actualmente, apesar da vacina existir há muito, ainda mata dezenas de milhares de pessoas em cada ano, especialmente em África! Ora, se hoje tudo o resto falhar talvez nos valham as preces à Nossa Senhora da Graça do Nadrupe para nos livrarmos deste novo vírus... 




"ESCRITO NA PAREDE - VII"


"Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...
  Jacinto adiante,  na sua égua ruça, murmurava:
     - Que beleza!"    

in "A Cidade e as Serras", Eça de Queiroz


E que felicidade, como dizem as paredes da aldeia do Moledo...



JOÃO DAS BOAS REGRAS

(Sociólogo de Valmedo)

segunda-feira, 23 de março de 2020




O GREGO, O LATIM E OS LIVROS...




Atravessávamos o largo da igreja depois de deixadas as gárgulas para trás quando o Maurício me interrompe uma dissertação qualquer e apontando quase gritou:
   - Olha, era este o senhor! Aquele que tinha aqueles livros todos aqui na rua...
E porque diante de nós nos olhava expectante um ancião merecedor de respeito, um pé dentro de casa e outro fora, e antes que ele pensasse que o estávamos a acusar de algum crime, para desbloquear o impasse só me ocorreu dizer:
   - Espero que não os tenha deitado fora!
Uma hora antes tinha chegado o Maurício à hora combinada para a nossa terapia, um jogging pelos trilhos do planalto para cuidar do físico e prevenir psicoses mentais antes que esta pandemia e este estado de emergência nos leve à obesidade e à loucura, e tinha ele dito entusiasmado: "Não sabes o que vi ali atrás, montes de livros na rua, no chão, pá!".  "Ora, deve ser alguém que os está a levar para outro lado qualquer" - respondi... -"Sim, mas havias de ver, eram montes de livros!"
 - Não, estava só a arranjar espaço aqui dentro para os arrumar melhor...- respondia-nos agora o alvo da nossa atenção encostando-se à porta e fazendo sinal para nos aproximarmos - Querem ver?







E então o professor Manuel Curto, depois das apresentações rápidas e de circunstância, escancarou o mais que conseguiu a porta e chegando-se para o lado limitou-se a dizer:
   - Entrem, vejam...
E o que nós víamos da rua era extraordinário, milhares de revistas empilhadas por séries e datas, ele era a "Visão", ele era a "Sábado", ele era a "Science Vie", ele era a "National Geographic Magazine" que brotavam do chão e lá ao fundo, livros e mais livros, uns antiquíssimos outros mais recentes, alguns em cima de um balcão e outros dentro de estantes e por cima destas pilhas de jornais amarelecidos pelo tempo que iam até ao tecto!...
  - Que engraçado, a "Visão"... Sabe, - continuei para criar laços de entendimento - tenho o número 1, e até a capa do número zero que não chegou a ser publicada! - Contente com o efeito produzido, continuei - Aliás, acho que é agora no dia 25 deste mês que se comemora o lançamento da revista em mil novecentos e oitenta e tal...
Mas como eu enquanto falava continuava a olhar o alto, o professor disse, apontando:
   - Aquelas são todas as edições do "Expresso"... Sabem, esta era a mercearia do meu pai, que fechou já há muitos anos porque eu não continuei o negócio, sabem, eu era professor de Latim, Grego e Português e depois da reforma trouxe para aqui as minhas coisas... - Estão a ver ali aqueles livros, são os de latim e de grego... - Claro, via eu agora, uma antiga mercearia, os armários, a balança, o balcão e como se eu não fechasse a boca de admiração ele continuou - E lá em cima, o primeiro andar está cheio de livros, venham ver...






E nós, porque estávamos sujos e suados da corrida e também devido ao escusado contacto social com uma pessoa de eventual risco acrescido íamos recusando, que ficava para a próxima, para outra oportunidade, até porque tínhamos que ir ...
 - Combinado! Estão convidados...
E como ao lado de um calendário já prescrito se vislumbrava a máxima latina "CARPE DIEM" então,  para aproveitar o dia, o momento e a oportunidade deixei fugir as palavras que já há algum tempo me entupiam a garganta:
  - O professor por acaso não está disposto a dar-me aulas de latim e grego? A sério! Gostaria muito de aprofundar o meu estudo nessas línguas....
   - Nunca dei aulas particulares... - respondeu-me de imediato o professor mas eu descobri-lhe uma centelha no olhar, apenas um pequeno brilho que desponta naquelas pessoas que sempre gostaram verdadeiramente de ensinar e que agora não tendo ninguém para... talvez.... quem sabe?
E lá fomos nós por entre agradecimentos e vénias embora eu estivesse a morrer de desejo para visitar o andar de cima, e agora sei-o, quando passar esta paranóia, uma das primeiras coisas que vou fazer é bater àquela vetusta porta de uma casa construída em 1937 e que alberga milhentas  histórias por contar... E quem sabe se o professor BIBLIÓFILO (do grego BIBLIO - livro e PHILOS - amigo) não reconsidera e aceita ensinar-me latim e grego, assim perceberia eu melhor o português!



João Portugal

(Linguísta de Valmedo)

terça-feira, 17 de março de 2020



CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - XXIII


O ACASO, O JACUZZI A INÊS...


Hoje foi um dia feliz, ainda mais feliz que os dias normalmente felizes que uma corrida a caminhar pelo planalto geralmente proporciona pois, para além de me sentir em quarentena absoluta já que os únicos seres vivos com que me cruzei foram uns estúpidos insectos voadores anunciadores da primavera e que em contra-mão me entravam por um olho e saíam pelo outro e umas aves  de  pouca rapina em voos circulares de alerta, um feliz e curioso acaso fez-me enveredar por um trilho ainda desconhecido que me levou a dar de cara espantada com o mítico e misterioso Jacuzzi da Inês, tesouro que me escapava há anos... Quase me senti como Howard Carter ao descobrir o túmulo de Tutankamon!









Ideia feliz teve quem assim baptizou a célebre formação rochosa, ela faz de facto lembrar uma banheira, se com jacto de água ou não isso é opcional, o certo é que, ofegante pela surpresa e pelo esforço da subida, me aconcheguei e assim, refastelado de olhos fechados sob um sol retemperador durante dois pares de minutos, recuperei milagrosamente o fôlego e o ânimo para o resto da aventura... Não sei se INÊS alguma vez aí se deleitou enquanto esperava pelo amado que por ali passava quando subia dos lados da Pena Seca mas se nunca o fez não sabe os banhos relaxantes que perdeu!









Muitos séculos depois de Inês outro feliz acaso mudou o banho da humanidade: a necessidade aguçou o engenho de Candido JACUZZI, um dos sete irmãos inventores que emigraram da Itália rumo à Califórnia no inicio do século XX para fazer carreira de sucesso na aviação e na agricultura através dos seus conhecimentos de hidráulica e a banheira de hidromassagem surge em 1956 quando Candido pensou num sistema que bombeasse água e assim minorasse o sofrimento do seu filho que sofria de artrite... Anos mais tarde a família patenteava a banheira de jacto!





"A Morte de Inês" - Joana Alves, Moledo




E tenho cá para mim que Joana Alves terá idealizado a sua "A morte de Inês" esculpida na rocha do planalto depois de ter visto o jacuzzi milenar como eu vi, assim a história adquiriria outro encanto...




João Parte Pedra

(Geólogo de Valmedo)

segunda-feira, 16 de março de 2020



EFEMÉRIDE # 69


A BESTIAL HUMANIDADE...




Cresci num estranho tempo em que o HERÓI se media pelo maior número de índios que conseguia matar ou então pelo maior número de nazis que mandava desta para melhor só com uma rajada de metralhadora ou ainda pela fanfarronice do mais forte que batia em toda a gente no recreio da escola e que lhe valia o medroso respeito dos demais, herói era o intrépido cowboy que disparava mais rápido que toda a gente e a torto e a direito, era o mais rico que tinha tudo aquilo que a maioria não alcança embora na maior parte dos casos fosse desprovido de qualquer inteligência  prática ou emocional, enfim, era aquela figura que  injustamente possuía aquela força e aquele poder inacessível aos outros... Também não deve ser nada fácil ser um herói nos tempos que correm, penso eu agora, é preciso estar sempre em grande e tomar infalivelmente as decisões instantâneas e certas no segundo certo e na era psicótica em que vivemos, dominada pelo vírus da pressa e em que não há tempo para nada e muito menos para parar um pouco e pensar, reflexão é coisa que já passou à história, pergunto eu como raio pode alguém ser herói sem tempo para pensar e decidir?  
Pois bem, sei-o hoje, mais importante do que ser o mais rápido e destruidor com os punhos ou então matar 20 ou 30 inimigos de uma só cajadada, ainda que índios ou civis inocentes, é salvar 200 ou 300 vidas de uma só e instantânea decisão, isso é que é ser herói, pois é certo que a linha que separa a humanidade da bestialidade é muito fina e onde isso se torna mais evidente é exactamente em cenários de calamidade ou de guerra, onde vale tudo e nada vale para salvar a pele, onde muitos enlouquecem e poucos continuam lúcidos, humanos... 




Hugh Thompson Jr.



O verdadeiro herói, ou antes, um dos verdadeiros heróis porque felizmente muitos houveram e muitos outros haverão, ainda que contra a corrente, é HUGH THOMPSON Jr, americano e piloto militar de helicóptero, que a 16 de Março de 1968, passam hoje exactos 52 anos, em pleno auge da guerra do Vietname assiste horrorizado a um massacre! O seu helicóptero preparava-se para resgatar tropas americanas na aldeia de My Lai e quando pairava sobre um cenário de guerra viu, incrédulo, camaradas seus a disparar sobre tudo e todos, homens, mulheres e crianças vietnamitas, ainda por cima alguns feridos rastejando pelo chão... Horrorizado, o nosso herói dá ordens à sua tripulação para disparar sobre os seus camaradas americanos que tentassem fazer mal aos aldeões e manobrando o seu helicóptero em círculos rastejantes conseguiu evitar um massacre ainda maior! Que herói este ao desafiar todos os estúpidos mandamentos militares e todos os estúpidos militares mandados para salvar aquelas inocentes vidas! Isto é  ser herói, é ser humano... contra a bestialidade!




João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

domingo, 15 de março de 2020






"Citronette Love" ou... "O Abraço da Natureza Morta"...



João Plástico

(Artista de Valmedo)

sábado, 14 de março de 2020



A TRAGÉDIA VIRAL DO AMOR...


Enquanto descia a Rua D. Pedro na pacata aldeia do Moledo em busca da casa da Tia Francelina ia eu trauteando com o assobio no tempo certo e tudo a maravilhosa nova canção dos Clã:

"Tudo no amor,
vivo com o fantasma 
que é viver em ti...
Ele é cego e vê
e eu ceguei e vi..."

E então, ao bater com o nariz na porta, convenci-me que o amor é assim mesmo, belo, imprevisível, misterioso, por vezes trágico, raras vezes eterno e amiúde efémero... E foi isso mesmo que aconteceu com a AMOR, exposição colectiva sobre Pedro e Inês, cruelmente finada antes do tempo devido ao estúpido Covid-19...





E agora ali estava eu a espreitar sem nada alcançar, parecendo o cego do poema do Sérgio Godinho, impedido de revisitar as obras que tinha visto dias antes, e se ali era assim então na Galeria Municipal que albergava a outra parte da exposição a sorte seria igual...
Num estado de pura desolação, sintoma comum nos cativos do amor, não me restava mais do que fechar os olhos e ver na memória do olhar as obras escondidas lá dentro...





"A caixa de Pandora" , (pormenor), Sónia Godinho


E como nenhuma história de amor é igual porque cada um o sente e vive à sua maneira, mil olhares significam mil amores, esta exposição, saída da  cabeça e vontade do João Leirão, mostrava três abordagens completamente distintas mas que se completam numa interessante perspectiva feminina sobre o tema e que eu, leigo em relação a técnicas e estilos modernos, caracterizaria como o realismo de Nélia Caixinha, o simbolismo de Maria de Fátima Silva e a alegoria provocatória de Sónia Godinho... 





"Alaude" - (AMARE) - Maria de Fátima Silva




E tal como o amor que por vezes renasce, regressei com uma réstia de esperança de que passada a  apocalíptica pandemia a AMOR destas três artistas volte um dia, aqui ou noutro luminoso lugar e assobiando lá vim cantarolando:


"Cheguei-me
de bengala branca,
Tacteei no escuro
de bengala rosa.
Por amor procuro,
uma flor secou
e em botão renasce...
Será que traz veneno
e a paixão desfaz-se..."



"4º Sepulcro de Inês" - Nélia Caixinha


João Plástico

(Artista de Valmedo)


quinta-feira, 12 de março de 2020





"Amor Vitae Meae - AMARE" - Maria de Fátima Silva, 2016 


              O amor incondicional e trágico abençoado pelos anjos num palácio com vista para as falésias de Paymogo... 

ACUPUNCTURA CANINA


Pois é, amigos caninos, uma vida de cão nem sempre é festinhas, boa comida e sestas sob este sol quentinho primaveril, e eu que o diga que tenho andado aqui com umas dorzitas na perna, nada que não se aguente, é certo, mas que incomoda quando tento correr ou pendurar-me ali no muro para ver quem passa na minha rua... E tudo começou há dias numa escorregadela parva quando ia aos saltos em busca da bola arremessada pelo J.C, vai daí afocinhei ao fugir-me a pata neste estúpido pavimento que fica como manteiga quando caiem umas míseras pingas e pronto, claro que não quis dar parte de fraco e lá continuei mais um pouco a jogatana mas o incómodo ainda hoje se mantém! Olhem, já oiço ao longe o barulho do carro do J.C, não tarda nada está aí e lá vou eu ser sujeito a mais uma sessão de terapia para a minha pequena mazela, uma espécie de acupunctura... Surpresos? Passo a explicar:

Tudo começou ontem, aparece-me de sopetão o J.C pela frente a abanar o braço de uma forma alucinada e quase a gritar:
   - Olha só, James! Uma maravilha!
Só então reparei que trazia na mão um livro que fez questão de me espetar quase nariz dentro:
   - Um achado, um milagre, bicho! A solução para os teus problemas! Arranjei-o há pouco na feira das velharias das Caldas... - e enquanto abanava energicamente o braço caíram duas ou três folhas do volume...
     - Bem...- respondeu o J.C entre dois sorrisos amarelos enquanto se abaixava a custo para apanhar os destroços - não se pode exigir demais, é muito antigo e só me custou 50 cêntimos! Mas não tem preço!
E como eu levantei o sobrolho e botei focinho esquisito logo adiantou:
   - Sim, ou por acaso pensas que lá por disfarçares eu não reparei já que continuas aflito dessa perna e se é questão de nervos ou de traumatismo não interessa, isto resolverá o problema! - e espetou o indicador várias vezes e quase com fúria na capa do livro... 








E então fiquei a saber muito sobre a ACUPUNCTURA, essa prática milenar de tratar maleitas através da colocação de finas agulhas em pontos nevrálgicos que tem por objectivo corrigir a intensidade e a qualidade dos fluxos energéticos do corpo humano, ou seja, obter o equilíbrio entre yin e yang... E, amigos caninos, estou a ler o vosso pensamento: AGULHAS?????! Não, descansem, felizmente só vamos ter que levar com agulhas aquando daquelas vacinas de verão, este método diz que em vez da estimulação com agulha basta a pressão com os dedos, e há solução para tudo: eczemas, verrugas, queda de pêlo, afecções de boca e dentes, constipações e sinusites, conjuntivites, cicatrização  de feridas, cataratas, tosse, asma, vómitos e diarreias, choques e traumatismos, doenças dos olhos, do coração e da bexiga, enfim, tudo é possível desde que se saiba onde colocar o dedo e pressionar, massajar melhor dito, e isso, meus amigos, está tudo naquele livro milagreiro...



E meus amigos, não comentem por favor que é segredo, a verdade é que eu desde que fui obrigado a pôr-me a jeito para estas intervenções digitais senti francas melhorias, a coisa é capaz de resultar mesmo, melhor, quase que voltei ao normal e que posso fazer tudo o que me apetece, mas sabem que mais, lembrei-me duma história real que o J.C me contou há tempos: houve um cão vagabundo, esperto bicho, que quase morria de fome até descobrir que se fingisse ser coxo as pessoas que passavam por ele  se enterneciam e davam-lhe uma moedinha ou qualquer coisa para comer, e vai daí em diante tornou-se um artista na arte do fingimento e acabou por viver desafogadamente até ao fim.... Assim estou eu, amigos caninos, mesmo que não precise vou fingir que manco para ser massajado, é que para além de ser uma sensação muito agradável acalma-me os nervos, só basta que a arte não me falte para que esse fingimento seja credível, porque senão....





James

(Cão de Valmedo)

segunda-feira, 9 de março de 2020



ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - V


RAMALHO ORTIGÃO


Foi mesmo um encontro imediato e intenso, depois de um turno da noite razoável e por isso mesmo surpreendente porque navegamos à vista num mar repleto de exacerbados alertas epidemiológicos, decidi no último instante atalhar caminho para evitar a estúpida rotunda-cruzamento (ou será antes um estúpido cruzamento-arrotundado?) da Rainha e enveredei pelas "traseiras", pela rua que do Hospital Termal me leva para fora da cidade... Desculpem a farpa mas adiante fará ela sentido! E foi ali, ao passar ao lado da Fábrica Bordallo Pinheiro que o meu dia mudou, ao passar resvés ao muro do Parque D.Carlos reparo na azáfama de muita gente, uns a entrar de carrinha, outros a montar banca e ainda alguns de cócoras a mexer em inúmeros objectos dispostos no chão: "Ah!" - exclamei, era dia de feira dos usados, e não hesitei, encostei na primeira oportunidade e lá fui à descoberta dalguma pechincha que valesse a pena, afinal a desculpa da falta de tempo não valia nesta manhã... 





"Ramalho Ortigão" - Leopoldo de Almeida, Caldas da Rainha




Aos mais distraídos é hora de lhes dizer que estamos nas CALDAS DA RAINHA e que, por isso mesmo, estranhei encontrar um RAMALHO ORTIGÃO imponente e orgulhoso numa curva do caminho enquanto mirava livros fora de circulação, discos que já não se ouvem, curiosidades domésticas que já não devem funcionar e outros ferrugentos objectos que fogem ao entendimento prático...  Que encontrasse o José Malhoa, o Zé Povinho ou até a Rainha D. Leonor a sair de um jacuzzi sulfuroso e não estranharia eu, agora o que fazia ali o Ramalho? 



Lá tive eu que ir ao baú dos velhos livros à procura das célebres "FARPAS", essa magistral colectânea dos folhetins mensais que Ramalho Ortigão publicava nos jornais e que desassossegava o país puritano com a sua mordaz crítica à sociedade da época e opinando sobre todos os temas possíveis e imaginários, desde a política à economia, da cultura aos costumes, da religião às artes e numa prosa de alto nível que mereceu então a opinião (neste caso suspeita) de um grande amigo e colaborador, Eça de Queiroz, para quem as "As Farpas" eram então "a obra mais viva da literatura portuguesa"! Mas Ramalho também era um cronista de viagens, como se pode comprovar pela leitura do primeiro volume da obra e foi numa das suas deambulações pelo país que, talvez a convite de outro amigo seu e parceiro de lides artísticas, Rafael Bordalo Pinheiro, se deixou encantar de tal modo pelos ares das Caldas que lhe dedicou o seguinte hino:





     "Caldas da Rainha é o centro da mais histórica, da mais   
     pitoresca região de todo o país"




Mas Ramalho Ortigão também escreveu sobre a faiança das Caldas, sobre as águas termais e sobre os caldenses, e estes, gratos, trataram este portuense de nascimento como se de um honroso filho da terra se tratasse... Não admira agora que encontremos por aqui colégios e ruas com o seu nome, e quanto à estátua de Leopoldo de Almeida só lhe falta uma coisa, a meu ver, para honrar a ironia e a caricatura caldenses: no lugar da bengala em que o nosso herói se apoia deveria estar um florete como aquele com que andou à espadeirada com Antero de Quental num célebre duelo para lavagem da honra em plena questão coimbrã!




João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

sexta-feira, 6 de março de 2020



"Devemos saber entregar-nos a saborear o presente, aquilo que os romanos resumiam na sentença carpe diem. Mas isto não quer dizer que devas procurar todos os prazeres, mas sim que deves procurar todos os prazeres de hoje. Um dos meios mais certos para mutilares os prazeres do presente é esforçares-te por teres tudo a todo o momento, todas as satisfações, mais diversas e improváveis, no mesmo instante. Não tenhas a obsessão de encaixar à força no instante que vives todos os prazeres que não vêm a propósito; procura antes encontrar em tudo o seu aspecto agradável."



in "Ética para um jovem", Fernando Savater




"Fertilidade" - J.C. Forgeronne

quinta-feira, 5 de março de 2020



LIVROS 5 ESTRELAS - XIX


BONS LIVROS FAZEM A VIDA BOA...



Hoje sinto-me um completo imbecil, não há volta a dar e não é a primeira nem será decerto a última vez que este estado de alma me assalta pois está provado que a imbecilidade é um vírus altamente contagioso ao qual ninguém está imune e, do mal o menos, desta vez tenho alguma desculpa porque há uma excelente razão para me sentir imbecil: terminei há minutos a leitura de "ÉTICA PARA UM JOVEM"! A todos, àqueles que conhecem a obra e que estarão confusos ao pensar porque raio me sinto imbecil depois de ler um livro excepcional, e aos outros, aqueles que nunca o leram e nem imaginam do que se trata e que provavelmente nunca o irão ler, devo uma explicação: sinto-me imbecil porque deveria tê-lo lido há décadas, de preferência quando era jovem!  "Como é possível ter-me escapado desde 1991 esta obra-prima?", questiono-me tão freneticamente como se me estivesse a coçar perante uma ataque de sarna mental... Como bálsamo, diz-me a consciência que por boa razão vale mais ser imbecil tarde do que nunca, mas ainda assim... 










Fernando Savater, filósofo, professor de ÉTICA, escritor mas essencialmente um sábio pensador, decidiu dirigir-se ao filho então adolescente através de um livro que é um iluminado e autêntico tratado sobre a liberdade ao dispor do individuo na escolha do melhor uso a dar às normas, usos e costumes que imperam na sociedade por forma a tornar a vida boa e melhor, quer a do próprio quer a dos outros... E fê-lo com mestria, humor e acima de tudo com clareza! E não posso deixar de sentir o quão injusto foi esta obra não ter nascido quando era eu um jovem, então teria eu sido iluminado sobre a ARTE DE VIVER que, na opinião do autor, não é mais do que a ÉTICA, e assim teria eu poupado a mim próprio tempo, muitos erros e trabalhos para descobrir como melhorar a existência, ao fim e ao cabo teria sido menos imbecil do que fui! E segundo Savater, a única obrigação que temos nesta vida é a de não sermos imbecis porque imbecis já há muitos por aí, e de vários tipos, a saber: 

   I - aquele que acredita que não quer nem precisa de nada, o que diz que para ele é tudo igual e que vive permanente anestesiado; chamo-lhe eu um zombie...
   II - aquele que acredita que quer tudo, isto e aquilo que lhe aparece, o branco e o preto tudo ao mesmo tempo; chamo-lhe eu o desorientado...
    III - aquele que não sabe o que quer mas que também não mexe uma palha para o descobrir, imita os outros porque sim, tudo o que faz é ditado por opiniões alheias: é o conformista sem reflexão ou o revoltado sem causa
    IV - aquele que sabe o que quer e porquê mas que às vezes não se esforça o suficiente para o obter e que acaba por perder sempre alguma coisa pelo caminho e fazendo algumas coisas que não queria fazer; é o adiador, deixa para amanhã ou para uma melhor altura, às vezes até ser tarde demais! Assim sou eu, imbecil vezes demais...
    V - aquele que quer com força e desespero, lutando para além dos limites mas que é inapto para lidar com a realidade, bastas vezes por falta de cultura ou de ética; geralmente acaba mal em grande desastre...

Assim, amigo leitor, é só escolher o grau de imbecilidade com o qual mais nos identificámos e já será uma sorte se só o fizermos uma vez por outra porque se a coisa for frequente então é melhor mudarmos de vida...  E conclui Savater: "Alerta! Em guarda! A imbecilidade ronda e não perdoa!"




João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)



A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - XIII


A BENGALA DO IMBECIL...


Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa IMBECIL é um adjectivo que hoje caracteriza aquele que denota inteligência reduzida ou possui pouco juízo ou aquele que é idiota, tolo ou covarde ou ainda aquele que apresenta um atraso moderado do desenvolvimento mental, mas nem sempre a palavra teve esse sentido pejorativo porque ao princípio começou por descrever apenas alguém fisicamente frágil, débil, sem força e vulnerável porque o termo, no seu sentido original, significava "aquele que não possui um cajado onde se apoiar" já que deriva do latim imbecillis, palavra formada pelo sufixo in (sem) e bacillum (bacilo, bastonete) que, por sua vez, é o diminutivo de BACULUM (báculo, cajado, bastão, vara)... Assim, como afirma sem falta de ética e com fino humor Fernando Savater, o IMBECIL moderno precisa de uma bengala para andar mas ele não coxeia dos pés mas do cérebro, é o seu espírito que é enfermiço e manco!





"O imbecil moderno"




João Portugal

(Linguísta de Valmedo)