12 ANOS DO MUNDO-CÃO EM 12 PALAVRAS...
OU
AS PALAVRAS DO ANO (2011-2022)
Ao princípio a AUSTERIDADE não lhe fez muita mossa, começou por se valer de algumas economias que tinha numa conta à parte, um pé-de-meia que nunca tinha passado acima do tornozelo mas que era uma almofada para encarar apertos inesperados que pudessem surgir porque o conforto neste mundo-cão é tudo menos garantido, dissera a si próprio durante anos todos os dias como se de uma oração se tratasse... Mas de pouco lhe valeria esse pequeno saco de poupanças que nem réstea de azul tinha, João Destratado começou a sentir-se cada vez mais ENTROIKADO a partir do momento em que o pequeno e obediente coelho tirou da cartola a solução mágica para a crise: vamos aos bolsos dos funcionários públicos, "essa escumalha que tanto refila mas pouco produz!", nada de subsídios e ainda um cortezinho no ordenado não virão daí males ao mundo! Tivera o grande azar de ter optado por construir uma carreira profissional ao serviço do Estado e como tal não podia desviar um cêntimo sequer dos seus rendimentos das garras do Fisco, irritava-se quando lhe chamavam Funcionário Público e ao qual ele respondia com raiva que isso não era profissão sequer, ele era um Técnico Especialista Superior que por acaso trabalhava para o Ministério da Saúde e que não tinha sido contratado por um amigo ou por qualquer cunha, tinha lá chegado através de concurso público, não devia favores nem nada a ninguém!
- " Puta que os pariu a todos! - desabafava agora Destratado com o BOMBEIRO que o transportava de ambulância até ao hospital... - "Somos um infeliz país onde desde João V impera a CORRUPÇÃO , a pequena e a grande!"
- "Pois é, infelizmente..." - respondeu o bombeiro, talvez apenas para o acalmar porque não convinham muitas exaltações por parte do paciente, a perna não tinha bom aspecto e provavelmente ainda teria que ir ao bloco para operar... - "Tudo por causa de uma trotineta, hein?"
- "Veja bem! É preciso azar, não acha? Mas coitado do homem, também não teve a culpa toda, ele só tentou desviar-se do cão... E além disso ouvi dizer da boca do patrão dele que é boa pessoa, trabalhador, pacífico, não se mete com ninguém... E além disso é um REFUGIADO iraniano...
Destratado tinha relatado o incidente, ia a descer de Valmedo para a vila a cavalo da sua nova bicicleta quando de repente alguém trotinando se desvia para o meio da estrada para não chocar contra um cão que vinha subindo a ladeira alheado do trânsito, o embate foi inevitável, o refugiado apenas esfolou os braços, o cão saiu ileso e apenas o ciclista saiu machucado, após ter feito pirueta e meia aterrou sentado no alcatrão mas com uma perna um bocado torta...
- "Também não percebo esta coisa!" - exclamou entretanto o outro bombeiro, o que conduzia - "Como é que deixam andar todo o tipo de GERINÇONÇA na via pública, já não bastava os papa-reformas a entupir o trânsito, agora são as trotinetas ou são aquelas cadeiras de rodas automáticas, são fedelhos de skate a descer a ruas a alta velocidade, só falta mesmo um dia destes os carros terem que dar prioridade numa rotunda a uma criança que brinca com um carrinho telecomandado!"
Tinham entretanto chegado ao Hospital Central do Oeste e ali, no vale do Bombarral, chegavam as cinzas e os fumos dos INCÊNDIOS que assolavam Montejunto e o que restava da floresta do país, desceram-no da ambulância e estacionaram a sua maca no corredor da ortopedia... Um ENFERMEIRO realizava um inquérito a uma mulher com um braço ligado e umas equimoses no rosto e embora o fizesse em voz baixa Destratado ia descodificando toda a conversa, tratava-se de mais um caso de VIOLÊNCIA, doméstica, bem entendido...
E ali, num estéril e desumano corredor de hospital, João Destratado, profissional de saúde agora no outro lado da cortina, não conseguiu evitar que os seus olhos se humedecessem ao sentir SAUDADE dos seus tempos inocentes de infância em que tudo era puro e em que desconhecia ainda os podres deste mundo, a única coisa que o chateava então era quando tinha que ir de tempos a tempos levar com a VACINA do sarampo... E se este mundo-cão, mesmo assim, tem aguentado muitas guerras de palavras e enquanto a GUERRA consistir apenas em lançar palavras contra palavras vamos nós bem, pensava ele, agora quando são presidenciais bestas a lançar mísseis contra civis inocentes escudadas em propagandas absurdas e pré-históricas, o que fazer? Quanto a João Destratado, por mais destratado que se sentisse, só lhe restava amaldiçoar para todo o sempre os pequenos e hediondos Putins deste mundo...
(PALAVRAS DO ANO - 2011 - Austeridade; 2012 - Entroikado; 2013-Bombeiro; 2014 - Corrupção; 2015 - Refugiado; 2016 - Geringonça; 2017 - Incêndios; 2018 - Enfermeiro; 2019 - Violência (doméstica); 2020 - Saudade; 2021 - Vacina; 2022 - Guerra...)
João Pena-Seca
(Escritor de Valmedo)