CRÓNICAS DO OUTRO MUNDO
Forgeronne abriu os olhos e não soube que sítio era aquele, aquela estranha luminosidade do ar que o ofuscava não era normal, onde se encontrava afinal? Estava deitado de barriga para cima numa superfície dura, isso era certo devido ao desconforto que sentia nas costas doridas e quando se tentou mexer constatou que estava amarrado de pés e mãos... "Que raio estava a acontecer, - questionou-se - como tinha vindo ali parar?..." Tentou puxar pela memória mas sentiu uma forte dor de cabeça, parecia que tinha uma faca espetada na nuca e essa sensação trouxe-lhe à lembrança o estranho e maldito pássaro... Não sabia há quanto tempo fora, afinal tanto poderia ter sido na véspera ou muitos dias antes, ainda o sol não tinha despertado por completo tinha ele tomado o caminho de chão que desce de Valmedo em direcção à vila quando, à beira dos moinhos em ruínas e donde se avistava lá em baixo o casario da capital dos dinossauros ainda adormecida, estacou de atalaia: por cima da silhueta da Igreja do Castelo e sobre o horizonte que esconde o mar da Peralta estava o céu rasgado em vários sítios! Que raio de fenómeno seria aquele? Olhou para todos os lados em busca de alguém que o esclarecesse mas nada de vivalma, e para além do latir do James ao longe que se lamentava por não ter vindo também tudo estava silencioso e deserto... Olhou então com mais atenção para as chagas do estranho céu ao longe, talvez por reflectirem os primeiros raios de sol os bordos das feridas pareciam estar incandescentes e notou com assombro que de lá de dentro, de um céu ainda mais escuro, saíam pequenas silhuetas negras que depois em voo picado desciam à terra e se ocultavam por detrás das árvores e das casas.
" O pássaro da Rua Grande" - Jean-Charles Forgeronne |
"Céu do outro mundo" - Jean-Charles Forgeronne |
Apesar da dor, Forgeronne fez um esforço e levantou um pouco a cabeça para olhar em volta, estava numa espécie de quarto de brilhantes paredes brancas, do tecto pendiam não só fios com minúsculas lâmpadas como ameaçadores tubos negros e, num derradeiro esforço que quase o fez desmaiar, conseguiu olhar lá para fora através de uma pequena janela na parede do seu lado esquerdo e o que viu inquietou-o ainda mais: lá ao longe vislumbrava-se uma paisagem lindíssima, um mar calmo que até parecia o de Vale Frades, só que o céu parecia ser de areia e nele se espalhavam estranhas silhuetas... Estava noutro mundo! Então, lá do outro canto da sala em que não havia reparado antes veio uma voz humana: -"Fuja, se puder, eu tentei mas não consegui, eles vão-lhe tirar os olhos!" "Eles quem?" - balbuciou Forgeronne... "Estas criaturas horríveis, elas ficaram sem olhos devido ao COVID 78 e agora vingam-se em nós, disseram que não precisamos de olhos porque nos recusamos a olhar e a ver o mal que fizemos ao nosso planeta... E tenha cuidado com os pássaros gigantes, são os caçadores deles..." Não teve tempo para mais, dois enormes insectos de máscara que pareciam louva-a-deus abeiraram-se de quem tinha falado e lançando-lhe raios de luz o silenciaram, em pouco tempo, como que levitando, Forgeronne viu uma silhueta humana ser levada dali para fora sob escolta. Agora sentia-se como que no interior de um drama do Murakami, num universo povoado de estranhas personagens clarividentes e carneiros sobrenaturais e onde tudo podia acontecer, desde peixes a cair do céu ou a gatos que falam com as pessoas, razão tinha a sua mulher que durante anos lhe fora dizendo para ter cuidado com os mundos paralelos desse alucinado escritor japonês, que ainda iria ele ficar de olhos em bico e passado da tola! E se ela não estivesse carregada de razão, então, concluía ele agora, só restavam duas explicações para o que lhe estava acontecer: ou estava a sonhar ou tinha enlouquecido de vez! Mas pouco tempo ficou sozinho, as duas criaturas regressaram e uma delas debruçou-se sobre ele, por cima da máscara que deveria tapar a cavidade bucal não havia olhos, apenas dois profundos buracos negros e de cada um dos lados da cabeça triangular sobressaíam dois apêndices flexíveis, cada qual com um olho humano na ponta e que em movimentos rápidos e excêntricos, ora aproximando-se ora afastando-se, o inspeccionavam ameaçadoramente... Tentou falar mas não conseguiu, tinha a língua e os maxilares paralisados, talvez fruto daquele raio de luz azul que a outra louva-a-deus lhe apontava em cheio para a testa.
João Pena Seca
(Escritor de Valmedo)