quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Covid 78

 

CRÓNICAS DO OUTRO MUNDO


Forgeronne abriu os olhos e não soube que sítio era aquele, aquela estranha luminosidade do ar que o ofuscava não era normal, onde se encontrava afinal? Estava deitado de barriga para cima numa superfície dura, isso era certo devido ao desconforto que sentia nas costas doridas e quando se tentou mexer constatou que estava amarrado de pés e mãos... "Que raio estava a acontecer, - questionou-se - como tinha vindo ali parar?..." Tentou puxar pela memória mas sentiu uma forte dor de cabeça, parecia que tinha uma faca espetada na nuca e essa sensação trouxe-lhe à lembrança o estranho e maldito pássaro...  Não sabia há quanto tempo fora, afinal tanto poderia ter sido na véspera ou muitos dias antes, ainda o sol não tinha despertado por completo tinha ele tomado o caminho de chão que desce de Valmedo em direcção à vila quando, à beira dos moinhos em ruínas e donde se avistava lá em baixo o casario da capital dos dinossauros ainda adormecida, estacou de atalaia: por cima da silhueta da Igreja do Castelo e sobre o horizonte que esconde o mar da Peralta estava o céu rasgado em vários sítios! Que raio de fenómeno seria aquele? Olhou para todos os lados em busca de alguém que o esclarecesse mas nada de vivalma, e para além do latir do James ao longe que se lamentava por não ter vindo também tudo estava silencioso e deserto...  Olhou então com mais atenção para as chagas do estranho céu ao longe, talvez por reflectirem os primeiros raios de sol os bordos das feridas pareciam estar incandescentes e notou com assombro que de lá de dentro, de um céu ainda mais escuro, saíam pequenas silhuetas negras que depois em voo picado desciam à terra e se ocultavam por detrás das árvores e das casas.  



" O pássaro da Rua Grande" - Jean-Charles Forgeronne



Ainda pensou voltar para trás, ir para casa e ouvir as notícias para descobrir o que se passava mas a curiosidade foi implacável, de cabeça alta e olhar arguto reiniciou a descida... Passou para a banda de lá do rio através do parque das cegonhas e então a pulsação acelerou-se-lhe ainda mais ao entrar no centro da Lourinhã, nem uma pessoa, nem um carro, nada, é como se estivesse sozinho no mundo inteiro, até o James já não se ouvia. "Calma!" - disse para si próprio, aquilo haveria de ter uma explicação. E então, ao iniciar a subida da Rua Grande, lembrou-se que se estava a esquecer de registar o momento, logo ele que tinha uma enorme paixão pela fotografia e vai daí, à falta da Olympus que tinha ficado em casa puxou do telemóvel para retratar a rua deserta quando um estranho barulho ao longe e que ia aumentando de intensidade lhe chamou a atenção, algo se aproximava rapidamente! Forgeronne não queria acreditar, ainda teve tempo de disparar o retrato antes do enorme Pterodactylus lhe cair em cima do alto dos seus três metros de envergadura e o prostrar no chão com uma forte cornada de bico na cabeça... Quem, nesse preciso momento, estivesse a descer de Valmedo pelo caminho dos moinhos e olhasse para o horizonte veria uma silhueta negra de pássaro com uma presa nas garras a entrar por uma abertura no céu...  



"Céu do outro mundo" - Jean-Charles Forgeronne



Apesar da dor, Forgeronne fez um esforço e levantou um pouco a cabeça para olhar em volta, estava numa espécie de quarto de brilhantes paredes brancas, do tecto pendiam não só fios com minúsculas lâmpadas como ameaçadores tubos negros e, num derradeiro esforço que quase o fez desmaiar, conseguiu olhar lá para fora através de uma pequena janela na parede do seu lado esquerdo e o que viu inquietou-o ainda mais: lá ao longe vislumbrava-se uma paisagem lindíssima, um mar calmo que até parecia o de Vale Frades, só que o céu parecia ser de areia e nele se espalhavam estranhas silhuetas... Estava noutro mundo!   Então, lá do outro canto da sala em que não havia reparado antes veio uma voz humana: -"Fuja, se puder, eu tentei mas não consegui, eles vão-lhe tirar os olhos!" "Eles quem?" - balbuciou Forgeronne... "Estas criaturas horríveis, elas ficaram sem olhos devido ao COVID 78 e agora vingam-se em nós, disseram que não precisamos de olhos porque nos recusamos a olhar e a ver o mal que fizemos ao nosso planeta... E tenha cuidado com os pássaros gigantes, são os caçadores deles..." Não teve tempo para mais, dois enormes insectos de máscara que pareciam louva-a-deus abeiraram-se de quem tinha falado e lançando-lhe raios de luz o silenciaram, em pouco tempo, como que levitando, Forgeronne viu uma silhueta humana ser levada dali para fora sob escolta. Agora sentia-se como que no interior de um drama do Murakami, num universo povoado de estranhas personagens clarividentes e carneiros sobrenaturais e onde tudo podia acontecer, desde peixes a cair do céu ou a gatos que falam com as pessoas, razão tinha a sua mulher que durante anos lhe fora dizendo para ter cuidado com os mundos paralelos desse alucinado escritor japonês, que ainda iria ele ficar de olhos em bico e passado da tola! E se ela não estivesse carregada de razão, então, concluía ele agora, só restavam duas explicações para o que lhe estava acontecer: ou estava a sonhar ou tinha enlouquecido de vez! Mas pouco tempo ficou sozinho, as duas criaturas regressaram e uma delas debruçou-se sobre ele, por cima da máscara que deveria tapar a cavidade bucal não havia olhos, apenas dois profundos buracos negros e de cada um dos lados da cabeça triangular sobressaíam dois apêndices flexíveis, cada qual com um olho humano na ponta e que em movimentos rápidos e excêntricos, ora aproximando-se ora afastando-se, o inspeccionavam ameaçadoramente... Tentou falar mas não conseguiu, tinha a língua e os maxilares paralisados, talvez fruto daquele raio de luz azul que a outra louva-a-deus lhe apontava em cheio para a testa.







Forgeronne voltou a abrir os olhos mas tudo era escuro, tentou ouvir mas só lhe veio silêncio, debateu-se e conseguiu libertar um pouco um dos pulso das amarras, continuou a tentar libertar-se e por fim, já num último e desesperado impulso, lá o conseguiu... Levantou então o braço para tocar nos olhos com o seu indicador e o seu médio em vê  mas apercebeu-se horrorizado que os seus dedos penetravam até ao fundo das suas órbitas vazias... 


João Pena Seca

(Escritor de Valmedo)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

terça-feira, 5 de janeiro de 2021