sexta-feira, 31 de janeiro de 2020





"Ninguém morre a subir uma montanha,                     morre-se a descer a montanha...!"


João Vieira Almeida

(Projecto Kilawmanjaro)



IDEIAS DE UMA NOITE, IDEIAS DE UMA VIDA...



Quando alguém invade a nossa zona de conforto e de expectativa em relação à vida e nos vem desafiar para pensarmos no lado obscuro e negro da condição humana, das duas uma, ou está a armar-se em paladino teórico de uma obscura verdade sobre a existência neste mundo-cão ou, caso mais raro mas de maior genuinidade, está a lançar-nos à cara a experiência por que passou ao confrontar os limites da sanidade mental... E é preciso coragem para tal! É o caso de um advogado de sucesso, Pedro Vieira de Almeida, que de um momento para o outro e no auge da sua carreira entra em burn-out e cai numa profunda depressão. Sentiu, nas palavras do próprio ouvidas ontem na magnífica iniciativa da Fundação Gulbenkian "A Noite das Ideias", o lado mais negro e terrível do ser e a que ninguém está imune de um dia nele cair! 









Resignou-se? Não. Deixou-se vencer pelo desânimo? Não. Isolou-se do mundo? Não! Apenas mudou de paradigma e de vida, desafiou a montanha que o separava da vida que tivera, da vida que se lhe esvaíra por entre esta frenética e doida existência e lançou-se em busca da vida que precisava recuperar, embora uma vida  diferente, melhor, mais pura, mais gratificante... E sob conselho sábio e amigo propôs-se desafiar o  limite, o KILIMANJARO, a mítica montanha branca e mais alta de África, a 5895 metros de altitude mas, segundo palavras do próprio, de fácil escalada comparando com outras proeminentes montanhas que depois viria a enfrentar! E o limite imposto pelos mais básicos instintos de sobrevivência e o confronto com o limite da própria pessoa pode levar a um auto-conhecimento de enorme alcance e superação, até de uma grave depressão... Passados 10 anos desta primeira e traumática experiência, o Pedro hoje não quer outra coisa senão subir montanhas, talvez porque sempre que se "ganha" uma montanha uma pessoa cresce e se torna melhor, mais forte, mas nunca imune, por isso há que continuar a subir montanhas e a derrubar limites....






Kilimanjaro

E até para o ano, com novos desafios e novas ideias...



João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)


A MONTANHA POR ACHAR


A montanha por achar
Há-de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver,
Quando o encontrar, há-de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe,
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade,
Porque a vida é só metade.



FERNANDO PESSOA

(Poesias inéditas)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020



A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - XII


NARANG, NARANDJA, PORTOKÁLI...


Durante quase 800 (!) anos grande parte da Península Ibérica, incluindo muito do actual Portugal, esteve sob o domínio árabe e essa influência é tão profunda em todos as áreas da sociedade que ainda hoje não deve haver um português que seja em que, nos cinco litros de sangue que lhe correm pelas veias, pelo menos um mililitro dele não seja de origem árabe! E somos, a par dos espanhóis, os europeus que ao longo da história mais partilhou sabedoria e cultura com o povo árabe e ainda bem que assim foi em muitos aspectos, veja-se, por singelo exemplo, o caso da laranja... 
Da Ásia, foram os muçulmanos que trouxeram para o sul da Península Ibérica plantas como a laranjeira-amarga e a alfarrobeira, por exemplo, árvores que tiveram e ainda têm hoje em dia impacto decisivo na economia do Algarve... Naquele tempo chamava-se NARANDJA à laranja (amarga), palavra árabe derivada de narang, termo persa de cuja região os muçulmanos tinham trazido a planta e que acabou por descambar no moderno português LARANJA! E foi preciso esperar pelo século XV e pela epopeia lusitana dos Descobrimentos para que chegassem à Europa muitas outras, desconhecidas e maravilhosas plantas oriundas da Ásia, como a laranjeira-doce que nos providencia a actual e deliciosa laranja pela manhã, ao almoço, ao lanche ou à ceia, antes... sempre que apetecer!










Foram, de facto, os Portugueses que trouxeram a actual LARANJA da Ásia e, com o reconhecido jeito para o negócio que nos é reconhecido, não tardou muito para que espalhássemos a laranja por uma Europa espantada e deliciada com as novidades que vinham do outro lado do mundo e sendo assim, não é surpreendente que aquele fruto delicioso e desconhecido tenha sido chamado de PORTOKÁLI pelos gregos, PORTOKALLI pelos albaneses ou PORTOCALE pelos romenos, por exemplo...
Assim, caro amigo, se um dia destes viajar por algum destes países, ou outros da mesma região e se vir atrapalhado porque lhe apetece uma suculenta laranja e não sabe como a pedir, arrisque e será porventura bem sucedido, aponte para o fruto e diga apenas mas orgulhosamente: PORTUGAL!




João Portugal

(Linguísta de Valmedo)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020



AS VELHINHAS FAKE NEWS... 


Agora que o que está na moda e que mais há por aí por este extraordinário mundo-cão são as fake news, de tal forma abundantes e rebuscadas que ficámos à nora sem saber se vivemos na realidade ou numa existência virtual, é de bom tom salientar que elas existem há muito e que não são uma invenção da rede digital, aliás veio-me mesmo agora à lembrança a mãe de todas elas, a mother-fucker fake news e que condicionou a minha vida durante algum tempo... 
Lembro-me bem que foi no largo diante da escola onde existia um secular eucalipto dos tempos dos nossos bisavós, corria o ano 76 ou 77 e andava eu adolescentemente a descer a rua, entretido a ler a revista amarelecida e gasta pelo tempo quando ouço ao meu lado o roncar inconfundível de uma V5, era o Aníbal Estica, vindo sabe-se lá de onde...
   - O que tás tu a ler, pá? - perguntou-me assim de sopetão em jeito provocador como era uso e costume enquanto rodava o manípulo do acelerador e mantinha a máquina aos soluços.
E eu, surpreso e com dificuldade em fazer-me ouvir pelo barulho da mota, só me ocorreu esticar o braço com a capa que mostrava uma rock star em pose enérgica e de guitarra em punho...
  - Olha, a SUZI 4! - exclamou ele, com ar surpreso. - Onde foste arranjar isso?
E eu, animado pelo interesse que tinha provocado num dos elementos mais velhos e respeitados da tribo da aldeia, lá fui contando que tinha sido a minha avó que ao fazer a limpeza na casa do tio Puseu para a recepção dos sobrinhos que estavam a chegar de França tinha encontrado a bela da revista perdida algures debaixo de um móvel, lá deixada certamente pelo primo Jorge que era todo para a frente não só em termos de música mas também de carros e mulheres parisienses... E eu, por acaso, perante aquele achado e constatando com emoção que lá estava a SUZI 4 na capa e também nas páginas interiores evitei à última da hora que aquela preciosidade fosse parar ao lixo! De resto, era só pelas fotografias porque aquilo era tudo em francês e eu da língua de Flaubert na altura apenas sabia dizer, como era comum e quase obrigatório para a idade, merci e nick nick avec moi...





SUZI 4, de cabedal e guitarra, aos 26!...


     - Sabes que ela já morreu? - devolveu-me ele assim do nada...
E como eu não tive resposta para lhe dar de tão gelado que fiquei ele tornou:
     - Morreu há uns anos por causa das drogas, é pena, até cantava bem... - e acelerando desandou dali a alta rotação deixando para trás um odor a borracha queimada.
 E eu, que ia em direcção ao adro da igreja ao encontro dos compinchas da lerpa ao rebuçado, pouco mais disse nesse dia devido ao choque. A Suzi 4 morreu? Custou-me acreditar, era a primeira vez que ouvia tal coisa mas não tinha razões para duvidar do Aníbal e depois naqueles tempos era normal não haver notícias ou então quando as havia elas chegavam com anos de atraso, daí ter ficado convicto durante muito tempo de que aquela heroína que fazia um coração adolescente acelerar já não existia, que desconsolo... E a partir daquela tarde, sempre que calhava ouvir no gira-discos o "Can the can" ou o "48 Crash", dava por mim a pensar na injustiça desta vida...
E então, um par de anos mais tarde e já na plena efervescência da descoberta das grandes bandas que me acompanham até hoje, e numa conversa de circunstância em que alguém lançou à baila a  Janis Joplin:  -"Aquela que morreu de overdose, tão a ver?"- eu tive a feliz ideia de responder - "Tal como a SUZI 4?" porque imediatamente não sei quantos pares de olhos se cravaram em mim de um modo acusador - "Estás a comparar a Janis com a Suzi 4?" - e eu que entretanto tinha descoberto a voz poderosa e única da Janis e que já não ligava muito à Suzi 4 ia responder quando alguém se antecipou e disse as palavras mágicas: "Além disso a SUZI 4 não morreu, ainda anda por aí..."
Escusado será dizer que fiquei contente por sair humilhado da conversa até porque ela mudou a minha vida, afinal a Suzi estava viva, afinal o Aníbal estava enganado, certamente num devaneio tinha-a confundido com a Joplin e a partir daquele momento deixei de ser tão crédulo em tudo o que se ouve! Ah, e a SUZI 4 ainda não se cansou de tocar por aí, em modo mais avozinha é certo e ao que parece vai lançar um novo álbum em Março próximo e ainda tem genica para espectáculos ao vivo, para comprovar basta ir, por exemplo, no próximo 8 de Maio ao Stadthalle de Zwickau na Alemanha... Para quem ressuscitou dos mortos é obra!




SUZI 4 aos 69!


João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

     

sábado, 25 de janeiro de 2020



BOA NOITE! VIMOS DE TORRES VEDRAS...



Convite amigo de última hora, expectativa de um espectáculo interessante e promessa de acabar a noite em assaltos carnavalescos lá rumei eu mais o Maurício, que até tem boa onda musical, até a um Cine-Teatro de Torres Vedras esgotado para um espectáculo único: a comemoração dos dez anos de existência de uma banda da terra, os ALBALUNA... E se até ontem deles nunca tinha ouvido falar e portanto completamente a leste do que iria ouvir, hoje sinto-me grato pela descoberta e mais convencido fiquei que às vezes é bom deixarmo-nos levar por marés desconhecidas e hoje sei que vou acompanhar a história de vida destes músicos sui generis...






Se alguém esperava que a ALBALUNA (lua branca) surgisse em palco em tons claros e luminosidade pardacenta desenganou-se com estrondo ao deparar-se com um quinteto masculino completamente trajado de preto e uma dupla feminina em tons vivos de carmim, enquanto as luzes  acompanham desenfreadamente o ritmo frenético da maior parte dos temas... E cedo se percebe que o mundo cabe naquele palco ao desfilarem nele incomuns e antigos instrumentos oriundos de zonas tão díspares como as ilhas britânicas dos celtas, Galiza, Grécia, Turquia, Índia, Afeganistão ou, claro Portugal: gaita-de foles transmontana e galega, flautas, violino, batuques e mais batuques, tambourbouzouki, rubab, oud, saz, lavta e por aí fora, e a explicação é bem simples ou não fosse Ruben Monteiro, o cérebro do projecto, formado em História e Arqueologia e com uma curiosidade inesgotável quanto às tradições musicais de ancestrais culturas que o levou a aprender a tocar aquela parafernália de instrumentos de cordas. Mas nenhum tem o impacto da sanfona medieval, imagem de marca dos ALBALUNA, uma espécie de violino alimentado por uma manivela mas cujas notas são criadas num teclado...




O homem e a sanfona...
     

Talvez mais conhecidos e reconhecidos no estrangeiro do que em Portugal ou na sua terra, fazem questão de não esconder as suas origens e a sua obra mesclada de folk, música medieval, rock progressivo e até ocasionalmente com laivos de heavy metal merece a descoberta e o desfrute começando, por exemplo, pelo "Nau dos Corvos", álbum de 2016.



E agora que ainda estou a ressacar do show, fecho os olhos e tenho a impressão que ontem onde eu estive de facto não foi no Cine-Teatro mas numa clareira de um bosque sagrado de carvalhos numa cerimónia de adoração aos deuses da natureza e do cosmos... E também por isso, amigos Albaluna, parabéns! E espero encontrar-vos mais vezes por aí...

                                            

                                                                                                      ALBALUNA LIVE









João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020




TASCAS E ANTROS DE PRAZER - VI


A COSTELETA DO ANTUNES...


Entre Torres Vedras e a Lourinhã e dependendo do sentido, à entrada ou à saída de Campelos, existe um refúgio incontornável, um simpático e acolhedor antro de prazer competente em salvar perdidas almas em viagem depois das aventuras de talentosos desportistas: bacalhau cozido com batatas e grão à segunda, coelho com batata frita, arroz e ervilhas à terça, divinal cozido à portuguesa à quinta, bacalhau frito de cebolada e mão de vaca com grão à sexta, feijoada ao sábado e borrego ao domingo, que mais se pode pedir?  Bem, só se for os sempre disponíveis frango assado em carvão ou a famosíssima e generosa costeleta de novilho...









Atendimento rápido e simpático, uma salada de alface, tomate e cebola bem temperada que conforta o estômago, não há melhor entrada sei-o eu desde a primeira que fui ao ANTUNES, vindo de uma qualquer corrida ou excursão velocipédica a Montejunto, ali bem visível da varanda, e depois, ou potenciado pelo desgaste da aventura ou por sugestão hipnótica a priori, a costeleta é uma benção divina... Tinto da casa ou branco à pressão, que mais se pode querer, talvez melhor pensando um pudim caseiro de lamber as beiças! E tudo por um preço imbatível, tal qual a simpatia do Sr. Antunes e da Dona Augusta, coisa lógica ou não fosse este um antro de boa paixão lampiona, que é como dizer, gente boa e generosa!


O bacalhau frito de cebolada, para ciclistas...




E ainda, para quem não lhe apetecer o menu do dia, há sempre a tal costeleta...







João Ratão

(Chef de Valmedo)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020


1, 10, 100, 1000... O QUE SEJA!



Seja o que for, um, dez, mil, até zero, ninguém...! O "Planando no Mundo Cão" não existe para ser um fenómeno de popularidade, nem mesmo um daqueles casos de sucesso económico ou virtual, não será nunca o veículo de ideologias, políticas ou sensibilidades, pretende apenas ser um espaço onde vários colaboradores e muitas sensibilidades se juntam para construir um universo paralelo bem mais agradável...







E agora que alcançámos a mítica fasquia das DEZ MIL (10 000) visualizações, é de elementar justiça e grato orgulho agradecer efusivamente aos nossos colaboradores:



- James, cão de Valmedo;

- J.C, poeta de Valmedo;

Jean-Charles Forgeronne, fotógrafo de Valmedo;

João Ratão - chef de Valmedo;

João das Boas Regras, sociólogo de Valmedo;

João Sem Dó,  musicólogo de Valmedo;

João Atemboró, naturalista de Valmedo;

João Breve, cronologista de Valmedo;

João Película, cinéfilo de Valmedo,

João Plutónico, astrofísico de Valmedo;

João Plástico, artista de Valmedo;

João Alembradura, historiador de Valmedo;

João Abelhudo, pesquisador de Valmedo;

João Iniciado, ocultista, membro da Ordem de Valmedo;

João Parte-Pedra, geólogo de Valmedo;

João Alquimista, investigador de Valmedo,

João Tostão, fiscalista de Valmedo;

João Lava, vulcanólogo de Valmedo;

João Palmilha, viajante de Valmedo;

Yuehan Kaluosi, Filósofo Taoísta de Valmedo;

João Pena-Seca, escritor de Valmedo;

João Vírgula, leitor de Valmedo;

28666, jornalista desportivo de Valmedo;

João Resina, botânico de Valmedo








ESCRITO NA PAREDE - III





quinta-feira, 16 de janeiro de 2020



INQUIETOS, INTRÉPIDOS, INCONFORMADOS...



Jovens, dotados, aplicados, sonhadores... E muitas vezes desiludidos, certamente! "Quantas tardes e noites passadas a criar e a ensaiar, em busca da batida certa e da harmonia oculta?" -  questionava eu então o meu querido amigo João Andarilho, esse mesmo, o já famoso autor do blog "A Insustentável Leveza da Certeza"... Quantos sonhos os movem, que expectativas alimentam? De Fafe a Lisboa, por caminhos nem sempre lineares e nunca fáceis, cruzaram-se um dia destes no Bang Venue dois trios ainda jovens mas em estágios de amadurecimento diferentes...  Os HAUSE PLANTS, ou seja a metamorfose em palco de Guilherme Correia, uma mente rebelde que teima em não se deixar apagar pela voracidade louca deste mundo-cão e que no refúgio do seu quarto vai compondo e gravando, qual vegetal caseiro, deram o primeiro concerto da sua vida e apesar do nervosismo da estreia saíram-se a contento e com alguma graça quando reconheceram que foram forçados a cozinhar um par de canções à última da hora para terem material suficiente para justificar o palco!  - "Que será deste projecto daqui a cinco anos?", perguntava o Andarilho e só me ocorreu um cenário: -"Bem, se tudo correr bem serão famosos e podemos contar aos nossos netos que estivemos na sua primeira aparição pública!". Bom, para já a coisa mexe, já por aí anda "City Vocabulary", o primeiro single do que será o EP "Public Speaking", com lançamento previsto para este ano... 




O baptismo dos HAUSE PLANTS - Bang Venue, 10-01-2020



A  segunda banda da noite, EL SEÑOR, veio do Minho, são músicos fafenses de gema e que já fizeram omoletas por vários festivais deste país baseados no EP de estreia "Alvorada Beat", lançado em 2017... Bem mais afinados e seguros agora, acabam de lançar a sua primeira obra de fôlego, o LP "Suburbs of Joy", uma deliciosa mistura de bateria estonteante, baixo rebelde e guitarra electrizante! A descobrir... E daqui a cinco anos, onde estarão? Talvez no top, quem sabe?





"El Señor" - Bang Venue - 10-01-2020





                                         "Dragging smiles" EL SEÑOR


             
                                                   


    João Sem Dó
    (Musicólogo de Valmedo)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020



ANEDOTAS QUE PARECEM POEMAS - IV


A DERRADEIRA CONFISSÃO... 



Cheirava a morte no quarto envolto em penumbra e na parede caiada de um branco a desfazer-se em pequenas lágrimas de óxido de cálcio onde encostava a cabeceira do leito via-se tremelicando a sombra esticada de uma mão enclavinhada suplicando por ajuda...
A mulher aproximou-se, pousou o castiçal de vela mortiça em cima do naperon da mesinha de cabeceira e num gracioso e sereno movimento sentou-se na beira da cama e olhou para o moribundo:
  -  Amor, preciso de te confessar uma coisa! Não quero morrer de consciência pesada... 
  - Querido, não te canses, e que parvoíce é essa, não precisas de confessar nada...
E ele, agitado, ia dizendo:
  - Preciso sim, para ir em paz tenho que te dizer umas coisas... Sabes, dormi com a tua irmã, foi um erro, eu sei, mas não resisti. E também dormi com a Clara, a tua melhor amiga... E também fui às putas umas quantas vezes, mas só depois daqueles jantares de amigos, por brincadeira, vá... Ah, e também comi a vizinha nova a semana passad...
E então ela pôs-lhe uma mão sobre a boca e com a outra fez-lhe sinal para se calar e tranquilamente disse:
- Tudo bem, amor, não te canses nem te preocupes com isso, eu descobri tudo há semanas. Agora descansa, tranquilo, deixa o veneno fazer efeito...







João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

Morte



A MORTE A SETE PÉS...



A minha primeira memória e experiência da morte aconteceu exactamente na noite do terramoto do último dia de Fevereiro de 1969, sei agora que foi um abalo com uma intensidade de 7.9 na escala de Richter, o mais forte desde 1755!
Então tinha eu quase 5 anos de idade, faltavam-me dois meses apenas, e nessa noite perdi o meu melhor amigo, o avô António, aquele que me levava a cavalo na mula ou na carroça para a horta da Nogueira onde eu descobria ribeiros cheios de água e canaviais misteriosos, que me fazia brinquedos em madeira ou que pegava em mim e me punha em cima do trilho para moer o cereal nas tardes quentes de Agosto ou me depositava no lagar para pisar infantilmente as uvas até de madrugada...  Nessa memorável noite sísmica dei pelo guarda-vestidos do quarto abanar e pelo alvoroço e gritos da madrugada mas, por sonolência ou confusão, apenas rezava aos anjinhos para que o meu avô, em agonia no quarto ao lado e que dava para rua, recuperasse como se nada fosse e que na manhã seguinte me fosse buscar para ir augar a horta. Mas isso nunca mais aconteceria, nunca mais ele brincaria comigo e se na véspera me tinham ido buscar  ao pátio porque ele tinha pedido para se despedir de mim, ainda hoje sinto o fraco aperto da sua mão sobre a minha e o olhar ainda com algum brilho, de esperança talvez, depois disso só me lembro de o ver imóvel e de cara tapada com um imaculado lenço de linho... Em viagem para o céu, alguém me disse, mas não por culpa do sismo, ao contrário das outras 13 vítimas da noite o meu avô morreu de uma trombose, complicação que naquele obscuro tempo ainda era fatal como o destino, esperava-se pela morte em casa, junto da família...









É verdade, ainda sou do tempo em que não havia a negação da morte, ela era um assunto doméstico, até para as crianças, ainda me vejo mais os comparsas a assistir a todos os funerais da freguesia, uns mais dramáticos que outros, é certo, mas todos um acontecimento que quebrava o marasmo da aldeia. e então eram os familiares e as pessoas mais próximas que tratavam de tudo o que fosse prático, para o padre restava apenas a parte espiritual da despedida, até os velórios eram feitos em casa... Mas hoje morre-se essencialmente nos lares e hospitais e as cerimónias fúnebres são organizadas por empresas especializadas em tornar a morte invisível e não chocante, de tal forma que é melhor nem falar dela e quanto às crianças então o melhor é mesmo escondê-la! E de tal forma assim é que o desaparecimento do corpo se tornou imperativo, a cremação virou moda necessária e confortável e por exemplo, no Japão, apenas um cadáver em cem não é cremado, não havendo sepultura nem lápide não há morte a acenar-nos...  Mas todos vivemos com um esqueleto e com uma caveira dentro e quanto mais tarde o admitirmos pior, maior será o trauma e enquanto não repousarmos a sete palmos do chão não vale a pena fugir a sete pés da morte, afinal ela é tão natural quanto inevitável...
E que saudades, avô!







João das Boas Regras

(Sociólogo de Valmedo)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Viver pensando



"Penso, logo existo, disse um homem célebre. As árvores do meu jardim existem, mas não penso que pensem, pelo que podemos demonstrar assim que o senhor René não estava no seu perfeito juízo, e que o mesmo pode suceder com todos os outros. O meu sogro, por exemplo, que existe e não pensa, ou o meu editor que pensa mas não existe. E se virarmos o sistema do avesso, continua a ser pouco evidente. Não existo porque penso, nem penso porque existo. Pensar é certo, existir é um mito. Não existo, sobrevivo. Só vivem - o que se chama viver - os que não pensam. Os que se põem a pensar não vivem. A injustiça é demasiado evidente. Bastaria pensar para nos suicidarmos. Não, senhor Descartes: vivo, logo não penso, se pensasse não viveria."


ADOLFO BIOY CASARES




"Homem-esqueleto de outro mundo" - J.C.Forgeronne




LIVROS 5 ESTRELAS # XVIII


AS QUARENTA APARÊNCIAS DO CÉU...

E enquanto existimos por andarmos por aqui a cogitar sobre como será o lado de lá, isto se o houver, porque entre as fracas certezas e a montanha de dúvidas que nenhuma fé consegue mover uma pessoa corre o risco de se afogar no imenso e absurdo mar que é esta existência, aproveitemos ao menos para nos deliciar com a originalidade de quem vai tendo a capacidade de desafiar limites e construir novos mundos, ainda por cima com humor, essa forma de expressão cada vez mais rara e necessária e que, utilizada na dose certa, é dos melhores paliativos à disposição de um qualquer desassossegado leitor...
É um pequeno livro de contos de apenas uma centena de páginas mas vale por muito mais porque é inevitável relê-lo vezes sem conta tal o deslumbramento da leitura, tem por título "Cogito Ergo Sum - Quarenta Histórias da Vida para além da Morte", e cada uma dessas versões do outro mundo torna-se não só plausível como delirante, afinal há limites para o absurdo?








David Eagleman, o inspirado autor desta pérola, é um neurocientista de mente aberta que nos apresenta o outro lado tão estranho quanto divertido e apesar de o primeiro impacto poder causar alguma estranheza pela surrealidade das histórias, no final, sentados na nossa cadeira de leitura e olhando pela janela para este estranho mundo-cão, podemos concluir que tudo é possível, como por exemplo a aparência de Deus (nas versões do Céu em que ele existe), tanto pode ser uma bactéria, uma mulher ou um grupo de inventores que nos criaram para experimentação laboratorial, é só pensar e escolher...
"Cogito ergo sum", em bom latim "Penso, logo existo", foi a base para toda a doutrina filosófica de Descartes, curiosamente assente na dúvida sobre todas as coisas e na necessidade de um método ordenado e rigoroso de pensamento, matemático até, assente na verificação e síntese, e Eagleman prova que basta pensar para que outros mundos existam... A ler enquanto se está vivo!







João Vírgula

(Leitor de Valmedo)


ENTRE A VIDA E A MORTE... 



A MORTE, exceptuando a nossa, é das coisas mais banais deste mundo, afinal tudo o que vive um dia tem que morrer, seja pessoa seja bicho, e confiando nas estimativas da ONU são cerca de 150 000 as pessoas que morrem por dia em todo o mundo, a uma média de 100 por minuto, ou seja, nos cinco segundos que gastei a escrever a palavra morte partiram de vez deste mundo para aí umas cinco... E é bom imaginar que seja muito grande o outro mundo para que haja espaço para todos e que seja uma viagem sem engarrafamentos tantas são as almas em viagem para o além!
Ora, de entre as poucas certezas que se podem extrair das leis quânticas que sustentam este maravilhoso e esquizóide mundo-cão ressalta à evidência a seguinte: "passamos de longe muito mais tempo mortos do que vivos"... Bom, mas isso não quer dizer que noutros mundos para além deste não passemos mais tempo vivos do que mortos, até seria uma maneira engraçada de equilibrar as coisas, afinal toda a entropia do desordenado cosmos não tenderá, como dizem os postulados da termodinâmica, a obter esse equilíbrio entre o positivo e o negativo, a energia branca e a energia negra, o bem e o mal, o zero e o um do computador, a verdade e a mentira, a realidade e a ilusão? E se a nossa percepção da existência é assente num puro maniqueísmo, ou tudo ou nada, e aquilo que está entre vamos empurrando para a penumbra dos mistérios, também somos levados a procurar certezas, ainda que poucas, e se já dizia Lavoisier que na natureza nada se cria nem se perde, que tudo é transformação, e sendo assim, naturalmente se coloca a questão: e então o espírito, ou seja a alma ou a abstracção humana ou o pensamento, chame-se-lhe o que se quiser, se como tudo o resto não se perde, o que lhe acontece? 











A menos que alguns tenham regressado do lado de lá, de outra dimensão qualquer, nenhum de nós que por aqui deambulamos e muitas vezes perdidos saberá o que nos espera depois do último suspiro terreno, embora haja quem acredite piamente que vai ganhar um par de majestosas asas e com elas voar para o prometido CÉU, seja lá o que isso for... Também não sei o que me poderá acontecer depois de supostamente atravessar o longo túnel em busca de uma luz salvadora, também não é caso para antecipar dores e deixar de dormir por causa disso, logo se verá, a única coisa que espero é encontrar alguém pelo caminho e que, ainda que com as mesmas dúvidas e a mesma esperança de que o mundo de lá não venha a ser ainda pior que este mundo-cão, dê para conversar um pouco ou  ao menos fazer um pouco de companhia porque a solidão perante o desconhecido é a coisa mais terrível que pode calhar a uma alminha perdida!





"Homem-esqueleto" - Odilon Redon




E agora que os cabelos brancos me assaltam, penso na morte todos os dias mas por uma boa razão, é que ao acordar constato que me foi dada mais uma oportunidade, mais uma breve vida para gastar eventualmente até amanhã, se tudo entretanto correr pelo melhor e enquanto assim for pratico o carpe diem porque o carpe vitae só é possível dia a dia, e sabe-se que o depois do amanhã pode ser já um futuro muito longínquo... E um dia, então, chegará a hora para embarcar para aquele mundo onde espero passar muito mais tempo vivo do que morto para compensar esta vidinha daqui que é muito curta...




Yuehan Kaluosi

(Filósofo Taoísta de Valmedo)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Melro




OBITUÁRIO DE UM LUMINOSO MELRO



Olhos abertos fitando o infinito, peito inflamado enfrentando o frio matinal, penas sedosas de um negro brilhante e a cauda disposta num leque perfeito, bastaria apenas abrir as asas para conquistar o céu novamente, simples instinto feito ao longo toda a efémera existência mas as garras enclavinhadas denunciavam o último estertor, o majestoso melro tombara a dois golpes de asa da ansiada segurança da floresta...






Olhava eu em volta em busca de sinais para esclarecer o mistério do desastre quando me apercebi de que afinal alguém tinha chegado antes de mim ao ouvir um sussuro vindo de uns tufos de erva ali à beira e então dei de caras com outra negra criatura, uma estranha e também brilhante lesma, pensei eu então que talvez todas as criaturas dos bosques tivessem assimilado o brilho do fogo festivo de ano novo e que desassossegara tudo e todos horas antes... O molusco tipo grande caracol sem-abrigo apontava para mim um minúsculo e míope olho incrustrado numa das suas pequenas antenas e então, coisa que até me assustou, botou palavra:
  - Coitado, não merecia partir assim... Era uma boa alma...
  - Mas por acaso sabe o que aconteceu? Conhecia-o?
  - Claro que o conhecia! - e o tom de voz lésmico, mais agreste, não dava azo a dúvidas ... - Via-o quase todos os dias, costumava até pernoitar ali naquelas árvores muitas noites... - e apontou com a outra antena para o bosque...
 - Era uma bela ave! - disse eu enfaticamente para dar fogo à conversa...
 - Oh! Se era... Simpático e de bela catadura... Consta por aí na floresta que era respeitado na comunidade e com muita saída entre as melras, não sei se me percebe...
 E foi então que imaginei que se a lesma tivesse boca esta estaria agora aberta num grande e luminoso sorriso...
  - Queres ver que foi pôr a pata em ninho alheio e deu-se mal? - lancei para o ar...




  - Não! Até poderia acontecer um dia num incidente com um melro ciumento mas não foi isso que aconteceu... Eu vi tudo, ou antes... ouvi... O bater das asas, o barulho quando bateu nos fios eléctricos e o baque surdo quando tombou no chão...
   - Então mas se ele conhecia esta zona...
   - Sim, mas ontem assustou-se com todo o barulho e com a luz das festividades humanas do ano novo, foi apenas um infeliz acidente provocado por todo esse fogo de artifício...
Como se a vida se pudesse dividir em períodos estanques... - e pareceu-me então que, na sua inexistente boca, até fez uma careta...


"Fogo de Artifício sobre Capa Negra"




João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)




"My cat Camouf in the roof..."


Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)
"New year, new dimensions..."

João Plástico

(Artista de Valmedo)