MISTERIOSOS HÁBITOS CANINOS
Pois é amigos caninos, quando pensava eu que tinha o controlo sobre a minha pacata existência e sobre a segurança daqueles que me interessam e em que confio até ao infinito eis que, assim como que do nada, sou confrontado com as mais lancinantes dúvidas sobre as minhas certezas e sobre as regras que eu pensava conhecer de como este mundo-cão funciona... Não sei se já passaram pelo mesmo, provavelmente alguns de vós sim e portanto sabem aquilo a que me refiro, se calhar não passa até de uma etapa ancestral e natural que faz parte da ordem natural de aprendizagem da sobrevivência mas, àqueles ainda inocentes que um dia serão postos à prova, ouçam com atenção o que vos direi a seguir, poderá ser-vos muito útil quando um dia, por terem a tentação de colocar tudo em causa, não detonarem todo o mundo à vossa volta... Agora que ganhei a vossa atenção, amigos caninos, vamos lá à história...
Ontem, como sempre e habitualmente, fui esperar o J.C ao portão, sabem que ainda ele vem lá em cima a uns bons duzentos metros de distância e já eu reconheci o barulho e o cheiro daquela máquina barulhenta e irritante em que se faz transportar e depois é vê-lo estacionar de leve junto ao passeio e vê-lo acartar uma série de sacos que mete impressão, ele é o saco das compras do supermercado, ele é o saco do desporto, sim, ele sai manhãzinha cedo para fazer a sua corrida diária em plena natureza, e ainda lhe junta um misterioso saco preto onde transporta os óculos, o telemóvel, a carteira e uma série de papéis de entre os quais se destaca a lista de compras que tinha de fazer sob pena de não haver ingredientes para o almoço estudado de véspera...
Mas ontem foi diferente, seria suposto eu receber uma festinha pendurado na grade do muro, e recebi, seria suposto o J.C pousar toda aquela carga do lado de dentro do muro, e pousou, seria suposto eu cheirar todo aquela bagagem e cheirei, seria suposto eu aperceber-me de dezenas de cheiros diferentes e alguns até entusiasmantes como aqueles que saem dos ténis esfarrapados e das meias suadas, por vezes cheira-me a perdiz, outros a coelhos ou a cabras, por vezes até a cão, mas desta vez fiquei estupefacto e muito desconfiado: cheirou-me a cão da minha espécie, cheirou-me a epagneul-breton! E não desconfiam sequer os humanos que nós, de entre todos os cheiros do mundo, conseguimos distinguir o cheiro da nossa espécie numa fracção de segundo e que de entre milhões de cheiros reconhecemos imediatamente o cheiro da nossa mãe ou dos nossos irmãos!
- "Mau!" - exclamei olhando para ele... "Andas a trair-me? Ainda por cima com alguém da minha raça?"
-"Não sejas tolo, James! Encontrei este teu amigo quando acabei a corrida, quem sabe um primo teu..." E mostrava-me ele no telemóvel as fotografias do outro bicho rebolando-se no chão... -"Muito simpático por acaso, abeirou-se de mim e até lhe fiz uma festinha mas ele tinha outras prioridades, logo desatou a esfregar-se na merda de cabra que um rebanho tinha deixado ali pelo caminho, imagina! E já falamos sobre esse hábito que também tu tens, certo?"
Pois, amigos caninos, com essa ele me calou e fez sossegar a minha inquietação, parece que a nossa espécie de caçadores eméritos tem inscrito no seu código genético um hábito muito particular: quando encontra na natureza um cheiro peculiar de outro animal e eventual presa desatamos a enroscar-nos nele para assim podermos aproximarmo-nos sem sermos denunciados pelo cheiro! Até consta aqui por casa que eu, ainda menino, encontrando duas cascas de camarão no chão me enrosquei sofregamente nelas e andei depois a tresandar a marisco por muitos dias...
James
(Cão de Valmedo)