sábado, 30 de novembro de 2019



O GLORIOSO SACRIFÍCIO DAS LEVEDURAS



Chamam-se-lhes LEVEDURAS porque em latim levare significa crescer e apesar de serem fungos microscópicos constituídos por apenas uma célula é gigantesca a sua importância em toda a história da sociedade humana e o mundo, sem elas, não teria a mesma piada... Já eram conhecidas no Antigo Egipto e usadas na fabricação do pão e da cerveja devido à sua extraordinária capacidade de conseguirem obter energia e de se multiplicar até em condições em que não haja oxigénio! Nesta situação de anaerobiose, num processo chamado fermentação as leveduras obtêm energia a partir dos hidratos de carbono presentes nos cereais como a cevada ou em frutos como a uva e libertam água, álcool etílico e grande quantidade de dióxido de carbono...




Obrigado, leveduras...




No caso do pão, a fermentação é levada a cabo pela levedura Sacharomyces cerevisiae presente no fermento de padeiro e que a uma temperatura ideal de 27ºC decompõe o amido da farinha em CO2 e etanol; irá ser a libertação das bolhas de dióxido de carbono que faz crescer a massa e o processo de panificação fica completo quando o calor do forno mata as leveduras e provoca evaporação do álcool... E pronto, incineraram-se as nossas amigas leveduras mas ficamos com um belo pãozinho  quente...
Quanto ao vinho, as uvas são esmagadas e tratadas com enxofre para inibir o crescimento de outros organismos que poderiam atrapalhar o trabalho das leveduras e o mosto, em repouso, irá criar as condições ideais para fermentação; quando o vinho "ferve" é libertado o dióxido de carbono para a atmosfera ao mesmo tempo que a concentração de álcool vai aumentando e quando atingir os 12º C torna-se tóxica para as próprias leveduras, que mais uma vez são exterminadas...
Quanto ao fabrico de cerveja, a principal diferença para o vinho é que o dióxido de carbono produzido durante a fermentação do malte não é eliminado para a atmosfera e é graças a ele que a bebida tem gás e espuma; a cerveja é então armazenada durante alguns meses para que as leveduras e outras substâncias sejam eliminadas, desta vez por precipitação... 









Ou seja, as nossas amigas leveduras fartam-se de trabalhar e bem para depois lhes darmos um destino atroz e traiçoeiro, queimadas no pão, envenenadas no vinho e lançadas para o abismo na cerveja... Inglório destino tem de ser o delas para que o nosso seja menos pesado!



João Alquimista

(Investigador de Valmedo)


A MISTERIOSA ORIGEM DAS PALAVRAS - X


O GALO, O FUNGO E A LOUCURA...



A palavra francesa ERGOT significa em bom português o esporão do galo, aquela terrível e pontiaguda garra extra que os galináceos machos possuem na parte traseira das patas e que são a sua maior arma de defesa e de ataque nas lutas com outros bichos... Por outro lado, ERGOTISMO é o nome dado a uma doença originada por um processo de envenenamento por ergotina! Mas que raio tem uma coisa a ver com a outra? Tudo, senão vejamos...










Na Europa, durante a Idade Média, o pão de trigo era muito caro e um luxo vedado ao povo que se via obrigado a comer pão e bebidas elaboradas a partir do CENTEIO, cereal mais em conta mas muito traiçoeiro quando parasitado pelo fungo Claviceps purpurea, organismo que sintetiza poderosas toxinas alcalóides... Durante séculos houve relatos de intoxicações em massa pela contaminação da farinha pelos esporos do fungo, como foram os casos  da "gangrena dos sologneses" que matou 8000 pessoas no século XVII e da epidemia de Pont Saint Esprit, em 1951, que provocou 40000 mortos, ambos ocorridos em França. A causa da doença só foi descoberta em 1670 por um médico francês, Thuiller, que associou o consumo de centeio às intoxicações mas foi preciso esperar ainda quase 200 anos para que o micologista Louis Tulasne, também francês, concluísse e demonstrasse em 1853 que era o fungo e não o centeio a causa da doença que depois viria a ser baptizada como ERGOTISMO devido à forma em esporão que o Claviceps assume quando brota da espiga, fazendo lembrar o esporão do galo...




Craviceps purpurea


Hoje, praticamente, a doença apenas afecta os animais de explorações agrícolas que se alimentem de cereais contaminados com o fungo, seja o centeio, a cevada, a aveia ou o trigo mas, ainda que improvável, fique o leitor ciente de alguns sintomas que o esperam se alguma vez ingerir os esporos do Claviceps purpurea: confusão mental, alucinações, hipertensão, ardor intenso, cianose periférica que pode provocar gangrena e, nos casos mais graves, coma e morte... E se por acaso tiver a sensação de que está voando que nem um passarinho sobre um mundo colorido e caleidoscópico também é normal, afinal foi a partir da actividade metabólica do esporão-do-centeio que em 1938 foi descoberto o LSD, a dietilamida do ácido lisérgico, uma das mais potentes substâncias alucinogénicas conhecidas e que, por exemplo, mudou o mundo da música ao inspirar muita obra psicadélica...







João Portugal

(Linguista de Valmedo)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019



AMANITA, UMA FAMÍLIA MUITO POUCO RECOMENDÁVEL...



É uma família que há séculos priva com a sociedade, seja a alta ou a baixa, seja a civil ou a eclesiástica, já na Roma Antiga os cogumelos eram um manjar muito apreciado pelos imperadores e daí naturalmente se ter baptizado uma das espécies comestíveis e mais saborosas como Amanita caesarea, a qual, curiosamente, pode ser encontrada pelos bosques de carvalhos das CEZAREDAS, esse planalto onde justamente um dia o grande CÉSAR e as suas tropas acamparam... 




"Cogumelo-dos-césares" - Cezaredas - J.C.Forgeronne



Os cogumelos-dos-césares, a bem dizer, destoam da restante família, é que a maioria dos seus  membros tem muito mau feitio e são extremamente perigosos devido à sua elevada toxicidade, qualquer confusão com outros cogumelos comestíveis pode dar em morte certa e pouco santa... É o caso do Amanita pantherina, caracterizado pelos entendidos como tendo um ligeiro odor a nabo e um sabor doce, agradável até, o problema viria depois com um grave envenenamento!




"Amanita pantherina"Cezaredas , J.C.Forgeronne




Mas a coqueluche da família é o célebre Amanita phalloides, o cogumelo que mais pessoas mata em todo o mundo! Tal acontece porque é muitas vezes confundido com outros exemplares comestíveis.... É também conhecido por CICUTA VERDE, tal a potência do seu veneno e é impossível não pensar no sacrifício de Sócrates, se ele soubesse teria poupado dores, em vez do veneno da planta teria degustado um Amanita phalloides, de sabor suave e doce e com um agradável cheiro quando jovem, dizem... Salteado apenas com umas gotas de azeite e uma pitada de sal e pimenta teria sido um suicídio perfeito! Ao menos isso o Papa Clemente VII experimentou, morreu após uma bela cogumelada... Parece que também o imperador Tibério Cláudio terá sido presenteado com um belo falóide pela sua mais-do-que-tudo Agripina... E finalmente, cereja no topo do bolo, Siddharta Gautama, o próprio BUDA, que por pouca iluminação no assunto terá morrido devido a ingestão de cogumelos venenosos.... 





"Amanita phalloides" - Cezaredas, J.C.Forgeronne



E depois, voltando às deliciosas memórias de infância, aparece o "mata-moscas", o cogumelo de chapéu vermelho e pintinhas brancas que faz a delícia da criançada em histórias infantis  e especialmente em "Alice no País das Maravilhas"...  Também é conhecido como REBENTA-BOI, e já agora, para o mal e para o bem, façam o favor de não se armarem em bois e fiquem a saber que pode causar grandes alucinações....! E depois venham dizer que o coelho tinha o relógio atrasado, "Ai, ai ai..."!





"Amanita muscaria" - Cezaredas, J.C.Forgeronne


João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

"Coprinus comatus" - Cezaredas



Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)



O MAIOR SER VIVO DO PLANETA!



Não, o maior ser vivo deste mundo-cão  não é a baleia-azul, nem sequer a sequóia-gigante, aliás, não é nem animal nem planta, é um FUNGO! Os fungos, embora tenham sido inicialmente considerados plantas, constituem um reino à parte e com características muito próprias... Os cogumelos que encontramos pela natureza são apenas a parte visível e o fruto que alberga milhões de esporos de um fungo que, muitas vezes, é constituído por gigantescas redes de filamentos subterrâneos chamados rizomorfos e que se espalham pelo subsolo em busca de alimento: nutrientes da madeira em decomposição ou então raízes vivas das árvores... Noticiava o jornal PÚBLICO em Abril de 1992 uma fantástica descoberta: depois de terem feito análises genéticas a muitos cogumelos nas florestas de carvalhos do Michigan, na fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos, investigadores canadianos concluíram que um só fungo da espécie Armillaria bulbosa ocupava uma área de 15 hectares (cerca de 20 campos de futebol), pesando cerca de 100 toneladas e com aproximadamente 1500 anos de vida! Era então o maior ser vivo da Terra! 









Mas ainda a boca não se tinha fechado de espanto e no final desse mesmo ano outra descoberta seria feita: também na América, no Monte Adams, estado de Washington, seria descoberto outro Armillaria, da espécie solidipes, que embora mais novo que o seu comparsa canadiano era apenas 40 (!) vezes maior, estendendo-se por mais de 600 hectares, qualquer coisa como 800 campos de futebol...  





Armillaria - "cogumelo do mel" - (J.C.Forgeronne)



O trono parecia bem entregue mas este mundo-cão parece não ter limites e em 1998 outra descoberta fantástica aconteceu: uma equipa de cientistas do Serviço Florestal dos EUA tinha sido chamada à Floresta Nacional de Malheur para investigar a misteriosa morte de centenas de abetos e no final,  depois de analisadas as raízes de árvores mortas ou em agonia, descobriu-se o serial-killer: um fungo, também da espécie Armillaria solidipes e que fotografias aéreas demonstraram ocupar uma área de 960 hectares, ou seja 9.6 Km2 e com 3 Km de comprimento! Os cientistas avançam ainda para uma estimativa para a idade do organismo: entre 2500 e 8000 anos... É actualmente o maior ser vivo conhecido, até quando não se sabe, mas outro ainda maior pode estar mesmo debaixo dos nossos pés...




"Planalto das Cezaredas" - J.C.Forgeronne




João Atemboró

(Naturalista de Valmedo) 

sexta-feira, 22 de novembro de 2019


"Cogumelos" - J.C.Forgeronne - Caldas da Rainha



CALDAS, RAINHA DA CERÂMICA...



Pois é, quase sem se dar por isso a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) distinguiu há dias as CALDAS DA RAINHA como uma cidade criativa na área da cerâmica, num justo reconhecimento que em nada surpreendente quem conhece a história da arte caldense! Assim, a partir de agora Caldas integra o restrito grupo de 14 cidades mundiais que integram a Rede de Cidades Criativas na Cerâmica, a par da francesa Limoges, da chinesa Jingdezhen, da japonesa Tambasasayama, da brasileira João Pessoa, da egípcia Cairo ou da tunisina Tunis, por exemplo, não esquecendo ainda a lusitana BARCELOS, a outra cidade portuguesa ceramista que já fazia parte do grupo ...




"As Rãs da Estação"



Ora, tal como Barcelos é muito mais do que o galo, para quem desconhece e associa a cerâmica caldense apenas ao famoso símbolo fálico conhecido como "o das caldas" ganhou aqui um belo pretexto para se aventurar numa visita descontraída à cidade e deixar-se surpreender pelas magníficas faianças que por lá estão ávidas de serem descobertas...




"A Saloia do Parque"



E apesar de também ser uma boa ideia não pensem aqueles mais claustrofóbicos e avessos à solenidade e à escuridão que é necessário uma pessoa encafuar-se nos museus para conhecer as obras de arte, elas também estão ao ar livre espalhadas pela cidade na chamada Rota Bordaliana, um passeio que permite também conhecer as Caldas, terra de arquitectos, enquanto se usufrui do sol e da luminosidade do Oeste...
E boa visita!




"O Caracol da Praça da Fruta"

                                                                                                             (Fotos: Jean-Charles Forgeronne)



João Plástico

(Artista de Valmedo)

terça-feira, 19 de novembro de 2019



PRANA, UM SOPRO DE MÚSICA...


Segundo os VEDAS, os antigos textos sagrados dos hindus e que muitos investigadores asseguram ser os mais velhos da humanidade, PRANA é o sopro da vida, a energia vital que emana do cosmos e que os seres vivos absorvem através do ar que respiram, alimentando não apenas o corpo físico mas também a mente e o ego, só que para isso, para que não se desperdice prana é necessário estar desperto e saber respirar a vida e isso nem todos conseguem, como aliás é evidente, basta olhar à nossa volta... Não é um segredo nem sequer um mistério, é um caminho que se escolhe mas que não é fácil pois exige sacrifício de muita coisa acessória e mundana...
De igual modo, os PRANA, trio de São João da Madeira mas que não tem fronteiras, é um sopro vital que anda aí pelo ar e que merece ser respirado, basta estar atento e deixar-se ir na onda das palavras, do ritmo, da mensagem... O seu novo trabalho, o E.P "Entre o verde e o laranja", oferece apenas 3 novos temas porque, segundo os próprios revelaram em pleno concerto no Bang Venue, esta geração não anda com paciência para ouvir álbuns inteiros! Quem diria... E pelos vistos parece que também não tem tempo para concertos ao vivo em salas pequenas e acolhedoras, apenas para grandes festivais, mas vale-nos o profissionalismo de músicos como o João Ferreira, o Miguel Lestre e o Diogo Leite que dão tudo e mais alguma coisa quer estejam a tocar para 50 ou para 5000... 











TEMPO NOSSO

Vem como se fosse tarde
Vem antes que me acobarde
Quem sabe?
Pode ainda haver um tempo para nós
Que poucos serão os que serão avós
E não que não seja bom estarmos sós
Às vezes
Mas deixa lá isso para já.

Vem sem resistir
Vem para ficar
Vem mostrar-me o fundo
do teu mundo sem falar

Vem sem pressa de chegar
Mas vem sem medo de perder o ar
Quem sabe?
Pode ainda haver um canto para nós
Se o tempo for pouco 
Temos o que houver
Roubaremos tempo 
Se tiver que ser...



Tempo nosso - PRANA





"PRANA ao Vivo" - J.C.Forgeronne - Bang Venue, Torres Vedras, 2019


João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)

JOSÉ MÁRIO BRANCO - (1942-2019) - R.I.P.


"Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário 
onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência
dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.

Penteiam-nos crâneos ermos
com as cabeleiras dos avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem esnredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte...


"Queixa das almas jovens censuradas" Natália Correia





                                                                                           Queixa das jovens almas censuradas



João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)




"MUROS" - J.C.Forgeronne, Paymogo, 2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019



COMEMOREMOS ENTÃO À QUEDA DO MURO!!!



Que melhor brinde se poderia fazer à queda do muro do que este feito com aguardente DOC LOURINHÃ, do ano 1989?






À paz, à liberdade, à democracia, à fraternidade...







João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

domingo, 17 de novembro de 2019



MEMÓRIAS VISUAIS DO MURO...



O muro, sendo na sua essência uma desgraça e um símbolo da vergonha humana, acabou também ao longo do tempo por se tornar num mito artístico, tendo contribuído para fazer de BERLIM um paraíso irresistível para toda a gente criativa, fossem eles músicos, cineastas, pintores, escritores, filósofos, investigadores ou simplesmente curiosos... Em Berlim é diferente, à sombra do muro tudo é possível e a percepção do mundo ganha contornos únicos, assim tinha mostrado BOWIE... Quanto às memórias do muro inexistente elas são, logicamente, mais nítidas nas imagens cinematográficas porque aí é mostrado o objecto real, a própria parede, sem artefactos nem fantasias. E muitos filmes fazem do muro uma coisa ainda viva, ainda ele não caíra e Wenders filma uma obra-prima, um legado para a posteridade sobre as fronteiras entre dois mundos, corporizadas pelo muro que separa o cá e o lá, o palpável e o espiritual, tudo enredado nas aventuras de um anjo que que quer baixar à terra porque se perdeu de desejos por uma trapezista bem carnal... A meu ver, o título original é mais belo, "O Céu sobre Berlim", mas enfim... 



"As Asas do Desejo" - 1987, Wim Wenders




Passados dezasseis anos, em 2003, no primeiro grande papel de Daniel Brull, o realizador alemão Wolfgang Becker apresenta-nos uma deliciosa comédia trágica sobre o desmantelamento da RDA, um filho pródigo vê-se na contingência de reinventar o mundo para que a sua mãe sobreviva à queda do muro e às grandes emoções! "Goodbye Lenin" é uma daquelas pérolas que aparece de tempos a tempos...




"Goodbye Lenin", Wolfgang Becker, 2003



Claro que Steven Spielberg nunca se poderia alhear da questão do muro, já tinha exorcizado alguns fantasmas nazis noutros filmes e neste, de 2015, e num registo que me é particularmente grato, a ficção baseada em factos verídicos, brota uma história absolutamente extraordinária que só é possível devido a um realizador visionário e a um actor fora-de-série, Tom Hanks...




"A Ponte dos Espiões", 2015, Steven Spielberg



Finalmente, embora muitos outros exemplos pudessem ser referidos, nota final para um filme mediano mas que nos apresenta o muro sobre outro ponto de vista, reduzindo-o quase a uma curiosidade turística e existencial, mas tocando no ponto nevrálgico, o MURO é incontornável! E apesar dos papéis serem menores é sempre agradável voltar a ver Charlize Theron e Charles McAvoy...




"Atomic Blond", 2017, David Leitch



João Película

(Cinéfilo de Valmedo)

sábado, 16 de novembro de 2019



POTSDAM, A TRANQUILA...



Se curiosamente neste mundo-cão é exactamente o cão o melhor do amigo do homem bastas vezes então nada surpreende que tenha tido Frederico, o Grande como último e mais importante desejo o de ser enterrado junto do túmulo dos seus galgos, em plenos jardins do seu Palácio Sanssouci... E a alma da pobre criatura não teve paz durante duzentos e cinco anos pois, talvez por castigo pelas maldades que o seu iluminado despotismo infligira a muita criatura, contra a sua vontade fora sepultado numa igreja e foi preciso cair o muro para se fazer a vontade ao homem, acabou finalmente por ser trasladado em 1991 para junto dos seus cães e agora repousa em tranquilidade eterna...



"Sanssouci Outonal" - J.C.Forgeronne



Mas não foi só o grande Frederico a apaixonar-se por aquelas idílicas paragens às portas de Berlim onde nasceria a cidade de POTSDAM,  toda a realeza do império prussiano e alemão desatou a construir ali palácios, jardins, parques, igrejas e outros monumentos e juntando a isso uma deslumbrante natureza em que imperam dezenas de lagos e luxuriantes florestas então descobriu-se o paraíso...




"Porta de Brandenburgo" - J.C.Forgeronne, Potsdam



Mas se os paraísos terrenos infelizmente vão desaparecendo a pouco e pouco ainda há alguns que ainda vão resistindo apesar das calamidades que os assolam, é o caso de POTSDAM, arrasada por bombardeamentos dos Aliados em 1945 mas que conseguiu renascer das cinzas e voltar à sua exuberância arquitectónica e paisagística...




"Voltaire à varanda" - J.C.Forgeronne, Sanssouci


E se já vão longe os tempos das duas guerras, a mundial e a fria, presentes estarão sempre as memórias da célebre Conferência de Potsdam em que Churchill, Truman e Estaline dividiram a régua e esquadro os despojos da Alemanha nazi e, mais tarde, da Ponte Glienick, onde se faziam as trocas de espiões entre Berlim Ocidental e o bloco comunista...








João Alembradura

(Historiador de Valmedo)


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

segunda-feira, 11 de novembro de 2019



A PRAÇA, O MURO E A MÚSICA...




POTSDAMER PLATZ, que é como quem diz, a Praça de Potsdam, foi o coração de BERLIM desde meados do século XIX até ao final da II Guerra Mundial... Vizinha das Portas de Brandenburg e do Reichstag e situada exactamente no local onde a estrada que rumava à cidade de Potsdam atravessava a muralha de Berlim, a Potsdamer Platz tornou-se no centro nevrálgico do comercio e do trânsito da cosmopolita capital e com tal impacto que em 1924 nela houve a necessidade e o engenho de instalar o primeiro semáforo da Europa! Tamanho apogeu terminou em 1961 com o inicio da construção do maldito MURO porque para tal houve que sacrificar toda a praça, todos os seus edifícios foram arrasados, sem excepção...
Viajemos agora até Julho de 1990 até ao local da outrora magnífica praça e que com a demolição do muro poucos meses antes se tinha transformado num desolador e extenso terreno baldio e salta à vista mesmo da mais distraída criatura que algo de invulgar e estranho se passa por ali e que causa estranheza e desconforto aos berlinenses que por ali vão passando: numa área vedada e guardada por patrulhas que fazem lembrar as tropas do tempo da guerra fria estão a construir outro muro! De facto, e durante semanas, uma azáfama ocorreu por ali, mesmo por cima do local onde outrora Hitler construiu o seu bunker, é possível vislumbrar ao longe não só a construção de uma enorme estrutura metálica com 168 metros de largura e 25 de altura como também o levantamento de um muro... em esferovite! Explicação? ROGER WATERS prepara-se para levar a cabo aquele que se dizia ser o mais incrível espectáculo de rock alguma vez feito: THE WALL, a partir da magistral obra dos Pink Floyd de 1979... E de facto, se o argumento de "The Wall" não teve na sua génese nada a ver com o muro de Berlim mas sim com outros muros com que a sociedade isola os indivíduos, aliás Waters diria que tinha pensado antes em apresentar o espectáculo no Grand Canyon ou na Praça Vermelha, caiu como mel na sopa a queda do muro e daí toda a Berlim fez questão em comemorar o fim da vergonha... E de facto foi um estrondo a queda desse muro: 350 mil espectadores ao vivo e cerca de um bilião a ver pela televisão! E o show foi abrilhantado por muita ilustre gente como por exemplo Van Morrison, Marianne Faithfull, Jony Mitchell, Scorpions, Bryan Adams, Sinead O'Connor, Cyndie Lauper, Ute Lemper, Jerry Hall ou o grande Albert Finney...




Mas muito antes de ser derrubado, o muro já tinha sido o leitmotive para muita criação musical, com destaque para DAVID BOWIE que viveu anos na Berlim dos anos 70 e que plasmou esse ambiente em criações fabulosas como é o caso de "Heroes", gravada em 1977, uma das grandes canções da história do pop e que é também uma homenagem àqueles heróis que desafiaram a parede:

"(...) Eu, lembro-me bem
de estarmos encostados ao muro
e de as armas dispararem sobre 
as nossas cabeças
e nós beijávamo-nos como se nada 
pudesse cair...
E a vergonha, 
essa estava do lado de lá.
Oh! Nós conseguimos derrotá-los,
para todo o sempre.
E podemos ser heróis                                                               
ao menos por um dia..."

Premonitoriamente, em 1987 Bowie tocaria "Heroes" no Reichstag num gesto que foi considerado e reconhecido pelos alemães como catalisador para a queda do muro que aconteceria apenas dois anos depois e como a memória não lhe era curta voltaria às suas memórias berlinenses em 2014 com o tema "Where are we now" e em que começa por apanhar o comboio para Potsdamer Platz...


Where are we now -BOWIE





"Potsdamer Platz" - J.C.Forgeronne, 2003


Entretanto, e depois de muita obra musical e não só se ter feito por Berlim, a Potsdamer Platz voltou aos seus tempos de glória e hoje, com um gigantesco complexo de magníficos edifícios é o centro financeiro e comercial da cidade e o símbolo da moderna Alemanha reunificada de tal forma que para quem não testemunhou, não leu ou não ouviu será difícil acreditar que por ali já passou um muro ignóbil, mas para manter a memória viva dessa tragédia haverá sempre a música... 



João Sem Dó

(Musicólogo de Valmedo)


sábado, 9 de novembro de 2019




EFEMÉRIDE # 65



DIE MAUER, O MURO, EL MURO, LE MUR, THE WALL...



Os muros são universais, estão por todo o lado, afinal eles sempre existiram desde os primórdios para garantir as fronteiras de territórios conquistados, como são exemplos a Muralha da China ou a Muralha de Adriano, e continuam a existir hoje em dia porque sempre surgem muitas razões, por mais estúpidas que sejam, para separar gente cujo único "crime" é muitas vezes apenas o facto de ser diferente ou de pensar  de outra forma...
Infelizmente muros há muitos mas houve um muro especial, único, feito de cento e dez quilómetros de arame farpado, trezentas e dez torres de vigia, sessenta e cinco trincheiras anti-veículos e vigiado ao milímetro por quarenta mil tropas de fronteira fortemente armadas e treinadas pelos soviéticos e que não foram suficientes para travar o anseio de liberdade de cerca de cinco mil (5000) cidadãos da antiga República Democrática (?) da Alemanha, e se muitos desses desesperados conseguiram passar para o outro lado também centenas ali caíram, de olhos fixos noutra vida, ali a escassas dezenas de metros... E mesmo os que lograram dar o salto perderam muito, o muro dividiu famílias, afastou amigos, instigou ódios e estilhaçou uma sociedade, de facto o muro não dividiu apenas BERLIM, dividiu também o mundo inteiro...













Passam hoje 30 anos sobre a queda do MURO DE BERLIM, essa bestial divisão nascida da sangrenta II Grande Guerra e o que sobra depois de todos estes anos é que a bestialidade humana continua bem viva, vejam-se os muros que estão a ser erguidos por todo o planeta, na fronteira do México, em Marrocos, na fronteira palestiniana ou na fronteira das duas Coreias...  E depois há todos os outros muros, não os físicos feitos de argamassa e tijolo mas os muros ideológicos e perversos que impedem a humanização do planeta e a harmonia entre povos, bastas vezes irmãos... E a sensação que fica é que, no essencial, pouco mudou e é inevitável questionar se alguma vez haverá um futuro sem muros e com mais tolerância, um planeta mais pacífico e fraterno muito diferente do amontoado de guetos que é hoje... 










João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

"Die alt und neu Berlin"





Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)



CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XX


A SALAMANDRA, O FOGO E O  DEMÓNIO...



A comum salamandra-de-fogo, também conhecida por salamandra-de-pintas-amarelas, tem uma longa história de convivência com os humanos e que chegou ao ponto de se tornar um símbolo da mitologia...  Acreditavam os antigos egípcios e gregos que a pobre criatura não só nascia do fogo como ainda era capaz de viver nas chamas e que até era capaz de apagar esses mesmos fogos! Criatura do DIABO, logo muitos se convenceram, e assim se passou a odiar o peçonhento bicho matando-o ao primeiro e fortuito encontro! Para a expansão deste mito muito contribuíram as palavras de ilustres como Aristóteles e Plínio que replicaram relatos de salamandras a nascer do fogo...










Custa um pouco ver grandes pensadores como Plínio e Aristóteles cair no ridículo mas não há muita volta a dar, parece óbvio e racional admitir que os nossos antepassados foram ludibriados por situações absolutamente naturais: então que haviam de fazer aquelas pobres salamandras escondidas naqueles húmidos troncos que alguém fora buscar à floresta para pôr a arder? Deixarem-se imolar como Giordano Bruno? Ou fugir a quatro patas quando o quentinho se tornasse insuportável? Claro que ao ver aqueles pestilentos bichos a sair do fogo como se nada fosse, ainda por cima pintalgados de amarelo ou vermelho, muita gente se convenceu da sua génese sobrenatural e claro, de boca em boca, se criam novos mundos e novos demónios...






E agora, aqui no quentinho da minha sala aquecida por esta minha bela salamandra e enquanto releio o inesgotável "Fahrenheit 451" e volto a encarar o herói da história, Montag, o bombeiro que queimava livros e que tinha tatuada no braço a mítica salamandra, concluo fascinado que tudo isto se completa, tipo salamandra-de-cauda-na-boca, e que mesmo tudo isto não passe de uma efabulação, a SALAMANDRA será para sempre o símbolo do fogo e da regenaração! E já estou deserto para encontrar outra salamandra amanhã...



João Iniciado

(Ocultista de Valmedo)


O MISTÉRIO DO CAMINHO DAS CEZAREDAS




Outra! O caminhante que cedo se aventurou pelos caminhos de chão que ladeiam as Cezaredas e que levam ao Pó ou ao Reguengo deteve-se novamente e acocorou-se com algum sacrifício para observar de perto outro bicho esmagado... Levantou-se a custo, limpou o suor da testa com a manga do corta-vento e coçando a cabeça olhou para o alto de onde lhe chegava o silvo do ar a ser cortado pelas enormes hélices do moinho, que raio era aquilo, um suicídio colectivo como o das baleias que de tempos a tempos dão à praia? Era estranho, era para aí a sexta ou sétima SALAMANDRA que encontrava esborrachada na berma do estradão e sempre do mesmo lado e à mesma distância da berma, parecia que se tinham deixado ficar ali propositadamente à espera que os raros veículos que por ali transitam lhes passassem por cima! Que outra explicação haveria, teria sido tamanha a coincidência para que todos aqueles bichos fossem atropelados ao mesmo tempo, ou seriam aqueles os infelizes de entre dezenas ou centenas que conseguiram chegar a salvo ao outro lado? O aventureiro sorriu ao imaginar o espectáculo: milhares de salamandras a invadir a estrada escura e um condutor em pânico ao ver todos aqueles anfíbios iluminados pelos faróis e a acelerar desalmadamente para fugir daquele cenário demoníaco!
Ainda lhe faltava metade do caminho para fazer mas quedou-se ali uns minutos, sentia-se um absoluto ignorante, notava agora que pouco ou nada sabia acerca das salamandras e que apenas tinha a ideia de que eram animais anfíbios e enquanto observava as manchas amarelas daquele cadáver decidiu que não passaria daquele dia, quando terminasse a exploração pelo planalto iria consultar os atlas que tinha lá por casa e que já não consultava há muito, iria descobrir o mundo das salamandras!














Ao contrário dos seus primos rãs e sapos que possuem orgãos respiratórios complexos, a salamandra de pintas amarelas possui pulmões rudimentares e por isso vê-se obrigada a complementar as trocas gasosas através da pele, a qual se deve manter sempre húmida e daí os seus hábitos de vida serem fundamentalmente  nocturnos... A melhor altura para as encontrar é ao anoitecer ou após grandes chuvadas e nessas ocasiões é vê-las a sair debaixo de pedras, de fendas nos troncos ou dos buracos de toupeiras... A salamandra é um animal carnívoro e tem preferência por insectos como o escaravelho, a formiga, a mosca e o mosquito, não desprezando outros invertebrados como o caracol, a lesma e até aranhas e todos eles engolidos num ápice depois de caçados com a sua língua comprida e retráctil de almofada pegajosa na ponta que se cola à presa.


"Salamandra de Fogo" - João Plástico


E então, ao final do dia, enquanto as salamandras se preparam para sair à aventura  pelo planalto das Cezaredas, o nosso caminhante aventureiro, já no quentinho do lar e à beira da salamandra de ferro que ia debitando calor, solucionou o mistério que envolvia aquela mortandade salamandrina que o apoquentava desde essa manhã: é precisamente nesta época outonal que as salamandras estão mais activas, saem elas dos seus abrigos em caminhada lenta para poupar energia com um objectivo ao qual o impulso da natureza as obriga: acasalamento! E frequentemente os machos, já de si lentos e amiúde pouco espertos, ficam parados de cabeça ao alto em busca do odor das fêmeas, alienados de tudo o resto e é precisamente nessa altura que correm mais riscos de atropelamento, nem com buzinadelas ou sinais de luzes escapam, afinal não tinha sido um suicídio colectivo, tinha sido um suicídio sexual!









E aqueles machos que tiveram a sorte de atravessar o caminho em boa hora e conseguiram acasalar poderão ainda viver muitas mais aventuras, é que a sua longevidade pode chegar aos trinta ou mais anos, havendo casos noutras espécies de salamandra em que foram atingidas cinco décadas e meia de vida! Quanto às fêmeas, depois do feliz encontro amoroso, irão encontrar um charco onde dão à luz cerca de 20 a 40 larvas que aí, nas águas tranquilas, se irão desenvolver até ao estado adulto, essas mesmas salamandras que para o ano o nosso caminhante encontrará algures num caminho...




João Atemboró

(Naturalista de Valmedo)