AS BOAS IDEIAS CABEM EM QUALQUER LADO...
Pareceu-me uma boa escolha, peguei num dos meus exemplares de "A Cidade e as Serras", é o que faz a mania de coleccionar, damos por nós a encontrar obras repetidas lá por casa, mas neste caso, se a memória não me atraiçoa, este volume veio parar-me às mãos como oferta de uma daquelas campanhas jornalísticas vai para anos, para ter um livro comprava-se um jornal que rapidamente ia forrar gavetas ou alimentar o papelão, e assim, munido das aventuras do Jacinto e ao som do renascido Manel Cruz que saía da terceira Antena, lá fui decidido até à Praia da Areia Branca matar a curiosidade e ver como aquilo funcionava...
Entro então noutra dimensão, dentro da cabine que já não é telefónica mas antes de leitura o mundo encolheu e agora é feito apenas de palavras e algumas ilustrações, e ali fico claustrofobicamente comprimido por meia dúzia de dezenas de livros aleatoriamente espalhados à minha frente por meia dúzia de prateleiras, e passado o primeiro espanto e à medida que me vou habituando a este microcosmos literário dou por mim a ler as instruções de sobrevivência neste pequeno buraco vermelho... "Deixar livros de que gosto", "levar um livro de cada vez", "escrever o nome e o livro que vou deixar (e o que vou levar) no Caderno de Registos", "devolver o livro que vou levar quando terminar a leitura, sem prazo"... Simples, sem burocracias, sem intermediários, só nós e uma atmosfera em que se respira apenas livros, basta a boa vontade dos homens de boa índole e este projecto das microbibliotecas que está a ser implantado pelos lugares da Lourinhã será um sucesso quanto aos seus objectivos, assim queiram os cidadão leitores e não só: fomentar a leitura, exercitar a cidadania, elevar o nível cultural das populações...
Animado, dou por mim, qual mirim escuteiro, a cumprir escrupulosamente as regras e a registar a minha doação e a procurar algum livro interessante naquela reduzida e aleatória oferta, e espantem-se, desde outros Eça de Queiroz como a misteriosa estrada de Sintra escrito a meias com Ramalho de Ortigão e com uma capa deveras interessante até a um
Kamasutra para meninas, passando pelas aventuras infanto-juvenis, desde os 5 aos 7, é só escolher que a Enid Blyton não se importa, ou qualquer outra coisa descabida, ou até obras em língua estrangeira, inglês, francês ou alemão (vê-se que os nossos amigos surfistas de passagem pela nossa maravilhosa costa aderiram à ideia), tudo é possível...
E de entres muitas surpreendentes opções decidi-me por um pequeno livro de memórias do qual desconhecia a existência, da autoria de Alberto Manguel, "Com Borges", um livro excepcional sobre a vida excepcional do excepcional Jorge Luís Borges... Embora fiquem para depois as impressões desta descoberta apaixonante não resisto a levantar um pouquinho o véu: Manguel, que mais tarde se tornaria também escritor, começou aos 16 anos a frequentar a casa de Borges para ler livros que o mestre não podia ler... Um achado, e assim se autenticou aquele ditado "Dá se queres receber"... Entretanto logrei descortinar lá fora um velhote que especara a olhar para mim com um ar meio curioso meio condescendente, deveria estar a pensar que não estaria eu bem da cabeça, pensaria ele que eu ainda não tinha reparado que aquela cabine já não funcionava?
E então, despedindo-me finalmente d'A Cidade e as Serras, folheei talvez pela última vez aquele livro que ia deixar mesmo ao lado do Kamasutra e mesmo a propósito deparo com esta pérola na última página: "(...) Eu ajudara a prima Joaninha a montar, quando o carregador apareceu com um maço de jornais e papéis, que eu esquecera na carruagem. Era uma papelada, de que me sortira na estação de Orleães toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo, de erotismo. Jacinto, que as reconhecera, gritou rindo: - Deita isso fora! E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do pátio, aquele pútrido rebotalho da Civilização. E montei."
No mesmo instante em que acabara de ler isto soube que, para além da companhia do Borges que iria ter nos próximos tempos, me seria impossível resistir, quando chegasse a casa, a reler e reviver alguns trechos da cidade e outros tantos da serra... Mas o melhor ainda estava para vir porque logo no início das memórias de Alberto Manguel, quando ele descreve a mui exigente e parca biblioteca que Borges tinha no seu apartamento de Buenos Aires, ficamos a saber que por lá moravam vários romances de Eça de Queiroz!
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Microbiblioteca na Feteira - Lourinhã |
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)