(...) " Para Porto Dinheiro convergiram muitas atenções nos últimos tempos porque foi aí, numa das suas arribas, que foi exumado há alguns anos o Dinheirosaurus lourinhanensis, lagarto único da sua espécie que veio imortalizar a região. Mas todos os anos, em Agosto, acontece na praia de Porto Dinheiro uma festa especial, tão especial que afasta para longe a memoria da grandiosa descoberta paleontológica do saurópode e o visitante desprevenido que descer qualquer das encostas (mais prometedora a que vem da Atalaia) ficará deveras surpreendido com a encenação que aí terá lugar. Se há cento e cinquenta milhões de anos passavam por ali rios que vinham do arquipélago das Berlengas, nestes dias festivos, a praia, que por efeitos de linguagem já é por natureza uma arena, serena e pequenina, escondida lá no fundo, que por estar tão aconchegada pelas arribas parece um ninho, transforma-se num anfiteatro único ao albergar um redondel improvisado...
Ao pequeno porto, abrigo de meia dúzia de pequenas embarcações, há-de chegar a camioneta com uma garbosa e impaciente vaca brava. Tal como os homens também as vacas não se devem medir aos palmos mas salta aos olhos até do mais leigo em assuntos taurinos que estes exemplares que dão à praça nestes dias de festa não devem partilhar muito do código genético dos terríveis miura sevilhanos, estirpe mítica que até aos mais corajosos toureiros atemoriza. Mas não se pense que esta vaca vai ali fazer tristes figuras, não senhor, será com toda a dignidade que desempenhará o seu papel e de tal modo que ao fim de pouco tempo já conquistou o respeito da assistência.
Assim que o animal é introduzido no recinto começa a agitação da turba. Muitos limitam-se a passar a tarde a largar palavras de ordem, ora para o animal ora para os corajosos aventureiros. Nem que seja só para dar uma corrida pela frente da vaca e fugir imediatamente vale a pena ousar e comungar do susto e da alegria que invadem os corações, o da besta incluído. Afinal, a segurança das barreiras está a um curto passo. Mas há quem opte por fugir a nado pelo mar fora, embora a vaca às vezes não se faça rogada e também vá ao banho. E parece gostar já que de vez em quando torna-se necessário ir resgatá-la à água, cena que por não ser fácil se torna das mais engraçadas e aguardadas da tarde.
Se tudo correr bem, todos se safarão apenas com alguns arranhões e esfoladelas pouco profundas, ou então com algumas contusões sem importância mais devido à confusão da fuga do que às investidas da vaca. Ali não há ferros, nem curtos nem compridos e muito menos touros de morte. A vaca morre sim mas de cansaço e só então, quando exausta já não reage à populaça, é colocada de novo na camioneta. Aí pode finalmente repousar um pouco enquanto os carregadores e demais participantes vão até ao café do Chico Neto emborcar umas imperiais atremoçadas e trocar animados comentários sobre os momentos mais relevantes da lide. Quando o povo dispersa fá-lo já com saudades da vacada do próximo ano...
Excerto de "À beira do caniçal", de João Pena Seca