segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

sábado, 27 de janeiro de 2024

 

CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLVIII


A PEDRA PERDIDA NO TEMPO


Dou logo de caras com a quinta, coisa mais fácil de encontrar neste mundo-cão não deve existir, agora encontrar a redonda pedra já é outra história, estou no lugarejo de Pedra Redonda, meia dúzia de casas e menos ruas ainda já percorridas de trás para a frente e de frente para trás e sem vislumbre do achado arqueológico que me trouxe aqui, nem sequer uma placa a chamar a atenção, até que por sorte deparo com dois simpáticos vizinhos a uma esquina em amena cavaqueira, estão pondo a conversa em dia enquanto recebem o calor dos últimos raios de sol do dia... 
 - Viva, sabem dizer-me onde fica a pedra? Aquela que dá o nome a este sítio? Ando aqui às voltas e não vejo sinal dessa coisa!
 - Olhe, é mesmo ali... - e o homem apontou com a bengala - mas está tapada!
Olhei com desânimo para o local indicado, "tapada!", a palavra caiu-me em cima que nem um trovão, tinha eu vindo de Alcobertas para aqui para encontrar a pedra tapada, raios, alguém a terá tornado inacessível vedando o local ao público, pensei...

- Tapada? Então não se pode ver?
- Pode, tem é que tirar a terra que tem por cima... Sabe, com estas últimas chuvas escorreu água lá de cima e a lama tapou a coisa... - quem o disse foi o senhor Tito, nado há setenta e sete anos e criado ali mesmo naquela casa defronte, tendo sempre vivido com a pedra à beira da janela...
- Ah, mas a gente trata do assunto - disse célere a senhora sua vizinha, Alda de nome próprio e Bugalho de apelido ali arranjado por casamento, que ela era de outras bandas há setenta e sete anos, e voltou do seu quintal com uma vassoura...
Enquanto nos aproximamos os três do sítio exacto onde jazia enterrada a pedra, sob as ramadas nuas de um enorme carvalho, e agora com outra perspectiva, reparo que estou então na Rua da Pedra, graças à placa que a Junta de Freguesia da Benedita amarrou a um poste de electricidade e na qual não reparara quando ali tinha passado de carro...
- É aí mesmo! - diz o Tito, apontando com o pé, sereno e convicto, afinal sempre vivera ao lado da pedra...
Pego a vassoura das mãos da Alda e começo a varrer com frenesim, algo começa a aparecer mas é necessário uma pá, diz o Tito, "deixe lá", digo eu e começo a vassourar com os pés a última camada de terra ainda húmida, que me perdoe a N. que me ofereceu estes maravilhosos ténis de marca... E eis a pedra, tal qual as fotos dos artigos publicados sobre ela...
- Mas isto devia ser preservado, não acham? 
- Nunca ninguém ligou a isto! - um respondeu, os dois encolheram os ombros...




- E então, o que me contam sobre esta pedra? - pergunto aos dois, apontando para o achado novamente a descoberto... - O que ouviram falar desde pequenos acerca disto? 
- Olhe, no  meu tempo de criança as pessoas já velhas chamavam a isto "o olho" porque dava para orientar a direito desde o talefe lá no alto da serra até ao Monte de São Brás na Nazaré, uma ligação entre a serra e o mar... Depois ninguém sabia ao certo a história disto, apenas que devia ser do tempo da idade da pedra, mas uma coisa de que me lembro bem de ouvir dizer na altura é que este carvalho tinha mais de 400 anos! - e apontou para o alto, para o esqueleto da vetusta  árvore... 
E apesar de haver quem afiance que a pedra redonda é uma gravura rupestre com uns cinco a seis mil anos de pétrea idade e que faria parte de um calendário lunar que sinalizava os equinócios e os solstícios, ali, no largo central da Pedra Redonda, às portas de Benedita e Turquel, outros garantem que do que se trata é de uma enorme amonite incrustada num afloramento calcário do Jurássico Superior, ou seja, com 150 milhões de anos!
Uma pedra perdida no tempo, é o que é, votada ao abandono e ao esquecimento...   


João Parte-Pedra

(Geólogo de Valmedo)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

 

O TEMPLO ROUBADO À PEDRADA


Há cerca de 6000 anos atrás, muito antes de os Egípcios construírem as suas fantásticas pirâmides, foi erigido um templo funerário no sopé das montanhas que muito mais tarde seriam baptizadas como as serras de Aire e Candeeiros... A anta das Alcobertas, como hoje é conhecida, foi resistindo incólume aos séculos ou não fossem os calhaus destas serras de excelente qualidade, até que no século XVI, a Santa Igreja Católica de Roma, especialista em se apropriar de monumentos, tradições e rituais pagãos para lhes dar uma épica e falsa narrativa cristã, lhe deitou a mão e a transformou numa capela dedicada a Santa Maria Madalena... Bastou substituir a laje que servia de telhado por telhas de barro, colocar-lhe uma sacrossanta cruz em cima e eis uma anta-capela que é uma das dez maiores da Península Ibérica...




A empreitada deu muito jeito porque assim se matavam duas más influências de uma cajadada só, a dos símbolos pagãos dos homens da idade da pedra e depois a lembrança dos mouros cuja indelével e proveitosa presença pela região ainda estava fresca.... Não deixa de ser curioso o facto de o usurpado templo ter sido dedicado a Maria Madalena, aquela suposta pecadora a quem o Cristo salvou das pedradas com o célebre desafio: "Quem nunca pecou que lance a primeira pedra!". 
Afinal, passado tanto tempo, parece que Maria Madalena não era nem prostituta nem adúltera como diziam os cegos e invejosos cristãos de antanho mas sim uma senhora de respeitabilidade insuspeita, a companheira de Jesus, afinal, como aliás o comprovou o Papa Francisco ao canonizá-la como a "apóstola dos apóstolos"! Santa hipocrisia! Pois, apetece questionar quem afinal merece levar com as pedras que se acharem pelas serras de Aire e Candeeiros? E que Deus empedernido é este que teima em não socorrer a agonizante humanidade neste mundo-cão?



"Anta de Alcobertas - Jean-Charles Forgeronne)


João Alembradura

(Historiador de Valmedo) 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

"Senhor das Alcobertas" - Jorge Marques, 1993

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)
 

 

DESCOBERTAS POR ALCOBERTAS


Deixadas as salinas ainda engalanadas com luzes natalícias e presépios de sal para trás e Rio Maior a uma dezena de quilómetros, quando chegamos a Alcobertas não vale a pena tentar encontrar a "pequena torre" perdida no tempo e que lhe deu o nome a partir do árabe "al cobe", a única torre que se acha é a sineira da Igreja Paroquial com a sua famosa anta-capela à ilharga... Mas tanta coisa se pode descobrir por esta terra de tempos imemoriais e marcada de forma indelével pela presença dos mouros que até os que por ali se possam encontrar perdidos ou distraídos não têm desculpa tantas são as placas a indicar os locais de interesse histórico e cultural...
A primeira e agradável surpresa começa logo quando, no largo onde se encontram a Igreja com a anta ao lado e o Pavilhão Susana Feitor, apertadinho me dirijo ao WC público e, espantoso, não só a porta está aberta como ainda por cima as instalações estão imaculadamente limpas, quase me atrevo a dizer perfumadas com essências da Arábia... Parabéns à Junta de Freguesia pelo cuidado e por assim tão bem receber quem os visita e o mesmo constatei nos outros lavabos públicos do jardim! Tomara muita cidade, muito café e muito restaurante!    


"Olho de Água"

E se Alcobertas já foi terra de pedra e de mouros hoje é terra de água, da gralha de bico vermelho e de muita história, comecemos pelo Olho de Água, uma das cinco principais nascentes perenes do Maciço Calcário Estremenho, a par da do Alviela, do Almonda, do Liz e da Chiqueda, aí nasce a Ribeira de Alcobertas que irá desaguar no Rio Maior...  Mesmo ao lado podemos aventurar-nos pelas grutas que atestam que aquelas serras são mais esburacadas que queijo suiço e depois, seguindo o curso da ribeira, descansar um pouco no pequeno mas muito agradável jardim Porto do Rio, ouvindo o barulho dos saltos da água e com a omnipresente montanha ao fundo...


"Porto do Rio"

A próxima descoberta a fazer é a dos Potes Mouros, designados durante a Idade Média como "Covas do Pão" e que são um conjunto de buracos e túneis escavados na argila que os mouros usavam para armazenar cereais e se dos cerca de cem silos descobertos nos anos 60 do século passado a maior parte foram destruídos pelas escavações feitas por uma pedreira da zona, resta uma boa notícia: existem ainda 35, preservados e protegidos, prontos para uma visita... Ainda assim, o achado arqueológico continua a ser o maior conjunto de silos conhecido na Península Ibérica...


"Potes Mouros"

E no regresso ainda somos impelidos a fazer um pequeno desvio e descobrir uma chaminé vulcânica no dorso da Serra dos Candeeiros onde se contemplam as formações prismáticas basálticas, isto é, um conjunto de colunas de basalto verticais com 15 a 20 metros de altura resultantes do arrefecimento e solidificação da lava expelida pelo vulcão...

"Sinais do vulcão"


João Parte Pedra

(Geólogo de Valmedo)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXXVII


À MESA COM ... TEMPO!


E agora que mais um ano se finou e enquanto o colocámos na prateleira das memórias e das estatísticas, depois de o autopsiarmos para fazermos um balanço de expectativas e desilusões, e agora que outro ano reina na nossa organização social e na nossa vida pessoal impondo-nos novos objectivos, os mesmos sonhos de sempre e os inevitáveis fracassos, agora é o tempo ideal para nos dedicarmos à leitura atenta de "OS ANOS", de Annie Ernaux, antes que percamos a nossa memória e antes que se perca a memória de nós...  
A escritora francesa, nascida em 1940 e prémio Nobel em 2022, envia-nos desde a sua Normandia natal não só um relato autobiográfico da sua vida até ao dia em que se reformou da sua carreira enquanto professora mas também as impressões de seis décadas da história de um país, de um continente, de um mundo inteiro, de todos nós afinal que vivemos pelo menos alguns daqueles maravilhosos, terríveis e desconcertantes anos... 
E uma nota também para a capa de muito bom gosto que atesta que é à mesa que melhor se absorve o mundo, comendo, bebendo, rindo, falando, ouvindo, lembrando, reparando, partilhando, às vezes até zangando e perdoando ao mesmo tempo...




"Observando e ouvindo os nossos filhos agora adultos, perguntávamos o que seria que nos ligava, não o sangue nem os genes, mas apenas o presente de milhares de dias passados em conjunto, de palavras e de gestos, percursos de carro, inúmeras experiências comuns sem rasto consciente. Partiam, beijando-nos quatro vezes nas maçãs do rosto. À noite, recordávamos o prazer que eles tinham tido por comer na nossa casa com os seus amigos - felizes por podermos ainda prover à mais antiga e mais importante das suas necessidades: a alimentação. Neste desassossego infundado que sentimos por eles, reforçados pela crença de que na sua idade éramos mais fortes, vemo-los como seres frágeis num futuro informe." 


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

 

CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLVII


A SABEDORIA DOS CAMELOS


Nem rei nem dono de nada, o jovem Malik ia gozando a frescura do oásis recostado no tronco de uma generosa palmeira e sentado na areia morna. Ali, protegido pela sombra do calor infernal, ia tranquilamente dormitando mas eis que agora, descerrando os olhos, vislumbra ao longe uma extraordinária visão: uma interminável caravana de camelos vinda das longínquas dunas aproximava-se serpenteando...
Malik levantou-se respeitosamente quando o primeiro camelo lhe passou mesmo à frente e reparando que ia carregado de livros perguntou a si mesmo: "Será que vem aí aquele vizir da Pérsia de que me falou o meu avô e que anda com os seus livros atrás para onde quer que viaje?"
E era...





Nos finais do século X viveu Abdul Kassem Ismael, (936-995), vizir da Pérsia, também conhecido por Saheb, "O Companheiro", incansável viajante e tão apaixonado por livros que não podendo viver sem eles só lhe restou uma solução: transportá-los consigo para onde quer que fosse! Assim, a sua biblioteca constituída por cerca de 117000 volumes era transportada por 400 camelos, tão bem treinados que nunca trocavam de lugar na caravana que se estendia por 2 quilómetros de comprimento! O mais impressionante é que era muito fácil aos bibliotecários do vizir encontrar a qualquer momento um volume que lhes fosse solicitado já que cada grupo de camelos carregava os títulos que começavam com uma determinada letra do alfabeto persa e depois também os próprios livros estavam rigorosamente ordenados alfabeticamente em cada camelo... O companheiro assim também dormia mais descansado porque tinha a sua biblioteca a salvo de qualquer ataque, ou por guerras ou por incêndios, e pessoa de grande cultura certamente tinha sido avisado pelas vozes do deserto da calamidade que acontecera à biblioteca mais famosa da Antiguidade quando o fogo devorou não se sabe quantos milhares de rolos de papiro em Alexandria, no dia 3 de Janeiro do ano 47 antes de Cristo...


João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024