"Pelotão" de Nuno Vasa, 2017 - Rotunda do Arena, Torres Vedras |
Jean-Charles Forgeronne
Fotógrafo de Valmedo
CRIATURAS DO SUBMUNDO
Já não pode um pobre fotógrafo sair à rua depois de meses de confinamento e embrenhar-se na natureza selvagem sem apanhar um valente susto, senão reparem naquilo com que me deparei em plena caminhada:
Pois é, estranhas criaturas estão emergindo das profundezas, será um sinal de que o fim deste mundo caótico está para breve?
Tenham muito cuidado, eles andam por aí!
Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)
"Se algum dia a merda tiver algum valor então os pobres nascerão sem cu!"
Gabriel García Márquez
VIAJAR LENDO COM OS OUVIDOS...
Na sessão dos Livros a Oeste que juntou as letras e os sons, ou seja, a literatura e a música, foi Rui Eduardo Paes quem iniciou as hostilidades ou não fosse ele um influente crítico musical que escreve sobre música desde os longínquos anos 80 até à actualidade numa longa viagem em que aborda a música não só como manifestação artística mas também sociológica, filosófica, económica e até política:
"Toda a manifestação artística é política! Vivemos em rede, não somos uma ilha, nada é uma ilha..."
Depois João Carlos Callixto, investigador musical e autor de programas radiofónicos e televisivos como, por exemplo, o "Gramofone", no qual recupera memórias audiovisuais a partir do riquíssimo espólio do arquivo da RTP, viajou até ao passado ao chamar à baila um curioso caso:
"Aquela a que se chamou de canção ligeira é uma coisa muito vasta, veja-se o João Maria Tudela que em 1969 apareceu no Natal dos Hospitais a cantar "Cama 4, Sala 5", com letra de Ary dos Santos e música de Nuno Nazareth Fernandes e que é um manifesto contra a guerra colonial ao contar a história de um soldado ferido internado no hospital... Consta que Ary dos Santos só foi convencido a fazer a letra porque a emissão era em directo, aí não havia censura. A carreira do Tudela acabou ali, seria proibido de actuar na RTP até Abril de 1975!"
E depois, Adolfo Luxúria Canibal, também homem de letras e poesia mas o único músico em palco revela uma viagem eternamente adiada:
"Quando comecei a escrever para os MÃO MORTA a ideia não ia além dumas férias em Berlim, dar uns concertos e regressar, nada mais que isso e escrevi para alemães em português e na altura tive a profunda consciência de que não interessava o que estava a dizer mas sim o som das palavras que entravam na música e que poderiam tocar alguma corda sensível de um público alérgico à língua portuguesa. A viagem acabou por não se realizar e só mais tarde dei importância ao significado das palavras ao contar histórias e narrativas..."
"Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho
Trepando o perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos
Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente, de beijos
Pelos cantos sôfregos de desejo
Inventamos planos de rebelião
Sonhos de transmutação
Passámos horas a inventar
Entre duas carícias
Surgiram ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora
Olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas
De ramos retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora.
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim...
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim...
(Adolfo Luxúria Canibal)
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
OS DOENTES, OS LOUCOS E OS OUTROS...
Afinal, e sob o mote da doença na literatura, que se poderia esperar duma conversa com três exímios oradores a não ser uma hora e picos de deleite cultural? Junte-se a Miguel Real, escritor e professor de Filosofia mas também ensaísta e destacando-se nesta área como autor da série das Novas Teorias (do Mal, do Pecado, da Felicidade e outros)
"A doença é uma disfunção corporal (ou mental) e a literatura adora disfunções! Tudo o que é rotineiro, o quotidiano absolutamente normalizado pode aparecer mas como pano de fundo, o centro é sempre a disfunção. O amor, por exemplo, é uma disfunção. E a doença, como disfunção, torna-se uma narrativa literária!"
Fernando Pinto do Amaral, poeta, crítico literário e professor universitário, alguém que após 4 anos de curso de Medicina abandonou as ciências pelas letras não só por falta de vocação mas porque finalmente ganhou a coragem de enfrentar o destino familiar (o pai era médico) e que hoje, pé lá e pé cá, sente-se à vontade para dizer
"As pandemias são a defesa do planeta! Atenção: esta foi só um aviso, da próxima vez são três mil milhões que vão à vida!"
e por último, talvez por ser o mais jovem, Rogério Ribeiro, conterrâneo deste escriba e o único a enveredar por uma carreira científica, nomeadamente na área da investigação da diabetes. Paralelamente mergulhou a fundo e com paixão no universo da ficção científica, área em que para além de ter editado várias antologias e organizado eventos sobre o tema escreveu vários contos fantásticos
"A distopia, um mundo disfuncional, também é sinónimo de utilidade! As mulheres que escreveram outrora e que tinham a necessidade de pensar o mundo de uma forma completamente diferente utilizaram a doença e as pragas para criar um mundo sem homens, uma distopia que só era possível apresentar neste contexto porque de outra forma não seria possível falar sobre coisas que não eram na altura bem aceites..."
E depois o Morales leu Ângelo de Lima, poeta louco internado em Rilhafoles:
"Pára-me de repente o pensamento
como que de repente refreado
na doida correria em que levado
ia em busca da paz, do esquecimento...
Pára surpreso, escrutador, atento,
como pára um cavalo alucinado
ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica-se e demora um momento.
Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
e mergulha na noite escura e fria
Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor do seu flanco estria
e ele galga e prossegue sob a espora..."
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
BELAS LETRAS E SONS DE ÁFRICA...
Ontem, sob o signo da identidade, da língua oral e escrita e da actividade política, na foz dos Livros a Oeste desaguaram três pujantes correntes de desassossego e referências culturais não só do mundo da língua portuguesa mas também de outras línguas nativas e outras crioulas linguagens, a começar por uma referência do rap e um dos fundadores do hip-hop em Portugal, Timóteo Santos, um híbrido são-tomense e torriense mais conhecido por NBC (Natural Black Color) e neste particular caso o acrónimo diz muita coisa sem ser redutor...
"Não deixes passar uma vida toda
para teres certezas
daquilo que te incomoda,
então acorda já!"
Foto: João Andarilho |
... e também de Torres Vedras veio outra voz inquieta, desta vez com raízes na Guiné-Bissau e em busca de liberdade para o amor e outras coisas maiores, Karyna Gomes, de voz cristalina e âncora na poesia militante herdada de raízes próximas e históricas e que encantou a parca mas sortuda plateia ao honrar a poesia de Amílcar Cabral apenas com voz e batuques dos finos dedos...
"Lagrimas kinsi "Vieram então as lágrimas
I intchi dentru di un korson di mimu e elas transbordaram do meu coração mimado
Alegria prumesa son di momentu A alegria é promessa passageira
Amor livre stau na sangui Está no teu sangue viver livre
Anta gosi gora i kuma i kuma Mas e agora, como é que vai ser?
Pa no fikal sin" Vamos deixar assim?"
... e finalmente, não de Torres mas sim de Maputo e via redes hertzianas chegava-nos ao auditório Dr. Afonso Rodrigues Pereira a carismática presença do jovem moçambicano Amosse Mucaveli, jornalista e poeta que faz questão de denunciar a miserável injustiça de algumas existências, por exemplo no poema "Mafalala":
"Os sinos da munhuana estão velhos,
tocam nas enrugadas horas da esperança
murcha, o cansaço das lembranças estampadas
nas casas de madeira e zinco.
E no chão cimentado por pântanos
as rãs fazem ajustes de contas com o eco do abandono..."
E acabou por ser mais uma de muitas trocas de ideias e experiências brilhantemente dirigida por João Morales...
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta de uma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e quebranto,
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
José Saramago
in "Os poemas possíveis", 1981
"José Saramago", Do Carmo Vieira, 2018 |
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
MU´KEKA, A CALDEIRADA AFRICANA
E já que se falou de Angola e dos angolanos falemos então também da MOQUECA, termo com origem no quimbundo mu'queca e que designa um famoso cozido de peixe típico da cozinha angolana e brasileira e que também pode ser confeccionado à base de mariscos, crustáceos, galinha e até ovos...
Rezam históricas crónicas que terão sido os Portugueses a estar na origem da moqueca ao levarem nas suas naus para Angola a receita da tradicional caldeirada de peixe lusitana porque não tardou muito para que os angolanos rapidamente tornassem a coisa deveras muito especial e característica ao introduzir-lhe ingredientes locais como o óleo de palma (dendê) e o leite de coco... Mais tarde, através do comércio de escravos de Angola para o Brasil, a moqueca chegou à América do Sul e ganhou outros encantos mas seja ela à maneira brasileira ou à moda angolana ganhou com mérito o epíteto de iguaria de mérito universal...
MOQUECA À VALMEDO
Ingredientes:
500 grs de camarão cozido
1/2 pimento verde e 1/2 pimento vermelho às tiras
1 cebola roxa picada
3 dentes de alho picados
3 tomates maduros picados
salsa e coentros
leite de coco (200 ml)
azeite de dendê (3 colheres de sopa)
piri-piri (a gosto)
1/2 limão
PREPARAÇÃO:
- Refogar em lume brando durante 10 minutos no azeite de dendê a cebola, os alhos, os pimentos e os tomates, mexendo com frequência para não pegar;
- Juntar os camarões cozidos previamente temperados com sal e sumo de limão, a salsa e os coentros e deixar apurar mais 5 minutos;
- Adicionar o leite de coco, mexer bem e cozinhar por mais 5 minutos;
-Acompanhar com arroz branco, salada a gosto ou legumes salteados e um vinho branco fresquíssimo...
Bon appétit
João Ratão
(Chef de Valmedo)