terça-feira, 31 de maio de 2022

"Florença" - Jean-Charles Forgeronne

 

 

ATÉ UM DIA... 


E aqui vou eu abalando de Florença com promessas de voltar, sinto uma comichão no nariz e ele parece-me maior, imaginação minha tento convencer-me mas depois sinto algo a mexer dentro do bolso do casaco e de lá tiro o meu Pinocchio de madeira, tal como a marioneta original imaginada aqui pelo florentino Carlo Collodi e parece que o oiço dizer: "Não prometas nada que não tenhas a certeza que podes cumprir, ainda te cresce o nariz!"...



Mas depois pensei que ainda que me crescesse o nariz poderia sempre cá voltar, afinal fiz a minha prece junto da Fontana del  Porcellino, passei a mão pelo javali de bronze e dizem a lenda e os entendidos que é sinal de que assim voltaremos a Florença...  Até breve, então...



João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

"Mundo-cão" - Florença

 Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

 

O MALUQUINHO CAÇADOR DE SINAIS


Cheguei ao hotel cansado mas não descansei enquanto não desvendasse aquele mistério dos sinais, teria que haver uma explicação e foi fácil de encontrar, bastou uma singela pesquisa googliana com FLORENÇA, sinais de trânsito e arte et voilá: CLET ABRAHAM

Pintor e escultor francês, nascido na Bretanha e estudos feitos na Escola de Belas Artes de Rennes iniciou o seu percurso mudando-se para Roma para restaurar móveis antigos ao mesmo tempo que ia pintando e esculpindo. Almejou depois enorme sucesso ao expôr para várias galerias italianas e francesas e abastecendo colecções particulares na Europa e América... E depois, estabelecido em Florença desde 2005 onde tem o seu estúdio e já artista de obra feita e reconhecida sentiu o apelo da rua e da vida quotidiana, houve um chamamento por parte da genuína arte popular, da criação que mexe com as pessoas, vai daí, surgiu-lhe a ideia de intervencionar os sinais de trânsito com criatividade e provocação mas sempre respeitando a sua função e a sua interpretação... Em cada sinal há uma mensagem, uma abertura à reflexão nem sempre compreendida e aceite pela sociedade, enquanto é benquisto em Florença por outro lado é odiado pela ultracatólica Roma, especialmente pelo seu Cristo Crucificado num sinal de fé sem saída... As suas obras subversivas mas benévolas também se encontram por Paris, Londres, Bruxelas, Milão, Nova Iorque ou Praia da  Areia Branca, por exemplo...

Certo é que na manhã seguinte pouco mais fiz do que procurar por entre os milhares de sinais de trânsito da cidade de Florença aqueles que estavam transformados em obras de arte, as pessoas olhavam e não entendiam, outras abanavam a cabeça e algumas mesmo, vendo-me a disparar a câmara para um sinal eleito riam-se deste maluquinho que não resistiu a coleccionar de entre muitos outros estes maravilhosos postais ilustrados...
















Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

 

A ARTE DE LER BEM OS SINAIS!



"Palazzo Pitti" - Jean-Charles Forgeronne


Ali estávamos nós, sentados como adolescentes despreocupados no terreiro defronte do Palazzo Pitti, agora que o céu abrira por milagre, abandonados àquela sensação de bem-estar depois de um surpreendente e belo repasto no Dr. Ink, observando as hordas de turistas passando diante de nós, outras entrando e outras saindo do museu do palácio que alberga obras ímpares, o sol embora fraco ia atordoando a face e eis que abrindo os olhos reparo por instinto num pequeno pormenor... "Que raio, que é aquilo?" - perguntei para uma Nana de olhos fechados e anestesiada pelo calor dos breves raios de sol. Ali mesmo em frente, na esquina de uma ruela, um sinal de trânsito peculiar, alguém com rebelde imaginação desafiara os cânones da arte florentina, pensei... Aproximei-me, deleitado e de câmara pronta a disparar, que delícia, pensei, tenho que enviar isto para o Andarilho, amigo e comunista dos oito costados...



E a coisa ali teria morrido e sido enterrada com o epitáfio de uma mera curiosidade se no passeio de volta até ao centro histórico, transposta novamente a Ponte Vechia e depois de muita volta, não tivesse eu já lusco-fusco encarado com outro curioso sinal... "Isto não pode ser coincidência!" disse para mim mesmo e olhando para trás para a Nana que se ia entretendo com aquelas praças e edifícios  medievais exclamei: "Já viste, outro!"...



E logo a seguir, bastava olhar com atenção para os sinais, outro:



"Espera lá!" - exclamei para mim próprio, já vi isto em qualquer lado, algo estava a brotar agora das minhas memórias mais profundas e recalcadas, adormecidas talvez há séculos, isto é um padrão... Já tinha lido algo sobre um controverso e subversivo artista que transformava os sinais de trânsito em icónicas obras de arte... 


João Plástico

(Artista de Valmedo)

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XVI


HAVERÁ MELHOR PIZZA EM FLORENÇA?



Chegámos ao doutor tinta por acaso, sem plano nem expectativa, havíamos descido a colina depois de visitar o miradouro da Piazza Michelangelo e o Giardino dell'Iris e andávamos às voltas pela zona de Oltrarno, que é como quem diz a zona da cidade que fica para "além do Arno", bairro mais residencial e menos turístico do que o centro do outro lado da Ponte Vechia, continuava a borriçar, as pernas ansiavam por descanso e, por ser hora de almoço mas também porque o croissant e o café americano matinais já há muito tinham sido digeridos, o estomago pedia conforto e foi então que numa tranquila rua por detrás da Igreja do Espírito Santo me senti atraído pelo DR. INK, qual albergue de almas perdidas e famintas, singelo estabelecimento com apenas uma dúzia de pequenas mesas espalhadas por dois pisos, um balcão a anunciar cerveja fresca do barril e uma cozinha entreaberta donde escapavam cheiros toscanos... E porque entretanto aumentara a intensidade da chuva molha-tolos saiu-me o habitual "que tal aqui?", "tem um ar simpático e olha o preço, nem que não seja nada do outro mundo pelo menos uma pizza marcha!", "vamos entrar?" e assim entramos... Éramos os únicos clientes àquela hora e fomos atendidos pela única viv'alma que por ali vimos, uma bela e jovem florentina, ainda para mais simpática e sorridente e que comunicava num escorreito inglês, duas cervejas para começar enquanto se escolhia do menú o que haveria de ser...

Estava eu de carta na mão, indeciso ainda, a dizer em voz alta para que nunca o esquecesse o nome da casa, "Dr. Ink", quando se abeirou a jovem florentina e tendo-me ouvido esclareceu: "You see, Dr. Ink means Drink!" E a mim, que adoro trocadilhos mas que não sei como dizê-lo em inglês e que não tinha reparado até então neste, apenas me ocorreu "Oh, I see, good, I like it!"... Ela sorriu e vieram então mais duas cervejas, se é para drink é para drink, uma salada e uma pizza, a primeira para desenjoar das pastas que já tínhamos no curriculum e a segunda para fazer jus ao menu do dia... A salada, de várias alfaces e rúculas, cogumelos e um legume irreconhecível para um turista lusitano vinha com queijo às lascas e tomate seco, uma delícia, mas o que mais surpreendeu foi a pizza de uma massa fina e cozida no ponto recheada com prosciutto, salame e outros enchidos sustentados por um picante delicioso, insinuante sem ser agressivo...   É raro mas por vezes acontece, seja instinto ou não, sorte talvez, mas não havia outro sítio onde queríamos estar àquela hora, "Haverá melhor pizza em Florença do que esta?", desabafei... Não, não havia, pelo menos naquele momento! A rua, vista dali, parecia agora menos cinzenta porque a chuvinha parara, a tarde ainda se haveria de compor, pensei...




João Ratão

(Chef de Valmedo)



"Algures em OltrarnoFlorença", Artista desconhecido - Jean-Charles Forgeronne


domingo, 29 de maio de 2022

 

IL GIARDINO DELL'IRIS


Atravessa-se a Ponte Vechia, espreita-se o rio sereno e encara-se o monte ao longe, a caminhada adivinha-se exigente mas desafia-nos a promessa da recompensa... Chegados à Piazzale Michelangelo falta-nos o ar, a vista mais privilegiada sobre a cidade é de facto arrebatadora, não admira que seja estampada até à exaustão nos postais turísticos, entretanto olhamos com reverência para o grande David de bronze que copia o original de mármore esculpido pelo grande mestre, deambulamos por entre as tendas dos vendedores ambulantes de recordações turísticas, ignoramos a chuva suave e intermitente, damos uma última olhadela á cidade lá em baixo espraiada e uma veneta nos assoma, vamos sair por aquela banda que desta já viemos e então, do nada, repara-se numa placa que facilmente passará despercebida às frenéticas hordes turísticas a anunciar que ali em baixo, em plena colina, nos espera Il Giardino dell'Iris, que é como quem lê italiano, "O Jardim dos Lírios"... 


"Maio florido"

Quando em 59 a.C os Romanos fundaram sobre um antigo povoado etrusco uma cidade deram-lhe o nome de FLORENTIA (a florescente, em flor...) já que corria o mês de Maio e todo este vale do Arno e colinas ao redor estavam espontaneamente coloridos por mantos de lírios exuberantes, brilhantes nas suas cores violeta, azul, amarelo, branco... Não admira pois que o lírio tenha sido escolhido para símbolo da cidade vai para mais de 1000 anos...


"Iris germanicca"

O lírio esteve até presente na disputa pelo poder em Florença por parte das duas facções políticas e económicas, de um lado os gibelinos, cujo símbolo era uma flor-de-lis branca sobre fundo vermelho e do outro os guelfos, que acabaram por sair vencedores e que inverteram as cores em 1251, passando a ser emblema da cidade o lírio vermelho sobre fundo branco e que se mantém até hoje... Por curiosidade apenas, o grande Dante foi condenado ao exílio eterno porque era gibelino...




Hoje o lírio impera por toda a cidade, até no símbolo da FIORENTINA, clube mítico da cidade e conhecida como a equipa viola, que é como quem diz violeta, alusão ao lírio roxo... E quem se perde pela Piazza della Signora ainda encontra por lá o célebre marzocco, um escudo com o florentino lírio segurado por um leão, símbolo do poder popular que orgulhava tanto os habitantes da cidade dados ao luxo que se recuássemos até 1250 ouviríamos os rugidos dos 24 leões expostos em jaulas junto ao palazzo...  


"Il marzocco"




(Fotos de Jean-Charles Forgeronne)    


João Palmilha

(Viajante de Valmedo)                                      

quinta-feira, 26 de maio de 2022

"O Homem Comum" - Clet AbrahamFlorença 

Jean-Charles Forgeronne

(Fotógrafo de Valmedo)

quarta-feira, 25 de maio de 2022

 

ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - VIII


O INFERNAL DANTE...


Nunca houve título de uma obra tão glorioso e feliz como "A Divina Comédia" do visionário e exaltado DANTE e já passaram mais de sete séculos neste mundo-cão que cada vez mais parece uma comédia criada por deuses perversos... Em FLORENÇA, esse belo berço do renascimento cultural da humanidade e destino de qualquer amante da arte que se preze, viaja-se pela história à procura de um sentido para a existência, por entre riquezas e misérias humanas, afinal a comédia poderá não acabar no paraíso e nunca ter um fim... Enfim, poderemos sempre viajar com Dante pelo inferno e pelo purgatório guiados por Virgílio, poeta romano e sua maior inspiração, e também pelo paraíso agora conduzidos por Beatriz, a musa e amada do nosso poeta... E nesta fantástica viagem não estaremos todos nós agora em pleno Inferno? Eis a questão que me caiu mesmo agora do estrelado céu toscano... 



"DANTE" - Florença, Jean-Charles Forgeronne


Mas enquanto deambula pela magnífica cidade pejada de turistas o paciente viajante acabará por parar defronte da Basílica Santa Croce, conhecida como o panteão de Florença porque aí e entre centenas de ilustres sepultamentos repousam Miguel Ângelo, Galileu ou Maquiavel, por exemplo... Apenas uma estátua impera cá fora na praça, a de DANTE! O poeta dos poetas e percursor da moderna língua italiana também poderia estar lá dentro mas repousa eternamente em Ravenna, local da sua morte após 20 anos de exílio decretado por razões políticas e durante esse tempo nunca voltou à sua amada Florença porque, singelo pormenor histórico, se o fizesse seria imediatamente queimado vivo...  


João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

"Ponte Vechia" - Florença - Jean-Charles Forgeronne 

 


O MISTÉRIO DA CÚPULA IMPOSSÍVEL


Não há volta a dar quando se pensa ou se está em FLORENÇA, a primeira ideia e imagem que vêm à cabeça são as da famosa cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, simplesmente uma das maiores obras arquitectónicas da história da humanidade... A catedral foi sendo construída durante 140 anos, de 1296 a 1436, mas na realidade e como a vemos hoje demorou seis séculos a ficar concluída por entre obras decorativas e outras estruturais e pelo caminho foram ficando os seus principais responsáveis como Cambio ou Giotto, o primeiro o projectista inicial do templo e o segundo a personalidade artística mais importante do seu tempo... Giotto, pintor, escultor e por força das circunstâncias também arquitecto, só supervisionou a obra durante três anos mas ainda teve tempo para projectar o fabuloso campanário.



"Il Duomo" - Jean-Charles Forgeronne

 

Para o final da construção da fabulosa obra ficou o grande problema, como fechar o enorme buraco a 55 metros do chão e com 45 metros de diâmetro? Vai dai abriu-se um concurso público cujo vencedor foi BRUNELLECHI, escultor e arquitecto florentino que meteu mãos à obra para construir aquela que era considerada uma obra impossível pelas leis da matemática e da gravidade e que é ainda hoje a maior cúpula de alvenaria do mundo! Durante séculos, e porque Brunellechi não deixou desenhos ou qualquer detalhe do projecto, matemáticos, cientistas e curiosos estudaram e investigaram ao pormenor a construção sem descobrir os seus segredos, como raio aquela cúpula que sobe até aos 114 metros de altura e feita de 4 milhões de tijolos e com um peso de 29000 toneladas se aguentou lá no alto, ainda para mais construída sem andaimes e sem o auxílio de suportes de madeira ou de ferro? Hoje sabe-se que o segredo reside na magistral e engenhosa distribuição da carga da distribuição por toda a circunferência... 



"O campanário de Giotto" - Jean-Charles Forgeronne

Quem chega à praça só lhe resta deixar-se deslumbrar pela maravilhosa tríade constituída pela Catedral, pelo Campanário e pelo Baptistério integralmente forrados a mármore branco, verde e vermelho... O interior dos monumentos com as suas obras de arte é outra história, outra surpresa que abre a boca de espanto...


João Palmilha

(Viajante de Valmedo)

quarta-feira, 18 de maio de 2022




E PORQUE HOJE É O DIA INTERNACIONAL DOS MUSEUS...


E onde se pode encontrar o primeiro museu a existir neste mundo-cão? Claro, em FLORENÇA, a capital do Renascimento, onde começou a maravilhosa evasão das trevas medievais... E tudo se deve à última representante da influente e poderosa dinastia Medici, Anna Maria Luisa, que em 1737 doou eternamente à cidade de Florença, "para ornamento do Estado, para a utilidade do público e para atrair a curiosidade dos forasteiros", hoje um enxame de turistas, todo o espólio da "GALLERIA degli UFFIZI" Cento e cinquenta seis anos antes, outro Medici, o grão-duque da Toscana Francisco I tinha instalado no terceiro andar dos Uffizi, que é como quem diz Ofícios e que era um complexo onde se concentrava os serviços das principais magistraturas da cidade e símbolo do seu poder absoluto, uma magnifica colecção particular de obras de arte, pinturas e esculturas dos maiores artistas da época e que apenas eram acessíveis aos seus hóspedes especiais na corte, fossem eles príncipes, embaixadores, reis ou papas...



"Galleria degli Uffizi", Florença - Jean-Charles Forgeronne

Hoje o museu alberga uma das maiores colecções de pintura italiana e europeia dos séculos XII a XVIII e onde figuram, por exemplo e entre outros, Miguel Ângelo, Giotto, Caravaggio, Botticceli, Da Vinci, Durer ou Rembrandt...  E quando o deslumbramento acaba e se sai do museu estamos à beira do Arno e da Ponte Vecchia...


"O Nascimento de Vénus" - Foto - Jean-Charles Forgeronne


João Plástico 

(Artista de Valmedo) 

 

HUMOR DESCONFINADO!


E depois, paralelamente ao "Livros a Oeste" mas que vai para além disso porque se estende até ao primeiro sábado de Junho, é pecado venial não ir à Galeria Municipal da Lourinhã ver e pensar a Exposição de Cartune Político "Diário de uma Quarentena em Risco", de NUNO SARAIVA, auto-apresentado como ilustrador lusitano com colaborações em toda a imprensa nacional à excepção do Diário da República, do Borda d'Água e do Correio da Manhã...



Fruto de um exílio auto-imposto e não decretado pelo filho-da-puta do vírus, Nuno Saraiva aborda a política, a economia e a sociedade emanadas da pandemia...



João Tonteria

(Humorista de Valmedo)


MANUAL PRÁTICO PARA EMOÇÕES FORTES 


E o 10º Festival Literário LIVROS A OESTE terminou da melhor maneira e com emoções muito fortes num auditório bem composto e a vibrar com o poder de expressão e comunicação de NAPOLEÃO MIRA, alentejano de Castro Verde, jornalista, poeta, escritor e especialmente um declamador de poesia que veio até à Lourinhã apresentar o seu espectáculo "Manual Prático para Emoções Fortes", uma mágica simbiose entre a palavra, a imagem e a música... E depois de tudo o que foi dito falta dizer que foi uma bela homenagem ao Alentejo, aos seus poetas, aos seus cantadores populares e aos seus heróis... E claro, também a Fernando Pessoa...

  


Mas Napoleão não veio sozinho, trouxe companheiros de largas aventuras, das suas colaborações na voadora grafonola, por exemplo, lá estiveram o Rafael Correia no debitar do som, a Mariana Correia, já conhecida como a menina do violoncelo e pés nus, e especialmente Luís Galrito, músico e cantautor também ele alentejano de Reguengos de Monsaraz e já com nobre obra própria editada...




E Luís Galrito, numa bela homenagem ao Zeca Afonso numa estarrecedora interpretação de "Cantar Alentejano", chamada aqui apenas de "Catarina", arrasou a plateia com uma voz poderosíssima, parecia que era o Zeca que estava a cantar! E se não era ele então o seu espírito pairava ali no Auditório da AMAL, tive a certeza disso quando olhei para o lado e vi o meu amigo Andarilho sem jeito, para além de emocionado, extasiado... 


J.C

(Poeta de Valmedo)

segunda-feira, 16 de maio de 2022

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXIX


VERGONHAÇAS E REMORSOS... 


Que vergonha, melhor dito, uma vergonhaça, pensei para mim enquanto me deixava escorregar pela cadeira do auditório abaixo numa ridícula tentativa de desaparecer num mágico fumo de ilusionista, seria eu a única alminha ali presente naquela sessão dos "Livros a Oeste" que, vá lá saber-se porquê,  não tinha lido o fabuloso romance de estreia de Valter Hugo Mãe que foi galardoado com o Prémio José Saramago... Todos reconheciam a genialidade em "O remorso de baltazar serapião", até o próprio Saramago que prefaciou a obra e onde afirmou categoricamente que aquele livro era um tsunami! Um marco fundamental na literatura portuguesa contemporânea, todos juravam e mais juras não eram necessárias pois se até o mestre tinha ficado deslumbrado com a obra que melhor atestado de qualidade se poderia obter?

"Basta ler a primeira página, a primeira palavra, sentir a primeira respiração. É um livro diferente. A sensação que esta obra me dá, além do ímpeto arrasador e ao mesmo tempo construtor de algum elo, é a de estar a assistir a um novo parto da língua portuguesa, um nascimento de si mesma." (José Saramago)




E pronto, não dormi sossegado, na manhã seguinte bem cedo era eu o primeiro a entrar na Biblioteca Municipal da Lourinhã e com um único e desesperado intuito, requisitar o famigerado livro... E agora aqui estou sentado no rebordo de um muro antigo da Quinta do Prior, bafejado pela sombra de uma velha árvore e a este abençoado recanto não chega o barulho dos carros apressados ao virar da curva do caminho, aguardo que termine o transplante do pára-brisas do velhinho Corsa, operação delicada e com riscos mas que lhe pode dar mais um ou dois anos de vida e para passar as duas horas de espera devoro os últimos e breves capítulos da aventura do Serapião, esse homem que ao casar com a moça mais bonita da sua terra se deixou corromper até ao tutano pelo preconceito e pela machista tradição... Assim, contas feitas, precisei apenas de dois dias intermitentes para a integral leitura e, de facto, o romance é ainda um tsunami passada década e meia sobre o seu parto... Hoje sinto-me muito melhor, como alguém que ao corrigir um erro enorme do seu passado tivesse agora uma segunda oportunidade, conhecer a obra de uma grande escritor.


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

 

E VEIO O DIA DE SARAMAGO...


A tarde encalorou-se, (e sublinho propositadamente esta palavra inventada por mim e ilegal que não faz parte de qualquer dicionário da língua lusa porque acho que o mestre iria ficar tocado com isso, ele que era atreito à desmontagem do rígido cânone da gramática portuguesa) e trouxe à Biblioteca Municipal João Céu e Silva, jornalista de longa data e jovem romancista, autor duma interessante série de entrevistas biográficas intitulada  "Uma longa Viagem com..." e que vem viajando há uns anos com personagens como Álvaro Cunhal, Manuel Alegre, António Lobo Antunes ou Vasco Pulido Valente, por exemplo... E claro também fez uma longa viagem com o homenageado do dia, José Saramago, lembrando e festejando à priori o centenário do seu nascimento...






Mas também apareceu o Miguel Real, escritor, ensaísta e professor de filosofia e repetente nos "Livros a Oeste" e que já por aqui tinha passado em edições anteriores para discorrer sobre a teoria e os fundamentos do mal... Claro que com a intermediação do João Morales a coisa prometia e não desiludiu, conversa escorreita e muito interessante e que premiou os presentes com algumas pérolas, ficamos a saber, por delicioso exemplo, que João Céu e Silva foi escorraçado por um Saramago adoentado e com pouca paciência para entrevistas: "Homem, agora não, volte daqui a dez meses!" O Silva, que morava a apenas 150 metros do Nobel, pacientemente esperou e no exacto dia em que passavam os tais dez meses voltou a bater à porta de Saramago e então lá conseguiu a entrevista, mas foram precisos ainda mais dois anos de conversas aos bochechos... 





E depois ao serão fomos iluminados pelo erudito Guilherme D'Oliveira Martins e pelo simpático e mediático jornalista Carlos Vaz Marques com mais algumas pérolas sobre o nosso Nobel, sabiam que até aos dezoito anos de idade Saramago nunca teve um livro e que passava todas as horas que podia enfiado numa biblioteca pública a ler tudo o que valesse a pena? E que o que mais ressalta na sua caminhada é uma grande capacidade de aprendizagem com os mestres, aprendendo perguntando tudo a toda a gente, recusando a facilidade e desafiando o leitor ao limite, conquistando-o não pelo tema mas sim pela humanidade e pela palavra trabalhada como um ourives? E que a sua mais que polémica falta de pontuação, usando apenas pontos finais e vírgulas de quando em quando, serve para colocar na leitura apenas as pausas essenciais, uma leve ou uma longa, reproduzindo assim a oralidade das histórias alentejanas? "Os meus livros são para ser ouvidos", dizia...  


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)

quinta-feira, 12 de maio de 2022

 

LÍNGUAS E DESACORDOS ORTOGRÁFICOS...


É sempre bom rever o Sérgio Godinho e especialmente fora do palco musical, à beira de contar 77 primaveras o homem respira sabedoria e sente-se como peixe num oceano de letras, ele que não tem fronteiras no que toca a géneros de expressão nem quanto à idade daqueles com quem colabora, tanto se dá com outros artistas da sua geração como com a juventude rebelde... E depois ao falar do seu último livro de poemas, "Palavras São Imagens São Palavras", lançado em Novembro de 2021, ficou a plateia a saber que os poemas nele contidos se criaram a partir de imagens, entre os quais uma homenagem a Bernardo Sasseti...


"22 Oeste" - Jean-Charles Forgeronne

João Melo já o conhecíamos de outras paragens, romancista angolano, caluanda como gosta de se chamar, contista e ainda cronista nas páginas do Diário de Notícias, assume que faz da ironia e do sentido de humor a sua matriz de expressão e ainda bem que o faz, digo eu, farto de tantos autores sérios, formais e formatados... Parece que o João acabou de lançar um romance em que a principal personagem é um autor que só tinha um propósito de vida: escrever um romance! Tema demasiado simples e já recorrente? Talvez, mas com o humor e ironia dá-se-lhe a volta à maneira, leitura obrigatória para os próximos tempos.... 

E depois veio a surpresa da noite: Tony Tcheka, guineense erudito, jornalista e poeta que arrasou completamente o famigerado acordo ortográfico, em cujas reuniões participou, disse ele: "O acordo ortográfico está parado, é um nado-morto! Vale a pena? Não embarca nem desembarca..." Isto foi dito por alguém que nasceu num arquipélago com milhares de ilhas e onde se falam 36 (!) línguas, incluindo o português que era obrigatório quando ele frequentou a escola primária chamada Oliveira Salazar, nem de propósito... 


João Vírgula

(Leitor de Valmedo)