VÃO CHOVER FACAS E TESOURAS NO CASAL DA GAITA...
Aqui por Valmedo, também conhecido pelos mais antigos como Casal da Gaita porque há muito tempo ali em baixo viveu um velho e sábio tocador de gaita-de-beiços que passava a vida a lançar encantatórios acordes para o ar, o céu não anuncia chuva e de olhos fechados inspiro fundo, o almoço estava despachado e a sesta não pegou, uma leve brisa vinda do mar que me acaricia o rosto atenua os efeitos de um desgraçado turno da noite no hospital mais eis que, surgindo do nada e sem aviso, ouço o hipnotizador som daquela gaita como acontecia na minha ribatejana infância ou não fosse ele um som divino, afinal parece que PÃ, o deus cornudo dos bosques, das florestas, dos rebanhos e dos pastores tinha uma gaita igual e com a qual tocava melodias que encantavam as ninfas suas amadas e outras criaturas da natureza... Aproximei-me do muro e espreitei lá para fora, Pã estava sentado na motoreta tocando a sua gaita e olhando em redor:
-Viva! - disse eu, sem cerimónias e mostrando a palma da mão levantada em sinal de paz...
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Rafael, o Amolador |
E o deus falou e disse... Chama-se ele Rafael, nome de artista renascentista, nasceu em Peniche, mora em Vale Covo, tem casa em Ribafria e faz esta volta pelo Oeste uma vez por mês, mais ou menos, e o seu ofício de amolador foi herdado do pai... E sim, para além de facas e tesouras e de outro qualquer instrumento de corte também conserta loiça, mas menos porque agora ninguém aproveita os cacos! E veio-me à lembrança outros amoladores de outrora que colavam os pratos partidos com agrafos...
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A gaita de Pã |
E a gaita, onde arranja essa coisa tão especial?
- Oh! Quase em lado nenhum, tenho que a ir comprar a Lisboa, já ninguém faz isto... E agora é tudo de plástico! Nada de canas como antigamente...
- Então fica combinado, da próxima vez que passar por aqui terei aqui umas facas e outras coisas para afiar, certo?
- Até lá então... - e antes de dar ao pé para arrancar com a motoreta levou a gaita aos beiços em sinal de despedida... Aguardou uns segundos, ninguém deu sinal e lá arrancou até à próxima paragem, talvez no Toxofal...
E umas gotas de água vindas sabe-se lá de onde caiem-me na testa, afinal quando o amolador passa a chuva não tarda, dantes se dizia, pelos vistos com sabedoria...
João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)