LIVROS 5 ESTRELAS - VI
AS MEMÓRIAS NÃO SE MEDEM...
"À aldeia chamam-lhe AZINHAGA, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o ALMONDA, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o TEJO, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada."
Assim começou JOSÉ SARAMAGO "As Pequenas Memórias", que de pequeno nada têm, antes pelo contrário são grandes em tudo, na genuinidade, no relato social, no carácter histórico, nos afectos... O título da obra assim ficou porque são memórias de quando foi pequeno mas, numa primeira instância, o autor teve a tentação de chamar a essas lembranças "O Livro das Tentações".
Interrogo-me: que livro de Saramago não é 5 estrelas? Porque escolhi este? O leitor merece a resposta: tal como Saramago, embora décadas mais tarde, também fui marcado pelo Almonda, pelo Ribatejo, pelas pessoas humildes que tudo fizeram e ainda fazem para sobreviver a uma miséria congénita, pela dignidade, pelo sonho...
Mas o que mais me liga a esta obra extraordinária é a coragem, a coragem de alguém que, de livre arbítrio, se abre ao mundo nas suas fragilidades e nas suas misérias (que muitos outros esconderiam por vergonha ou outra qualquer razão) mas de peito aberto e ufano; estas pequenas grandes memórias estão pejadas de deliciosos incidentes e histórias, desde os medos mais profundos, às primeiras aventuras namoradeiras, ao deslumbramento pelo mundo, aos desejos mais secretos, de tudo um pouco por ali desagua... Este prémio Nobel, desassombradamente, por exemplo recorda noites em que dormiu no chão e as baratas lhe passavem por cima, lembra que matou a fome com pão de milho bolorento ou que ainda se embasbacou com o bácoro mais mimoso que os avós iam buscar à pocilga para se aquecerem nele na cama de família quando o frio era tanto que a água dos cântaros gelava dentro de casa... E depois, tal qual Saramago, também, enquanto pequeno moço, desfrutei da liberdade da descoberta, sair porta fora sem limites nem exigências, beber o horizonte até onde fosse possível, pelos restolhos, pelos ribeiros, pelas árvores, pelos poços, pelo rio...
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Fundação Saramago - Azinhaga |
"Então digo à minha avó: «Avó, vou dar por aí uma volta.» Ela diz «Vai, vai», mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio para o campo. Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direcção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paúl do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso."
O rio de Saramago também foi o meu rio, a paisagem também era a minha, a infância também se assemelha em deslumbramento, vidas à parte, estas também são memórias minhas, eu também sou saramago, alcunha que virou gente grande, memórias cinco estrelas...
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Almonda - Paúl do Boquilobo |
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)