A MALDIÇÃO DO QUADRO
Endireitou a placa onde se lia "VENDE-SE" e enquanto agarrava na maçaneta iluminada pelo foco da lanterna de bolso e se preparava para o derradeiro empurrão na porta voltou a sentir aquele arrepio gelado que tão bem conhecia desde criança. E como sempre acontecia naquelas ocasiões sentiu-se suspenso, todo o seu corpo parou, músculos, tendões e nervos ficaram paralisados, apenas o coração se agitava parecendo querer saltar do peito e fugir dali a sete pés. Quanto tempo iria durar? interrogou-se, se fosse como da última vez seria breve mas como nunca era igual não valia a pena pensar nisso e só lhe restava esperar que a viagem terminasse, já seria bom que não fosse daquelas piores que lhe pareciam uma eternidade. A verdade é que ele perdia a noção do tempo e do espaço, passava a outra dimensão e tinha a consciência que pouco podia fazer em relação a esse processo, via, ouvia, sentia e apercebia-se do que ia acontecer no instante seguinte mas nada podia fazer para mudar o curso dos acontecimentos, mantinha-se apenas um espectador da realidade que conhecia de antemão. Dejá-vu para uns, apenas uma partida do cérebro para outros, para ele era uma viagem ao outro mundo como lhe tinha chamado aquela senhora que um dia lhe leu o destino nas linhas da mão e lhe tinha mudado a maneira de ver o mundo visível. O outro, o invisível, só ao alcance de alguns, também lhe batia à porta por vezes e aí estava ele de novo a mostrar-se. Você tem um dom, menino! tinha-lhe dito a vidente, se o trabalhar pode comunicar com o além... Mas ele nunca se preocupou em aprofundar o tal dom, não sentia tanta curiosidade assim pelo outro mundo e limitava-se a ultrapassar todas aquelas estranhas experiências e de tal forma se tornaram frequentes que se habituou a viver com elas e começou a entendê-las como sinais de que o seu percurso e as opções de vida que tomara o teriam que ter conduzido inevitavelmente até àquele momento.
Agora não podes vacilar, pensou ele ouvir a sua própria voz, mas era só um pensamento porque os seus lábios não se tinham mexido, esta pode não ser a última vez mas é a mais importante, tens que acabar com isto!
E então ouviu um ruído, o inconfundível som dos passos de alguém a aproximar-se e instantes antes de acontecer soube que alguém iria assomar à esquina da casa, e o vulto, surpreendido, ficou imóvel por momentos antes de se lançar numa corrida louca até ao muro, o qual saltou com uma agilidade estonteante mas depois tudo acabou de repente, silêncio absoluto... Nada mais se ouviu, nada mais aconteceu...
Está a passar, de volta ao normal, pensou, já conseguia mover as mãos, voltou a sentir o peso do corpo sobre as pernas e até a consciência do universo chegava até ele reflectida no céu estrelado de Outubro... Havia um luar tímido, fosco mas o suficiente para ver para além do halo de luz da lanterna e assim pôde vislumbrar algo que o intruso tinha deixado para trás. Aproximou-se e ficou estarrecido ao verificar que o que tinha ali a seus pés era exactamente aquilo que o tinha trazido com tanta urgência até ali: O MENINO DA LÁGRIMA....Impossível, só pode ser uma brincadeira.... devo estar a sonhar...
E então ouviu algo que levou instintivamente a sua mão direita ao bolso das calças em busca do telefone, era o som inconfundível da Badinerie, embora difusa e distorcida pela electrónica... Não, não era o seu telemóvel que estava a tocar, claro que não era, agora que se concentrara um pouco mais era evidente que o som vinha do lado de lá do muro. Empoleirou-se com algum esforço e apontou a lanterna, ali mesmo à beira da estrada, deitado de bruços e imóvel estava o corpo de um homem cujo único sinal de vida era a harmonia de Bach que parecia sair das suas entranhas. Saltou para o outro lado e então viu uma poça de sangue que alastrava a partir da cabeça que embatera numa pedra pontiaguda. Baixou-se e colocou o indicador no pescoço do homem para sentir a pulsação mas não sentiu nada, estava morto. Raios, e agora? Foi então que olhou com mais atenção e teve a sensação de que conhecia aquela cara de qualquer lado mas não conseguiu perceber de onde nem quando já a tinha visto. Estranho, pensou, de onde apareceu este calhau?, não havia mais nenhuma pedra na berma que separava o muro da estrada e era capaz de jurar que quando chegara não havia ali nenhuma pedra. Depois de uns segundos de indecisão, aspirou fundo o ar frio da noite que caía e reentrou na propriedade, e foi quando se agachou para agarrar no quadro é que reparou que afinal não era apenas um quadro mas sim dois, ali estava também outro, aquele da paisagem bucólica com um rio, uma ponte e uma floresta que parecia guardar mil segredos e que sempre tinha estado na sala de jantar. Pegou neste e lançou-o para o outro lado do muro, assim, quando alguém na manhã seguinte descobrisse o cadáver e chamasse a polícia encontraria o móbil do roubo e concluiria que o ladrão desgraçado tivera apenas um azar do caraças na fuga ao aterrar naquela pedra pontiaguda. Dali conseguia ver agora a janela arrombada do quarto que tinha sido seu durante metade da sua vida mas se ali tinha chegado com a intenção de visitar pela última vez a casa abandonada agora limitou-se a agarrar no Menino da Lágrima, a recolher a chave que ainda pendia da fechadura por abrir e a dirigir-se para o carro... Embora o mais depressa possível, missão cumprida...
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Giovanni Bragolin |
Percorreu meia dúzia de quilómetros e encostou o carro num estradão que dava para um parque de merendas, não aguentava mais, tinha de se certificar, pegou no quadro, colocou-o bem à frente dos olhos e apontou a lanterna para o canto inferior esquerdo, para o braço da criança.... Afinal era verdade... embora dissimulado lá estava bem visível o rosto do velho de barbas e do qual ele recebia um olhar penetrante que o gelava de alto a baixo apesar de não lhe conseguir ver os olhos, tal como sentira há muitos anos atrás.. Num longínquo dia dos anos 70, quando a família se tinha instalado na casa nova, mudara-se tudo mas a principal novidade para ele tinha sido o Menino da Lágrima que surgira pendurado sobre a cabeceira da sua cama, até hoje. Durante anos aquela pintura fizera-lhe companhia mas só agora, passadas décadas, se apercebera da realidade macabra que lhe estava associada e que influenciava ainda a sua existência, disso estava agora convencido. As mãos tremiam-lhe ao imaginar o quanto a sua vida teria sido diferente para melhor se aquele quadro nunca tivesse entrado no seu quarto. E naquele preciso momento teve a confirmação disso mesmo, olhando com mais atenção para o rosto reconheceu-o, era o mesmíssimo rosto que lhe aparecera pouco tempo depois de o quadro ter sido pendurado na parede, acordara uma noite com uma sensação estranha de fria imobilidade e apercebera-se de uma presença aos pés dama, um vulto dissimulado pela escuridão do quarto e a única coisa nítida que conseguira enxergar era aquela cara, a barba branca inconfundível e aqueles olhos assustadores. Tentara chamar pela mãe mas a sua boca recusara-se a fazer qualquer som, tentara mexer-se mas o seu corpo estava rígido e colado à cama, não tivera a noção de quanto durara aquela experiência e deve ter adormecido rapidamente porque quando acordara na manhã seguinte a aparição esfumara-se e tudo parecia normal, convencera-se então de que tudo não tinha passado de um sonho. Mas agora, neste preciso momento, soube que o quadro estava vivo, o velho descera e deambulara pelo quarto e quantas vezes mais isso teria acontecido era coisa impossível de saber... Queimo-te já aqui ou espero até chegar a casa? ouviu-se dizer para o velho. Estava apenas a duas horas de viagem e o mais difícil já estava feito, ligou a ignição, iniciou a marcha e os seus pensamentos foram todos para o pintor e para aquilo que descobrira sobre ele nos últimos dias. Tudo começara com um artigo que lera numa revista há uma semana atrás, BRAGOLIN , segundo a lenda, tinha sido um desconhecido pintor italiano do pós guerra até que farto do insucesso (ainda não vendera um único quadro em toda a sua carreira) decidiu alcançar a fama fazendo um pacto com o diabo em que nunca mais retrataria uma criança com ar feliz!. Pintou então uma série de 27 quadros conhecidos como os MENINOS CHOROSOS, escondendo mensagens subliminares que traziam a desgraça aos donos dos quadros, chegaram mesmo alguns estudiosos das pinturas a jurar que as obras retratavam crianças torturadas e mortas. O que é certo é que o sucesso foi tanto que foram feitas milhares e milhares de reproduções pelo mundo inteiro durante as décadas de 70 e 80, quase não havia um lar sem um menino a verter lágrima...
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Jornal The Sun |
Também na Inglaterra correu o rumor que, numa longa série de incêndios misteriosos que ali ocorreram, aqueles quadros satânicos eram os únicos objectos que não ardiam. Daí até à histeria colectiva foi um pequeno passo e fizeram-se grandes queimas públicas dos meninos chorosos. Até o pintor, arrependido do mal que as suas obras espalhavam, implorou aos proprietários que as destruíssem todas para evitar sérias desgraças. Bragolin morreria em 1981 levando o pacto mefistofélico consigo para o além mas as maldições ficariam por cá...
E agora tudo se tornara claro, todas as desgraças que lhe invadiram a vida tinham sido emanadas por aquele quadro maldito que agora viajava ali ao seu lado... A desgraça que assolara a família, o acidente em que vira o seu melhor amigo morrer, o filho que não chegara a ver a luz deste mundo, o infortúnio nos amores, o emprego que detestava, até a lotaria que lhe escapara por uma nesga tudo isso era obra deste quadro diabólico. A felicidade sempre a escapar-lhe por um triz... Sempre estive amaldiçoado, está na hora de me libertar finalmente... Pena ter estado tantos anos na ignorância! lamentou-se. Olhou de soslaio para o quadro e sentiu tanto ódio que demorou a perceber que o barulho que lhe chegava aos ouvidos eram os seus dentes a ranger... Falta pouco....
De repente sentiu as mãos enclavinhadas no volante e o pé pesado sobre o acelerador, tentou movê-los mas era maior a força da gravidade, o habitual arrepio gelado cruzou-lhe as costas e então soube o futuro escondido na curva que se aproximava, ainda que forçando o volante com quanta energia lhe restava viu o carro galgar a ponte e mergulhar no rio. Enquanto o carro submergia lentamente tentou abrir a porta do seu lado mas a força da água não deixava e foi a muito custo que conseguiu premir os botões dos elevadores dos vidros das portas mas o único que baixou um pouco foi o do lado do pendura permitindo que naquele remoínho de água o quadro do menino choroso desaparecesse com a corrente...
E ali estava, numa agonia tranquila porque não sentia nada a não ser duas lágrimas rebeldes que lhe escaparam dos olhos para a face. Não pode ser... Impossível... A última visão do futuro que teve foi o quadro revoluteando à frente do pára-brisas, iluminado pela luz já fraca dos faróis ainda ligados, só que a imagem tinha-se transformado, em vez do seu bem conhecido menino choroso estava outro menino retratado, tinha este longos caracóis, uns tristes olhos esverdeados e uma cara que lhe era bem familiar, era a sua, tal como aquela fotografia que lhe haviam tirado ainda menino na feira de Março, vestido ainda com a indumentária daquele Carnaval, há muito, muito tempo....
J.C