sexta-feira, 8 de novembro de 2019


O MISTÉRIO DO CAMINHO DAS CEZAREDAS



Outra! O caminhante que cedo se aventurou pelos caminhos de chão que ladeiam as Cezaredas e que levam ao Pó ou ao Reguengo deteve-se novamente e acocorou-se com algum sacrifício para observar de perto outro bicho esmagado... Levantou-se a custo, limpou o suor da testa com a manga do corta-vento e coçando a cabeça olhou para o alto de onde lhe chegava o silvo do ar a ser cortado pelas enormes hélices do moinho, que raio era aquilo, um suicídio colectivo como o das baleias que de tempos a tempos dão à praia? Era estranho, era para aí a sexta ou sétima SALAMANDRA que encontrava esborrachada na berma do estradão e sempre do mesmo lado e à mesma distância da berma, parecia que se tinham deixado ficar ali propositadamente à espera que os raros veículos que por ali transitam lhes passassem por cima! Que outra explicação haveria, teria sido tamanha a coincidência para que todos aqueles bichos fossem atropelados ao mesmo tempo, ou seriam aqueles os infelizes de entre dezenas ou centenas que conseguiram chegar a salvo ao outro lado? O aventureiro sorriu ao imaginar o espectáculo: milhares de salamandras a invadir a estrada escura e um condutor em pânico ao ver todos aqueles anfíbios iluminados pelos faróis e a acelerar desalmadamente para fugir daquele cenário demoníaco!
Ainda lhe faltava metade do caminho para fazer mas quedou-se ali uns minutos, sentia-se um absoluto ignorante, notava agora que pouco ou nada sabia acerca das salamandras e que apenas tinha a ideia de que eram animais anfíbios e enquanto observava as manchas amarelas daquele cadáver decidiu que não passaria daquele dia, quando terminasse a exploração pelo planalto iria consultar os atlas que tinha lá por casa e que já não consultava há muito, iria descobrir o mundo das salamandras!




Ao contrário dos seus primos rãs e sapos que possuem orgãos respiratórios complexos, a salamandra de pintas amarelas possui pulmões rudimentares e por isso vê-se obrigada a complementar as trocas gasosas através da pele, a qual se deve manter sempre húmida e daí os seus hábitos de vida serem fundamentalmente  nocturnos... A melhor altura para as encontrar é ao anoitecer ou após grandes chuvadas e nessas ocasiões é vê-las a sair debaixo de pedras, de fendas nos troncos ou dos buracos de toupeiras... A salamandra é um animal carnívoro e tem preferência por insectos como o escaravelho, a formiga, a mosca e o mosquito, não desprezando outros invertebrados como o caracol, a lesma e até aranhas e todos eles engolidos num ápice depois de caçados com a sua língua comprida e retráctil de almofada pegajosa na ponta que se cola à presa.

"Salamandra de Fogo" - João Plástico

E então, ao final do dia, enquanto as salamandras se preparam para sair à aventura  pelo planalto das Cezaredas, o nosso caminhante aventureiro, já no quentinho do lar e à beira da salamandra de ferro que ia debitando calor, solucionou o mistério que envolvia aquela mortandade salamandrina que o apoquentava desde essa manhã: é precisamente nesta época outonal que as salamandras estão mais activas, saem elas dos seus abrigos em caminhada lenta para poupar energia com um objectivo ao qual o impulso da natureza as obriga: acasalamento! E frequentemente os machos, já de si lentos e amiúde pouco espertos, ficam parados de cabeça ao alto em busca do odor das fêmeas, alienados de tudo o resto e é precisamente nessa altura que correm mais riscos de atropelamento, nem com buzinadelas ou sinais de luzes escapam, afinal não tinha sido um suicídio colectivo, tinha sido um suicídio sexual!




E aqueles machos que tiveram a sorte de atravessar o caminho em boa hora e conseguiram acasalar poderão ainda viver muitas mais aventuras, é que a sua longevidade pode chegar aos trinta ou mais anos, havendo casos noutras espécies de salamandra em que foram atingidas cinco décadas e meia de vida! Quanto às fêmeas, depois do feliz encontro amoroso, irão encontrar um charco onde dão à luz cerca de 20 a 40 larvas que aí, nas águas tranquilas, se irão desenvolver até ao estado adulto, essas mesmas salamandras que para o ano o nosso caminhante encontrará algures num caminho...

João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)

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