A NATUREZA ESTÁ MESMO A PEDI-LAS!
Pois é, nestes dias conturbados que correm e para quem de sentidos apurados se vai aventurando por secretos caminhos e velhos trilhos de séculos torna-se evidente que a natureza, à semelhança da humanidade, apesar da evidente saúde física mostra preocupantes sinais de depressão, prova de que nem tudo vai bem no reino vegetal... De facto, aproveitando o lento mas definitivo desaparecimento das mãos cuidadoras dos nossos velhinhos que ora se vão finando ora se vão ficando sem forças para a luta e sem ninguém que lhes tome o lugar e a obra, novos rebentos conquistam antigas hortas e áreas outrora cultivadas, silvas e mato transpõem carreiros e fronteiras, marcos e poços são engolidos pela frenética ânsia de expansão da vegetação que parece querer fazer pouco das ancestrais e orgulhosas manias de posse e divisão administrativa de pequenos pedaços de terreno...
![]() |
O medronheiro desapareceu... |
![]() |
Abrunhos a pedi-las... |
Há dias voltei saudosamente a correr por caminhos que não calcorreava há uns bons anos e a coisa tornou-se ao mesmo tempo bela e deprimente, se por um lado pequenas plantas, flores e arbustos invadem tudo arrepiando caminhos e embelezando o horizonte, por outro silvestres jardins e seculares árvores de fruto vão secando e sucumbindo a eito, sem dó nem piedade... É que eu ainda sou do tempo do tradicional e venturoso resgate da fruta, chamar-lhe roubo era uma heresia porque nós não passávamos de um bando de gaiatos selvagens que apenas zelava à boa maneira do Robin dos Bosques pela harmonia do campo e tínhamos até um inviolável código honra e conduta, nada estragar e deixar tudo limpo e impecável, quer se tratasse de um assalto à divinal cerejeira do Manel Padeiro, de uma investida nocturna às uvas moscatel do Virgílio, de uma cirúrgica limpeza às ameixoeiras da Ti Rosário ou uma vistoria aos figos-lampos da Gravelina...
E à boa maneira daquelas epopeias do bom vilão éramos até acarinhados pela maior parte dos próprios lesados, havia como que um tácito acordo de paz e consentimento, nós matávamos a fome e o desejo e a fruta não se estragava nas árvores e no chão, até assim afastávamos a passarada de bicar em demasia a colheita... Mas por vezes éramos denunciados, ou porque uma escalada mais arriscada tinha partido uma ramada ou porque naquela investida os danos na colheita tinham ultrapassado os limites do bom senso, lá chegavam queixas a casa e os castigos eram inevitáveis, geralmente uma semana sem as visitas nocturnas ao café do Fernando para ver as séries do Santo e do Maioral, para além de ser obrigado a regar a horta e o jardim, e era aí que para nosso desconforto ficávamos a saber que não conseguíamos imitar os nossos heróis dos filmes que faziam a coisa bem e secreta, afinal quando pensávamos que éramos os intocáveis mestres da camuflagem ficamos a saber que havia sempre um par de olhos sobre nós...
![]() |
Figos do vizinho |
E hoje, passados tantos anos, convenço-me que a natureza se sente infeliz porque está orfã dessa geração de garotada que zelava pelo equilíbrio do ambiente, hoje a malta nova não busca os ninhos nem os tanques para um mergulho, não preserva os caminhos nem os atalhos, não calca o mato nem salta os muros e nem sobe qual Tarzan às árvores de fruto que vão definhando a pouco e pouco e morrendo ingloriamente... Já não se vêem cerejeiras nem amendoeiras, acabei de passar por uma ameixoeira à beira do caminho que apenas exibia meia dúzia de abrunhos, as figueiras já não têm a beleza e o fulgor de outros tempos, até o meu damasqueiro favorito secou por completo e até a vinha outrora generosa do Virgílio não passa hoje de um cemitério de troncos ressequidos... Sem gente a cuidar dela e sem as aventuras da irrequieta garotada a natureza, ao mesmo tempo que vai ficando assustadoramente pujante e selvagem, vai perdendo a alma...
![]() |
As amoras vêm aí... |
Do mal o menos e apesar da selva, está quase a chegar o tempo em que as amoras imploram por nós...
João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)
Sem comentários:
Enviar um comentário