quarta-feira, 1 de janeiro de 2020



OBITUÁRIO DE UM LUMINOSO MELRO


Olhos abertos fitando o infinito, peito inflamado enfrentando o frio matinal, penas sedosas de um negro brilhante e a cauda disposta num leque perfeito, bastaria apenas abrir as asas para conquistar o céu novamente, simples instinto feito ao longo toda a efémera existência mas as garras enclavinhadas denunciavam o último estertor, o majestoso melro tombara a dois golpes de asa da ansiada segurança da floresta...


Olhava eu em volta em busca de sinais para esclarecer o mistério do desastre quando me apercebi de que afinal alguém tinha chegado antes de mim ao ouvir um sussuro vindo de uns tufos de erva ali à beira e então dei de caras com outra negra criatura, uma estranha e também brilhante lesma, pensei eu então que talvez todas as criaturas dos bosques tivessem assimilado o brilho do fogo festivo de ano novo e que desassossegara tudo e todos horas antes... O molusco tipo grande caracol sem-abrigo apontava para mim um minúsculo e míope olho incrustrado numa das suas pequenas antenas e então, coisa que até me assustou, botou palavra:
  - Coitado, não merecia partir assim... Era uma boa alma...
  - Mas por acaso sabe o que aconteceu? Conhecia-o?
  - Claro que o conhecia! - e o tom de voz lésmico, mais agreste, não dava azo a dúvidas ... - Via-o quase todos os dias, costumava até pernoitar ali naquelas árvores muitas noites... - e apontou com a outra antena para o bosque...
 - Era uma bela ave! - disse eu enfaticamente para dar fogo à conversa...
 - Oh! Se era... Simpático e de bela catadura... Consta por aí na floresta que era respeitado na comunidade e com muita saída entre as melras, não sei se me percebe...
 E foi então que imaginei que se a lesma tivesse boca esta estaria agora aberta num grande e luminoso sorriso...
  - Queres ver que foi pôr a pata em ninho alheio e deu-se mal? - lancei para o ar...


  - Não! Até poderia acontecer um dia num incidente com um melro ciumento mas não foi isso que aconteceu... Eu vi tudo, ou antes... ouvi... O bater das asas, o barulho quando bateu nos fios eléctricos e o baque surdo quando tombou no chão...
   - Então mas se ele conhecia esta zona...
   - Sim, mas ontem assustou-se com todo o barulho e com a luz das festividades humanas do ano novo, foi apenas um infeliz acidente provocado por todo esse fogo de artifício...
Como se a vida se pudesse dividir em períodos estanques... - e pareceu-me então que, na sua inexistente boca, até fez uma careta...

"Fogo de Artifício sobre Capa Negra"

João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)

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