A MORTE A SETE PÉS...
A minha primeira memória e experiência da morte aconteceu exactamente na noite do terramoto do último dia de Fevereiro de 1969, sei agora que foi um abalo com uma intensidade de 7.9 na escala de Richter, o mais forte desde 1755!
Então tinha eu quase 5 anos de idade, faltavam-me dois meses apenas, e nessa noite perdi o meu melhor amigo, o avô António, aquele que me levava a cavalo na mula ou na carroça para a horta da Nogueira onde eu descobria ribeiros cheios de água e canaviais misteriosos, que me fazia brinquedos em madeira ou que pegava em mim e me punha em cima do trilho para moer o cereal nas tardes quentes de Agosto ou me depositava no lagar para pisar infantilmente as uvas até de madrugada... Nessa memorável noite sísmica dei pelo guarda-vestidos do quarto abanar e pelo alvoroço e gritos da madrugada mas, por sonolência ou confusão, apenas rezava aos anjinhos para que o meu avô, em agonia no quarto ao lado e que dava para rua, recuperasse como se nada fosse e que na manhã seguinte me fosse buscar para ir augar a horta. Mas isso nunca mais aconteceria, nunca mais ele brincaria comigo e se na véspera me tinham ido buscar ao pátio porque ele tinha pedido para se despedir de mim, ainda hoje sinto o fraco aperto da sua mão sobre a minha e o olhar ainda com algum brilho, de esperança talvez, depois disso só me lembro de o ver imóvel e de cara tapada com um imaculado lenço de linho... Em viagem para o céu, alguém me disse, mas não por culpa do sismo, ao contrário das outras 13 vítimas da noite o meu avô morreu de uma trombose, complicação que naquele obscuro tempo ainda era fatal como o destino, esperava-se pela morte em casa, junto da família...
É verdade, ainda sou do tempo em que não havia a negação da morte, ela era um assunto doméstico, até para as crianças, ainda me vejo mais os comparsas a assistir a todos os funerais da freguesia, uns mais dramáticos que outros, é certo, mas todos um acontecimento que quebrava o marasmo da aldeia. e então eram os familiares e as pessoas mais próximas que tratavam de tudo o que fosse prático, para o padre restava apenas a parte espiritual da despedida, até os velórios eram feitos em casa... Mas hoje morre-se essencialmente nos lares e hospitais e as cerimónias fúnebres são organizadas por empresas especializadas em tornar a morte invisível e não chocante, de tal forma que é melhor nem falar dela e quanto às crianças então o melhor é mesmo escondê-la! E de tal forma assim é que o desaparecimento do corpo se tornou imperativo, a cremação virou moda necessária e confortável e por exemplo, no Japão, apenas um cadáver em cem não é cremado, não havendo sepultura nem lápide não há morte a acenar-nos... Mas todos vivemos com um esqueleto e com uma caveira dentro e quanto mais tarde o admitirmos pior, maior será o trauma e enquanto não repousarmos a sete palmos do chão não vale a pena fugir a sete pés da morte, afinal ela é tão natural quanto inevitável...
E que saudades, avô!
João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)
É verdade, ainda sou do tempo em que não havia a negação da morte, ela era um assunto doméstico, até para as crianças, ainda me vejo mais os comparsas a assistir a todos os funerais da freguesia, uns mais dramáticos que outros, é certo, mas todos um acontecimento que quebrava o marasmo da aldeia. e então eram os familiares e as pessoas mais próximas que tratavam de tudo o que fosse prático, para o padre restava apenas a parte espiritual da despedida, até os velórios eram feitos em casa... Mas hoje morre-se essencialmente nos lares e hospitais e as cerimónias fúnebres são organizadas por empresas especializadas em tornar a morte invisível e não chocante, de tal forma que é melhor nem falar dela e quanto às crianças então o melhor é mesmo escondê-la! E de tal forma assim é que o desaparecimento do corpo se tornou imperativo, a cremação virou moda necessária e confortável e por exemplo, no Japão, apenas um cadáver em cem não é cremado, não havendo sepultura nem lápide não há morte a acenar-nos... Mas todos vivemos com um esqueleto e com uma caveira dentro e quanto mais tarde o admitirmos pior, maior será o trauma e enquanto não repousarmos a sete palmos do chão não vale a pena fugir a sete pés da morte, afinal ela é tão natural quanto inevitável...
E que saudades, avô!
João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)
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