quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 
UM MUNDO-CÃO LOUCO E ARTIFICIAL!!


Há poucos dias, numa daquelas serenas tardes lisboetas que ainda nos surpreendem, abancado defronte do ainda belo, nostálgico e engalanado Pavilhão Carlos Lopes, ia eu admirando as estátuas e os lindos painéis de azulejos quando dei por mim alheado da azáfama citadina, ali não havia trânsito caótico nem magotes de pessoas em contra-relógio e aos encontrões, nem ruído, apenas se faziam ouvir os pássaros nas árvores do parque, dois cães atrelados a ladrarem-se enquanto os donos, um para cada lado, falavam ao telemóvel e lá ao fundo apenas o barulho intermitente de um skate, o que me fez sentir num ambiente virtual como se tivesse eu carregado numa função do meu smartphone e assim eliminado do espaço envolvente todas essas desagradáveis coisas...  
E pensei, talvez em alta-voz: "Olha que boa ideia! Será que no futuro vai ser possível eliminar do ambiente onde estamos os itens que nos desagradam, incluindo alguns humanos? Que bom que seria!"

Mas tudo muda num instante neste acelerado mundo-cão, de repente pessoas e mais pessoas começam a chegar e a formar filas, é que a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos eu e mais essas centenas de curiosos ávidos de informação e esclarecimento iríamos encher o Pavilhão para assistir a "Isto não é assim tão simples", um evento onde se iriam debater factos e ideias sobre a importância da Inteligência Artificial (I.A) e as suas implicações no futuro da humanidade, com a presença de um dos grandes especialistas da matéria a nível mundial, Neil Lawrence, professor catedrático de «Machine Learning» na Universidade de Cambridge e actualmente a investigar como será possível os humanos poderem controlar os grandes sistemas de I.A em acelerada evolução através do aperfeiçoamento da gestão de dados... Apresentava também o especialista o seu novo livro, "Humano, demasiado humano" e ainda haveria lugar a uma conversa partilhada com Bernardo Caldas, especialista português na área de dados e na sua utilização no âmbito da I.A e ainda fundador da associação Data Science for Social Good Portugal.

Valeu mesmo a pena! Oradores fantásticos, entrevistador excelentemente preparado como já nos habituou, e embora Neil Lawrence, fazendo o papel de optimista cauteloso, tenha sublinhado o lugar único e inimitável do ser humano num contexto futuro em que muitas funções e decisões poderão vir a ser tomadas pelos algoritmos das máquinas, vim de lá com a sensação que esta coisa monstruosa que é a Inteligência Artificial se pode tornar na Caixa de Pandora, não tanto pelos benefícios que poderá trazer mas pelos desiquilíbrios e conflitos que inevitavelmente provocará nas diferentes sociedades humanas... E não falta quem nos avise desses perigos, já Bernardo Caldas dizia há tempos que será, a breve prazo, quase inevitável o desaparecimento de algumas profissões e claro, quanto menos profissões menos postos de trabalho! Ontem olhei para a capa do Diário de Notícias e li que 80% dos empregos ameaçados  pela I.A são desempenhados por mulheres; que se fará então com todas essas mulheres que ficarão sem essas possibilidades de emprego?



No último fim-de-semana era o filósofo José Gil a dizer numa crónica publicada no jornal "Público" que a I.A era o pilar da organização e divulgação dos novos neofascismos, com o americano à cabeça, e talvez Trump o tenha lido porque hoje soube-se que declarou guerra aos jornais e aos jornalistas ao seleccionar a dedo aqueles que poderão ter acesso às conferências de imprensa da Casa Branca, segundo ele a liberdade de imprensa é uma ameaça para a América! No entanto já não o preocupa o facto de a I.A ter sido usada para divulgação de campanhas de desinformação com o intuito de favorecer a sua própria eleição e também a da extrema-direita alemã... E assim vai o mundo-cão, cada vez menos humano e mais artificial...
No final, só tive pena que não tivesse havido lugar para perguntas do público aos ilustres oradores, tinha eu uma preparada: para quando aquela tecla no smartphone que permitirá eliminar do nosso ambiente pessoas e outras coisas nocivas? 

João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 
"Na verdade, o discurso de Trump anuncia o desejo de impôr, aos americanos e ao mundo, uma nova sociedade e uma nova cultura. Para tanto, conjugam-se estreitamente o capitalismo, a visão antiambientalista e a intenção de destruir o modo de vida democrático. A revolução que assim se prepara desenvolver-se-á, essencialmente, em três planos, económico, político e cultural, que se cruzam num ponto: a inteligência artificial!"  

José Gil, filósofo
in Jornal Público, 9-2-2025

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025


APANHADO NA REDE - VII 

IS THIS WHAT WE WANT?

Num futuro talvez não muito distante e sem nos apercebermos, quiçá num dia aparentemente pacífico como o de hoje mas que marcará o início de uma nova era, acordaremos sob o efeito da INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, (I.A), adormeceremos sob a hipnose da I.A e entre o acordar e o dormir tentaremos sobreviver de acordo com os algoritmos impostos por cérebros artificiais... 
Mas já hoje, por exemplo, acordei com uma notícia que me fez viajar até a um futuro sombrio e vazio, soube pela Internet que mais de 1000 artistas se revoltaram contra a intenção do governo britânico alterar a legislação sobre os direitos de autor para que as empresas da área da I.A possam ter acesso gratuito às suas obras e usá-las para o desenvolvimento dos seus modelos! Ou seja, isso significaria legalizar o roubo de música para beneficiar as empresas de I.A, as quais, para cúmulo e pecado original de criação, terão no horizonte o objectivo de poder criar música a um nível que ultrapasse a capacidade de criação dos músicos humanos... Como um dia disseram os BAN, "um irreal social"! 



Então acabou de ser lançado mesmo agora "Is this what we want?", um álbum de protesto, feito de silêncio, uma obra vazia mas que podemos preencher com as memórias que nos vierem à cabeça, por exemplo músicas de artistas que estão por detrás deste movimento, a saber de entre muitos outros Kate Bush, Damon Albarn, Annie Lenox, Elton John, Paul McCartney ou Sting, este último mesmo a propósito porque isto cheira mesmo a caso de polícia!

João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)

domingo, 23 de fevereiro de 2025

 
ESCRITO NA PAREDE - XLI


 
QUEM QUER COMPRAR UMA VIDA ETERNA?

Foi graças à fabulosa história da ressurreição, contada décadas após a misteriosa morte de Cristo, e à promessa da vida eterna que o cristianismo logrou vingar, sem isso não teria passado de outra fanática seita religiosa como tantas outras e talvez hoje não existisse sequer mas o facto de ao longo dos séculos a Santa Igreja ter estado sempre ao lado dos ricos e poderosos, deles recebendo dádivas, doações e isenções, permitiu-lhe construir um império e uma fortuna de fazer inveja a qualquer deus que viva por esses céus afora...

"A Tábua da Salvação" -( Misericórdia da Lourinhã) - Jean-Charles Forgeronne

Primeiro aterrorizavam-se as pessoas com o pecado (seja lá o que isso for) e o terrível castigo divino para depois lhes prometer a salvação e a vida eterna e gloriosa, e nada mais fácil, bastava pagá-las! Tudo servia como forma de pagamento: terras, casas, ouro, dinheiro, animais... E não era preciso ser bom católico, nem sequer boa pessoa ou merecedora de tamanho prémio, qualquer criminoso, desde que pagasse, gozaria a vida eterna, e às vezes até nem era preciso fazer nada tantos eram aqueles que eram nomeados por outrém! Mas pelo menos para alguma coisa serviam os bens que eram doados às instituições religiosas em troca da salvação da alma, eles eram, por exemplo, uma das principais fontes de rendimentos das Misericórdias que assim podiam ajudar os necessitados... Através de um testamento qualquer pessoa podia doar bens a uma instituição, ficando esta obrigada a rezar missas por sufrágio da alma do doador ou de outras pessoas por ele nomeadas e para que a coisa fosse oficial, rigorosa e pública era obrigatório afixar tábuas de missas nas igrejas onde constasse o nome dos doadores, o número de missas e o horário das mesmas... 

João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

 
O TESOURO DA MISERICÓRDIA


Instituída em 1586 pelo Rei D. Filipe I de Portugal, ou então por D. Filipe II de Espanha conforme a perspectiva, a Misericórdia da Lourinhã, para além do importante papel que teve na intervenção social e espiritual da comunidade ao longo de séculos, alberga hoje em dia no seu remodelado espaço museológico um verdadeiro tesouro: as duas mais importantes obras do enigmático e fantástico pintor conhecido como o "Mestre da Lourinhã"!
Sim, é verdade mesmo, não duvide caro leitor, na pequena mas mui nobre capital dos dinossauros e no seu pequeno mas muito interessante museu da Misericórdia ali estão, lado a lado, as pinturas "São João Baptista no deserto" e "São João Evangelista em Patmos", resgatadas há muito mas muito tempo do original mosteiro da ilha das Berlengas e cuja autoria é daquele que é considerado o mais misterioso, porque se desconhece a sua identidade, mas também o mais importante dos pintores da época de D. Manuel I e D. João III!


"Mestre da Lourinhã, na Lourinhã" - Jean-Charles Forgeronne

Mas o visitante tem mais com que se deleitar, por exemplo a Igreja, pequeno mas lindíssimo templo que com o seu tecto em madeira e o seu retábulo em talha dourada capta a atenção, e depois, já em plena rua da Misericórdia, deixe-se deslumbrar com a porta manuelina e viaje no tempo...

"Rua da Misericórdia" - Jean-Charles Forgeronne

João Alembradura
(Historiador de Valmedo)
 
LEONOR, A MUI RICA E MISERICORDIOSA

Tendo privado e vivido entre reis, o tio e sogro D. Afonso V, o primo e marido D. João II, o irmão D. Manuel I e o sobrinho D. João III, LEONOR de AVIS, mais tarde rainha, nasceu na mais alta nobreza do reino e a sorte de ser neta do rei D. Duarte e do primeiro duque de Bragança levou a que cedo amealhasse uma fabulosa fortuna, não sendo surpresa que ao morrer em 1525, aos 67 anos de idade, fosse simplesmente uma das pessoas mais ricas de Portugal, ou não tivesse, entre outras cousas, recebido como doação a vila de Sintra, Lagos, Aldeia Galega, Aldeia Gavinha, Alenquer, Alvaiázere, Óbidos, Torres Novas e Torres Vedras...  

"Leonor nas Caldas" - Jean-Charles Forgeronne

Mui rica mas não muito feliz, há que dizer, casada por encomenda aos 12 anos com um primo que se revelou tudo menos perfeito, sofreu as mortes dos dois filhos que teve, uma à nascença e a outra, decerto muito mais dolorosa, a do príncipe herdeiro D. Afonso na sequência de uma queda de cavalo pelas bandas de Santarém, tinha ele 16 anos e era a grande esperança de uma Península Ibérica unificada sob os desígnios de um rei português pois tinha casado ainda criança com uma filha dos reis católicos...
Como se não bastasse, Dona Leonor teve ainda que sofrer bastante com o assassinato do irmão, D. Diogo, Duque de Viseu, morto a golpes de punhal pelo próprio rei, tal fez com que a rainha se recusasse a acompanhar D. João II nos últimos tempos da sua doença e na sua morte, valeu-lhe então o alívio de ter ficado viúva aos 37 anos, ainda jovem e bela, fazendo fé no retrato de Malhoa...  


"Rainha D. Leonor por José Malhoa" - Jean-Charles Forgeronne

Pouco tempo depois de ter enviuvado D. Leonor fundou a primeira Misericórdia portuguesa em Lisboa, outras seguir-se-iam e já antes tinha fundado um hospital termal para pobres nas Caldas da Rainha, e tanto se dedicou na ajuda aos outros que deve ter encontrado aí a felicidade que lhe tinha faltado na vida pessoal, passou o resto da vida a usar a sua própria fortuna para apoiar hospitais, conventos, albergarias e igrejas... E ainda teve tempo e dinheiro para apoiar a cultura, tendo sido, por exemplo, protectora de Gil Vicente...

João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

 
LENDAS E NARRATIVAS - XXVI

O BANHO DA REAL PELICANA

Consta que a Rainha puxou de súbito as rédeas e o seu cavalo e restante caravana pararam obedientes, tinham saído há pouco de Óbidos em direcção ao Mosteiro da Batalha com o intuito de participar nas solenidades fúnebres de D. Afonso V, seu tio e sogro falecido três anos antes, a viagem ainda seria longa e desconfortável mas a curiosidade falou mais alto e agora tentava perceber o estranho espectáculo que tinha diante dos olhos: num descampado à beira do caminho centenas de pessoas banhavam-se alegremente nuns charcos de água pestilenta de onde emanavam vapores sulfurosos...
  

E dirigindo-se àquelas pessoas de baixa condição social perguntou D. Leonor, a esposa do perfeito rei D. João II, o que faziam naquelas águas de mau aspecto e cheiro, ao que lhe disseram que aquelas cálidas águas eram milagrosas, que curavam elas muitas e diversas maleitas! A Rainha, padecendo também ela de alguns desconfortos, não pensou duas vezes e decide pôr à prova o milagre, desce do cavalo e vai ao banho também, por entre a populaça e perante o ar embasbacado da sua comitiva... A Rainha parecia uma pelicana na água, ela que mais tarde seria apelidada de "pelicana real" devido não só ao brasão real do esposo mas especialmente porque, tal como o pelicano faz em relação aos filhos, a benfeitora D. Leonor também tirava alimento do seu peito para dar aos pobres... Certo é que saiu do banho retemperada e convencida, lá continuou a viagem mas na sua cabeça já germinava uma ideia: naquelas caldas iria mandar construir um hospital, acessível a todos que nelas se quisessem tratar e gratuito para pobres e desfavorecidos...    

"Hospital Termal das Caldas da Rainha D. Leonor" - Jean-Charles Forgeronne

Em 1485 seria pois fundado o Hospital Termal das Caldas da Rainha, o mais antigo hospital termal em funcionamento no mundo...

João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

 
CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - LIV

PORQUE TÊM OS PINGUINS A BARRIGA BRANCA?

Adivinha: qual é o bicho que é ave e não voa e que anda sempre em traje de cerimónia? Pois, é caso para perguntar se o alfaiate inglês que um dia inventou o fraque não terá tido como modelo e inspiração o elegante e aprumado pinguim?! Mas não é fácil, essa indumentária festiva dá muito trabalho ao pinguim já que a cada período de duas a seis semanas ele renova todas as suas penas e se atentarmos na sua longevidade média, 20 anos, imagine-se o número de fraques que ele usa ao longo da sua vida!


Mas esta simpática e curiosa ave, para além da sua icónica indumentária, apresenta-nos outras curiosidades, logo à cabeça o facto de ela, algures no processo evolutivo da espécie, ter optado pela natação em detrimento do voo ao transformar as suas curtas e compactas asas em poderosas barbatanas, e é sabido como o pinguim é um exímio e rápido nadador... Outra característica extraordinária reside nas relações sociais, por exemplo o Pinguim-imperador, o maior de todos os pinguins, é uma espécie monogâmica, reconhece a cara-metade pela voz e a união é para toda a vida! Além disso o macho, ao contrário de muitas outras sociedades animais, não se limita a fazer de chefe-de-família, é ele quem recebe o ovo da fêmea e o transporta sobre as patas e depois o mantém quente ao cobri-lo com uma prega existente na sua pele, assim o ovo é mantido a 42ºC, ainda que a temperatura ambiente possa descer até aos -60ºC!


Quando está na água à procura de alimento e precisa de descansar, o pinguim boia de barriga para baixo, deslizando lentamente à tona, daí a importância de as suas penas ventrais serem brancas, é que os seus predadores submarinos, ao olharem para a superfície, não os conseguem distinguir contra a claridade exterior... Eis a importância de uma camisa branca!
Mas os pinguins ainda são uns verdadeiros especialistas noutra modalidade: caminhar no gelo! Não há pai para eles, verdadeiros mestres do equilíbrio sobre superfície escorregadia, daí a sua postura corporal nos ser aconselhada a imitar quando caminhamos sobre o gelo, mas atenção, convém não ser assim tão perfeito na imitação especialmente quando estamos mesmo à beirinha da água, é que podemos ser mesmo confundidos com um pinguim e acabar na boca de uma foca ou de um tubarão...

João Atemboró 
(Naturalista de Valmedo)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

domingo, 2 de fevereiro de 2025

 
EFEMÉRIDE # 108

A BREVE AVENTURA DA RATA CEGA


"O comboio achega-se, meus senhores! Atenção a todos! Cavalheiros e damas! Atenção ao comboio que é chegado! Pela primeira vez é aguardado o comboio de Torres Novas a Alcanena! Finalmente se achega a máquina... - Gritou, prazenteiro, um funcionário do Caminho-de-Ferro, com o seu bigode farfalhudo e suíças esbranquiçadas." Este é um trecho do livro de Paula Araújo, "O Trilho da Rata Cega", e nele se retrata um acontecimento extraordinário ocorrido a 2 de Fevereiro de 1893 na avenida principal de Alcanena, há precisamente 131 anos!... Na véspera tinha sido inaugurado o troço do caminho-de-ferro que ligava Torres Novas a Alcanena, mas apenas isso, só a linha, sem comboio, vá lá saber-se porquê, e juntando esse troço ao outro que já existia há quatro anos ficava portanto possível a partir desse dia transportar mercadorias e passageiros entre a Linha do Norte (a partir da estação de Riachos) e Alcanena, passando por Torres Novas, um ousado empreendimento privado levado a cabo pelo Barão de Matosinhos...   


"A linha da Rata Cega em Torres Novas" - Jean-Charles Forgeronne

Mas foi breve a aventura da Rata Cega, assim chamava o povo ao pequeno comboio devido aos inúmeros acidentes e descarrilamentos que provocou, parecia cego sem saber por onde ia, passados apenas seis meses, em Junho de 1893, todos os serviços na linha foram suspensos, a linha desactivada e o material vendido ao desbarato... Mas hoje, quem deambular com atenção pela parte velha de Torres Novas ainda se cruza em plena rua com os carris por onde passava o Comboio Menino, também assim conhecido porque era deveras pequenino e, ao que parece, tão lento que uma pessoa caminhando em bom ritmo o conseguia ultrapassar... 

"Escrito na parede" - Jean-Charles Forgeronne

A minha memória da Rata Cega vem de histórias que ouvi de avós que a ouviram dos seus avós, transmissão oral daquilo que marcou um período da história de Portugal e especialmente das regiões de Torres Novas e Alcanena, coisa que a mim, ainda menino, me custava a acreditar, "Um comboio a passar aqui? Diante da nossa casa, onde não há restos de carris nem nada?", lembro-me de perguntar... Daí também a importância do livro de Paula Araújo, mais do que o seu valor literário importa destacar o seu testemunho histórico e social sobre a sociedade de então e a importância que aquela malfadada linha de comboio teve ou deveria ter tido na economia e na indústria da região, nomeadamente a de curtumes e fiação de tecidos... 

João Alembradura
(Historiador de Valmedo)
 
UM DIA O CÉU DANÇARÁ PARA MIM

Às vezes os planetas não estão alinhados e as coisas não se encaixam na perfeição, mas é a lei do cosmos, numa infinitude de probabilidades já é uma sorte conseguir que algo de jeito aconteça, sem querer exigir este mundo e o outro há que continuar a perseguir os momentos de felicidade, como por exemplo a maravilhosa noite em que fomos presenteados com uma deslumbrante meia hora de auroras, parecia que o céu dançava para nós... 
E agora, na ressaca desta aventura no Ártico e na hora de nos despedirmos de Tromso descubro com um laivo de tristeza que em Março próximo virá aqui actuar o único músico norueguês que conheço, Thomas Dybdahl, a Kulturhuset estará a rebentar pelas costuras, imagino... Que pena ele não ter vindo enquanto aqui estive...


                                                                             One day you'll dance for me, New York City

"One day you'll dance for me, New York City", do álbum homónimo de Dybdahl de 2004, é simples e definitivamente uma das minhas músicas favoritas de sempre, penso que basta ouvir para entender, e agora penitencio-me por não ter pensado nisso, porque não vi as auroras ao som desta música, que melhor banda sonora poderia haver para tão deslumbrante evento? Da próxima, se por milagre voltar a acontecer, assim farei, verei o céu e New York City dançando em simultâneo para mim...


João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)


Jean-Charles Forgeronne 
(Fotógrafo de Valmedo)

 
À CAÇA DAS AURORAS BOREAIS


"O explorador optimista"
Inevitavelmente tinha chegado a hora da verdade, não havia volta a dar, só tínhamos aquela oportunidade porque manhã cedo regressaríamos a Oslo, ou seria naquela noite que veríamos as famosas auroras ou então seria a frustração pelos milhares de quilómetros feitos em vão, coisa que de vez em quando acontece a muita gente... E estávamos cientes de que nem sempre era possível observar o fenómeno, tinham que estar reunidas várias condições, logo à cabeça era necessária uma noite escura e com céu limpo, coisa difícil  de acontecer entretanto ali por Tromso pois continuava tudo bem carregado de cinzento e a neve caía ocasionalmente, estrelas no céu nem uma... Ansiávamos por um milagre!
Agora já estávamos na sede dos Artic Explorers, inseridos na equipa do Georgi, um dos guias que com o seu discurso entusiasmante ia levantando a moral aos participantes na aventura, dizia ele que poderia vir a ser uma longa noite e que apesar do mau tempo em Tromso acreditava no sucesso da expedição. Era tudo uma questão de sorte e de estar no sítio certo no momento certo, às vezes uns minutos fazia toda a diferença mas ele estava optimista e isso trazia-nos esperança...

"A caminho..."
Ainda pensei que o Georgi estava a brincar quando nos disse que iriamos atrás das auroras, se necessário até à Finlândia, mas depois vi que a coisa era a sério pois ele já nos mostrava um mapa com o percurso e onde estavam assinaladas oito paragens, oito sítios ideais para a visualização do fenómeno, se o primeiro não desse iríamos para o segundo e assim sucessivamente até ao oitavo e último se fosse necessário, a derradeira possibilidade, já na Finlândia! E ele, experiente e sabedor do assunto ia dizendo para não nos preocuparmos com o tempo, ele tinha fé que iríamos caçar uma bela aurora, a última paragem então oferecia-lhe muita esperança, um local que le conhecia como ninguém... E lá fomos para o autocarro, equipados a rigor que parecíamos uns verdadeiros exploradores do Ártico, não ficávamos a dever nada ao Amundsen, norueguês herói desta terra, ele que foi o primeiro homem a chegar ao Polo Sul mas que curiosamente falhou o Polo Norte, mesmo aqui em cima, a sua grande obsessão de sempre, mas distraiu-se certamente e quando preparava essa expedição soube que um americano, num golpe de antecipação, já lá tinha chegado, vai daí trocou de polo...


De paragem em paragem repetia-se a cena, o autocarro encostava, o Georgi saía para investigar e voltava, pequeno compasso de espera, curto diálogo com o motorista que lá atrás não ouvíamos e seguia-se viagem, uns, já desanimados, aproveitavam para dormir que a viagem já levava quase três horas, outros olhavam ansiosamente pela janela em busca de estrelas no céu, o que seria um bom sinal, outros mergulhavam nos telemóveis e pesquisavam informação sobre as condições atmosféricas apesar do Georgi ter dito que isso pouco importava porque ele sim é que estava directamente ligado ao satélite que orbitava mesmo por cima de nós, tinha portanto acesso a dados em tempo real...


Então, a espaços, lá se começaram a ver algumas estrelas, alguém até gritou de contentamento mas ainda era prematuro festejar... Veio então o Georgi até meio do autocarro fazer um ponto da situação: já estávamos na Finlândia, brevemente chegaríamos à última estação, a última hipótese, e ele continuava optimista...


Finalmente o autocarro encostou e toda a gente saiu, primeiro tentando habituar-se à escuridão, depois olhando para o céu à procura das célebres luzes do norte, depois um burburinho, alguém começa a apontar para um determinado ponto e aquilo primeiro não passava de uma estranha claridade no horizonte mas depois, passados passados apenas um ou dois minutos, algo se movimentava na nossa direcção, era a primeira aurora que eu via na minha vida! Ecoaram gritos de alegria, houve saltos de contentamento, abraços, talvez uma ou outra lágrima esquiva, tinha valido a pena! Mas ainda não sabíamos o que estava para vir...


Acabou por ser uma noite magnífica, uma boa meia hora que o céu dançou para nós, desaparecia uma aurora e logo vinha outra, apareciam de todos os lados, esplendorosas, um deslumbramento! Noites assim eram raras, tínhamos tido muita sorte ia dizendo o Georgi, tão feliz quanto nós, afinal ainda há milagres... 

Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)

"Amundsen in Tromso" - Foto: Jean-Charles Forgeronne

 

 
PASSEANDO POR TROMSØ, COMO NUM FILME...

Foi de estômago feliz e espírito positivamente recarregado que saímos do Bugr dispostos a enfrentar não só o frio e a neve mas também a ansiedade, será que ainda seria possível um golpe de sorte que mudasse as condições climatéricas e assim tornar realidade o desejo de ver uma aurora que fosse? Mas como não dependia de nós e como ainda havia tempo de sobra para um passeio dirigimo-nos para o coração da cidade onde aí, sim, nos deparámos com muita gente na rua, não na praça central dominada pela catedral ou nas ruas junto ao porto mas especialmente nas imediações da Kulturhuset, que é como quem diz a Casa da Cultura, e foi na praça em frente que fui surpreendido por uma cena surreal mas maravilhosa, ao ar livre exibia-se um filme num ecrã gigante e os espectadores, alguns sentados em bancos que formavam um pequeno anfiteatro e outros em pé, assistiam com interesse e dali não saíam apesar da neve que ia caindo, pareciam estar numa sala confortável... "Em Tromso sê tromsoano!", disse para mim próprio e por ali fiquei um bom bocado, tentando apanhar o filme... 

"Inundação em Tromso" - Jean-Charles Forgeronne

Era um filme de animação, ao fim de poucos minutos percebi que não tinha legendas nem figuras humanas, as personagens eram animais de várias espécies que a bordo de um barco exploravam um planeta inundado, veio-me à cabeça a Arca do Noé, viam-se cidades desertas e parcialmente submersas, "seriam eles os sobreviventes de um apocalipse?", interroguei-me... Pareceu-me que a figura principal da historia era um gato preto, apesar de eu ter simpatizado mais com o cão de ar patusco que parecia só fazer disparates, mas de resto que estranho é começar a ver um filme sem saber se está no principio, no meio ou no fim, e sem sequer saber o título... Não aguentaria muito mais apesar do filme ser cativante, mais um minuto ou dois e iria ter com o resto do pessoal quando se abrem as portas da Casa da Cultura e, sinal dos deuses porventura, uma multidão desagua em plena praça, era claro que um espectáculo havia terminado, talvez cinema, a curiosidade atormentava-me e não resisti a entrar no hall, contra a corrente, em busca de uma resposta para o mistério...


E lá dentro caiu-me o tecto em cima depois de agarrar uma das imensas pequenas brochuras com o cartaz do 35º Tromso International Film Festival, e sabem que mais, era o sétimo e último dia do festival que decorria em vários espaços da cidade, um dos quais, claro, aquele anfiteatro ao ar livre!.. E depois de folhear o cartaz à procura do filme que continuava a decorrer lá fora tomei uma decisão: vou dizer aos meus amigos cinéfilos que andei aqui em expedição pelo Ártico uns bons meses, talvez até um ano como a Sofia do Burgr, afastado de tudo e de todos, talvez assim a minha ignorância passe despercebida e me poupe a vergonha! É que se trata de "FLOW", um dos mais falados e aclamados filmes de animação dos últimos tempos, estreado em 2024 no Festival de Cannes e que já ganhou vários prémios , de entre os quais o de "Melhor Filme" no 37º European Film Awards, para além de ter sido nomeado para um Oscar...
Agora que a neve deu um descanso, não sei se suficiente para a aurora mas de uma coisa sei: a primeira coisa que farei assim que chegar a Valmedo é arranjar forma de ver FLOW, a inundação...

João Película
(Cinéfilo de Valmedo)

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 
TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXXVI

UM BURGR DO ÁRTICO AO JEITO DE LISBOA

Chegados ao centro de Troms∅ era hora de comer e com a neve a cair, embora suavemente, ansiávamos por um abrigo confortável e o nosso desejo acabaria por ser realizado no BURGR, uma pequena mas aconchegadora hamburgueria, de boas referências segundo a L., que a tinha pesquisado, e lá entrámos deixando o tempo farrusco atrás das costas...   

"Burgr, aquele bar..." - Jean-Charles Forgeronne

Sentamo-nos em fila ao balcão porque não havia mesa disponível e também porque não nos apetecia ficar à espera, trocámos uns comentários sobre o agradável ambiente do espaço ao mesmo tempo que nos embrenhávamos na complicada tarefa de tirar casacos, luvas, gorros, cachecóis e demais apetrechos, e não sei como explicar mas os meus óculos, presos em qualquer coisa, voaram e aterraram do outro lado do balcão e então não evitei um sonoro "Merda! F*da-se!", mandado para o ar com a segurança de que ali, quase no Polo Norte, ninguém me perceberia...
Mas já a jovem empregada se aproximava, numa mão trazia as cartas do menu e na outra as minhas gafas, felizmente intactas...
 - Thank you! - disse eu, esmerando-me na pronúncia britânica... - I don't know what happened... - ia eu dizendo, quando ela me interrompe: 
 - Não há problema, pode falar português!  

"Bullet Bill" - Jean-Charles Forgeronne

"What the fuck!", pensei eu em português enquanto já ouvia uns risinhos ao lado:
 - Você é portuguesa?
 - Sim, de Lisboa...
E enquanto a refeição decorria sem pressas, sempre que a Sofia se acercava de nós, assim se chama a lisboeta que veio trabalhar para Tromso há cerca de um ano, lá eu aproveitava para um diálogo lusitano, agradável para ela porque raramente tinha clientes portugueses, são mais os brasileiros e espanhóis, e agradável para nós porque encontrar uma alfacinha naquele pedaço de mundo tão distante era um achado extraordinário...

"Aurora do Bugr" - Jean-Charles Forgeronne

Que não, não falava norueguês, é muito difícil e o inglês basta para se safar, não só com os clientes como na vida social, mas claro, Tromso é bonito mas, verdade verdadinha, não há nada como Lisboa, isso sim, lindo, a luz, o calor, conta os dias para o regresso em Maio, para acampar e gozar o mar... Entretanto olha pela janela lá para fora, continuava nevando, e pergunta:
 - Vieram por causa das auroras?
 - Sim, temos excursão marcada para as cinco e meia...
 - Com este tempo?! Boa sorte!
 - Acha que não?
E encolheu os ombros, o que equivalia a um prognostico sombrio...
 - Bem, logo veremos... - respondi, olhando para os efeitos especiais que iam acontecendo no tecto - Sempre teremos estas do Burgr...
Quantos aos hamburgueres, o meu, o "Bullet Bill", com bacon frito em cerveja, queijo cheddar, pickles e cebola crocante, arrisco dizer que é o melhor hamburguer que se pode encontrar mais a norte neste mundo!   

João Ratão
(Chef de Valmedo)