domingo, 9 de agosto de 2020

 

O PAÍS DAS GLORIOSAS MOTORIZADAS...


Não me ocorreu melhor para fazer da hora matinal que tinha que passar na Anadia enquanto esperava que a Maria Nana se despachasse da consulta de fisioterapia do que explorar a cidade de carro, numa voltinha lenta e tranquila que mais parecia uma ronda policial atenta a todos os pormenores, aos edifícios, à orgânica da terra e das pessoas... E ainda bem que não matei o tempo nem a curiosidade dentro do carro ou naquela pastelaria famosa que serve umas arrufadas divinais, é que depois de constatar que a Anadia está muito bem servida de equipamentos sociais, desportivos e culturais, de fazer inveja a muita urbe de maior dimensão, e depois de ter desenferrujado as pernas num pequeno passeio pela mata do Monte Crasto, o ponto mais alto da cidade e de onde se avista ao longe o cume e o ondulado da Serra do Buçaco,  ao descer pela encosta poente que morre nos Arcos dou de caras com umas sedutoras ruínas, e se há coisa a que eu não resisto são umas ruínas interessantes, gosto de ler a história que elas nos contam... Mas ali, parado no semáforo mesmo ao lado e protegendo os olhos do sol que já apertava, foi inevitável a sensação de que estava à beira de algo com muito significado histórico, não só pela dimensão dos edifícios mas especialmente por um emblema que me chamou a atenção, estampado de velho numa das paredes mas ainda bem vivo, e eu que ia tentando dar significado àquilo que tinha diante dos olhos tinha puxado inconscientemente pela memória, interrogava-me e não queria acreditar, seria mesmo aquela a famosa fábrica das motorizadas de antigamente?

"A casa da V5" - Jean-Charles Forgeronne

E assim, de repente e por acaso aquela manhã solarenga na Anadia viria a revelar-se inesquecível porque ali estava eu, agora certo de que aquelas eram as instalações fabris onde tinham sido produzidas as famosas V5, defronte da demonstração cabal e inequívoca da relatividade einsteiniana do tempo e do espaço, é que tinham bastado umas centenas de metros corridos desde a cidade para que eu me sentisse agora a viajar a uma velocidade louca pelo tempo, de repente era eu um rapazinho adolescente, num país completamente diferente, estranho até, em que especialmente nas comunidades rurais eram raras as pessoas que possuíam automóvel, na minha terra então só existiam três carros: o de praça, no qual as pessoas iam à vila em dia de mercado ou para tratar de qualquer assunto e que também me serviu um dia de ambulância, o do dono da mercearia e café, e claro, o do mais abastado lavrador da zona, de resto andava tudo de motorizada, jovem, velho, casais, famílias inteiras, elas eram as Casal, as Vilar, as Famel, as Zundapp e claro as V5 da Sachs, contribuindo para uma importante indústria de produção nacional que obteve sucesso entre as décadas 50 e 90 do passado século e que ia escondendo o estado miserável da nação...


"Outrora esplendor" - Jean-Charles Forgeronne

Nunca tive motorizada, ao contrário da maior parte dos meus amigos de infância e adolescência, apenas uma bicicleta jeitosa que também me levava a qualquer lado, ainda hoje não ando de moto nem sequer penso algum dia converter-me em motard, não estou para aí virado mas tenho gosto e simpatia pelos veículos motorizados de duas rodas ou não tivesse eu andado à pendura das V5 do Belmiro, ele e eu éramos os craques lá da terra e íamos jogar a todo o lado por qualquer emblema que nos oferecesse a oportunidade e um pequeno petisco no fim, fosse em torneios oficiais ou não ou apenas em disputas amigáveis, até chegamos a envergar as camisolas sem números dos solteiros de terras alheias em disputas fratricidas contra os casados que eram em maior número... E claro, sempre a cavalo da vermelha V5, chuteiras ao pescoço e gadelha ao vento que naquele tempo capacete só atrapalhava, e que agradáveis eram as voltas que dávamos, tranquilamente porque o meu amigo Belmiro era um rapaz tranquilo e andava regra geral devagar e em segurança apesar daquela máquina, se ele quisesse, poder atingir os 120 Km/hora! Mas um dia memorável em que por uma esquecida razão a minha viagem de regresso não foi à boleia do Belmiro mas do Vítor dos Resgais, ele que também tinha uma V5 e fama de acelera, tínhamos ido jogar ao Alqueidão da Serra, borrei-me todo a descer a Serra de Aire e por várias vezes senti que aquela seria a minha última viagem tal a velocidade e as travagens mesmo em cima das curvas a que fui sujeito... Ainda hoje penso que aquele foi um dos dias mais importantes da minha vida, é que quando me apeei cambaleante da mota experimentei a mais intensa e verdadeira sensação de alívio como poucas vezes senti até hoje... Mesmo assim, voltaria agora a andar de V5, hoje um artigo de colecção que pode valer uma fortuna...



João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

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