LIVROS 5 ESTRELAS - XXI
NOÉ, OS BICHOS E O CORVO...
O meu velhinho exemplar dos BICHOS de MIGUEL TORGA acusa há muito as dores do tempo mas, embora pintalgado de sardas castanhas infligidas por longos invernos, apesar de a capa ameçar descolar e até de algumas folhas se irem aguentando já debilmente unidas pela frágil cozedura de uma assustadoramente fina linha, ainda está inteiro e orgulhoso ali perdido entre muitos outros companheiros muito mais modernos, vistosos nas suas capas coloridas e impressos em papel de muito melhor qualidade... Talvez por isso os meus BICHOS tenha um valor especial, afinal faz parte da 8ª edição de 1977, comprado porque a escola assim o obrigou, mas ainda bem, e afinal já tem a idade de um homem maduro e já passou por muita coisa neste mundo, desde logo no nosso primeiro dia de convivência em que à falta de corta-papéis me lembro de o torturar com uma navalha porque todas as folhas vinham unidas quatro a quatro e por isso ainda hoje alguns dentes de papel espreitam das folhas serradas, já para não falar dos rabiscos e gatafunhos fruto de uma juventude inquieta e rebelde que tornam este livro um objecto único...
Em BICHOS existem histórias extraordinárias de muitos bichos, entre outros Nero, o cão, Mago, o gato, Morgado, o burro, Bambo, o sapo, Tenório, o galo ou Farrusco, o melro, mas é no último conto que Miguel Torga deslumbra com a melhor prosa da obra ao relatar as aventuras de VICENTE, o CORVO, claro, o único animal da Arca de Noé que não tendo aceitado o injusto castigo divino decide revoltar-se e fugir, preferindo morrer em diluviana liberdade do que viver subjugado pela degradante tirania divina...
"Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo."
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
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