domingo, 10 de maio de 2020



LENDAS E NARRATIVAS - XI


O GAGO, O MÁRTIR E O CORVO...


"São Vicente na cruz em aspa" -  Nuno Gonçalves
Longa foi a viagem de VICENTE, coitado, segundo a lenda a sua saga durou quase nove séculos, desde a sua morte em 304 até se tornar padroeiro da cidade de Lisboa em 1173! O aragonês natural de Huesca morreu mártir e moço às mãos dos Romanos de forma bastante inglória, e arrisco-me a dizer devido à sua ingenuidade própria da idade, era ele diácono aprendiz de ofício na cidade de Valência ao serviço de um tal bispo Valério quando este, de tão  GAGO ser e de não se lhe perceber o que dizia entregou a VICENTE  o papel de pregador e divulgador das suas ideias, o bispo pensava e ditava mas não falava, o pregador falava e talvez sem pensar muito no que dizia... E o rapaz terá desempenhado de tal forma a função, adivinha-se que com êxtase e arrebatamento, que as suas palavras  tiveram o efeito de terem sido ambos chamados para interrogatório pelo governador romano às ordens do imperador Diocleciano!  Vai daí, o perverso bispo ter-se-á fechado novamente em copas e VICENTE, fiando-se talvez na virgem e ignorando que os romanos não eram para brincadeiras, continuou a assumir as responsabilidades do discurso e falando pelo seu chefe, e se no princípio era o verbo no fim acabou o bispo por ter sido desterrado, leve castigo porque ainda gaguejou mais alguns anos, sorte bem diferente e injusta teve o diácono MÁRTIR que acabou por não resistir aos tratamentos a que foi sujeito: picado com garfos de ferro, deitado sobre brasas, flagelado num cavalo de estiramento e rasgado com ganchos de ferro sobre uma cruz em aspa...
Continua a lenda que o despedaçado VICENTE  foi lançado no campo para ser devorado pelas feras mas jurou quem viu que um CORVO protegeu o cadáver dos ataques de lobos, abutres e outras criaturas maléficas, e claro aquela bendita ave só podia ser um anjo assim disfarçado! Mas não são só os santos que são teimosos, os romanos também o eram, e então para resolver a questão de vez, o cadáver é atirado ao mar numa praia de Valência com uma pedra de moinho atada ao pescoço para que fosse ao fundo e para que os peixes se banqueteassem mas, milagrosamente como convém, ou o serviço foi mal feito, ou o calhau se transformou em esferovite ou por forças inatingíveis aos olhos de um ser humano pecador, fosse pelo que fosse VICENTE  acabou por boiar e dar à praia, sendo recolhido por cristãos de boa alma e sepultado em segredo, tornando-se obviamente alvo de devoção e peregrinação... E assim as coisas continuaram durante 400 anos até os muçulmanos terem chegado àquela região e então os cristãos, receando a profanação do santuário, transportam os restos mortais do santo dali para fora e depois de muito tempo à deriva pelo mar chegam ao promontório de Sagres, onde os depositaram num sítio conhecido como PONTAL DOS CORVOS e bem perto do cabo que se passaria a chamar Cabo de São Vicente...  E ali repousaria o mártir por mais 400 anos...


Vinte anos depois de ter conquistado LISBOA, D. AFONSO HENRIQUES, tendo-lhe chegado aos ouvidos que as relíquias de Vicente de Saragoça estavam em perigo de profanação por parte dos muçulmanos algarvios, decide enviar uma nau para resgatar o santo e é então que a lenda sobe de tom, durante toda a viagem pela Costa Vicentina acima dois  CORVOS  acompanharam o féretro até à capital do reino, onde terá chegado a 15 de Setembro de 1173! No dia seguinte, os restos de SÃO VICENTE entraram na Sé de Lisboa, a sua última morada até agora que isto nunca se sabe, tornando-se o padroeiro oficial da cidade, e são também lendários os corvos que habitam as torres catedrais, descendentes daqueles dois aventureiros que velaram pelo santo...  Mas não foi fácil na altura a Lisboa tornar-se a cidade conhecida como a legítima depositária das relíquias do santo, muitas outras desde o sul de França, passando pela Itália ou pelo sul da Grécia reclamavam possuir o corpo de VICENTE, ou pelo menos parte dele, como foi o caso de Bari que dizia possuir um braço, coisa normal naquele longínquo século XII em que era intensa e fervorosa a descoberta de corpos de santos e relíquias com o objectivo de santificar lugares e promover a peregrinação e o prestígio de determinadas regiões, Braga e Compostela são disso exemplo e parece que foram várias as contendas pela posse de coisas tão magníficas como unhas ou cabelos de santos! Felizmente que não houve guerra por causa disso, mas nunca fiando, muito menos na virgem como fez o coitado do VICENTE...  E desde aí e para sempre LISBOA será  o reino dos CORVOS...


João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

2 comentários:

  1. Fantástico! e eu pensando que Lisboa era o reino dos mouros! Abraço companheiro...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também pode ser, mas olha que o grande José Cardoso Pires também lhe chamou A REPÚBLICA DOS CORVOS, num admirável livro de contos com o mesmo nome... Aconselhável em período de confinamento1 Abraço

      Eliminar