A ÁRVORE DA POMBA ROXA...
Ontem, finalmente e de uma só cajadada, matei a barriga de misérias e as saudades da minha secreta LISBOA, desconfinei-me por completo e ao deixar-me perder pelos bairros mais esconsos e mais genuínos da enorme cidade abri o grande baú das pandóricas lembranças e hoje, inevitavelmente, acordei ressacado de tantas memórias visuais, sonoras, olfactivas, orgânicas...
E voltei a viver em todo o seu esplendor aqueles estudantis e maravilhosos finais anos 80 em que sempre que o sábado era livre e o tempo me convidava e para isso bastava apenas ele não ter acordado com ar de chuva, lá descia eu do meu ancestral ninho pelas escadas de grossa e imortal madeira rangente do tempo da monarquia e, antes da medicinal meia-de-leite directa da máquina e do ansiado mil-folhas transbordante de creme na pastelaria Valbom, lá atravessava eu a avenida para comprar o jornal e me dirigir aos jardins suspensos da babilónica Gulbenkian... E se há coisas simples mas maravilhosas que só valorizamos passado muito tempo desperdiçado, no meu caso, é esse pequeno mas prazenteiro desvio primaveril que fazia pela Miguel Bombarda para me deixar inebriar pela deslumbrante côr dos JACARANDÁS que enxergava da minha pacata janela e que tornavam o meu horizonte púrpura...
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"Visão matinal da Valbom" - Jean-Charles Forgeronne |
Claro que agora sei que há santuários de JACARANDÁS muito mais imponentes e com árvores muito mais antigas e frondosas, por exemplo as do Parque Eduardo VII ou as de Belém, mas estes são os meus, aqueles que via da minha janela e que aturavam as minhas alucinações e aos quais perguntava como seria o futuro, e ontem, passadas tantas primaveras, lá os encontrei, igualzinhos na mesma exuberância, dizendo-me como antes que tudo há-de correr bem, que os exames não são demónios e que é tudo uma questão de tempo, não do tempo corrido e contado mas sim do tempo que, ainda que pouco, damos aos pequenos pormenores, como é o caso desta extraordinária e esperançosa beleza que nos é proporcionada por um olhar, basta abrir os olhos e desfrutá-la...
Mas depois vem o desconforto da ignorância, reparo agora que pouco sabia sobre estes meus fiéis companheiros de sonhos e aventuras, também tenho uma boa desculpa, afinal naquele tempo não passava de um jovem ansioso com outras prioridades e preocupações, e vai daí tive hoje uma veneta e de um modo compulsivo pedi encarecida ajuda ao meu grande amigo JOÃO ATEMBORÓ, o célebre naturalista aqui de Valmedo e que me enviou há pouco as seguintes notas que com reverência transcrevo:
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"O meu jacarandá" - Jean-Charles Forgeronne |
"Esta árvore é originária da América do Sul e a espécie que ornamenta muitos locais de Lisboa, o sul de Portugal e a Madeira é originária do sul do Brasil, tendo sido trazida pelo Jardim Botânico da Ajuda no início do século XIX, com muitas reservas pois eram poucas as probabilidades de sobrevivência neste clima lisboeta, mas o certo é que a planta se adaptou e hoje, para muitos daqueles que lidam com jardins, ela tornou-se a mais bela das árvores... O jacarandá detesta o frio, por isso que me desculpem os meus amigos portugueses a norte de Lisboa, se quiserem ver a mais bela das árvores ornamentais terão que vir cá abaixo, pelo menos até à capital do reino mouro. Uma curiosidade preciosa do jacarandá é que ele nunca nos deixa a nu, é que apesar de ser uma árvore de folha caduca ela não chega a estar verdadeiramente nua porque é então, nesse curto período em que não tem uma única folha e que está a acontecer neste preciso momento, que a floração exuberante surge... A enorme beleza que ressalta dos 15 metros de altura da árvore ressalta da copa que faz lembrar uma gota de água invertida, das folhas recompostas por mais de uma centena de folíolos e pelas flores que lembram uma pomba roxa de cauda branca..."
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"Pombas Roxas" - João Plástico |
E agora fecho os olhos e sinto-me novamente a desbravar caminho através dos eternos patos que são os verdadeiros donos do jardim, juraria mesmo que ainda são os mesmíssimos patos com que me cruzei décadas atrás, mas volto a sentir-me em harmonia com as cósmicas vibrações do além quando me sento num canto superior do anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian, lendo as desgraças que reinam pelo mundo, tal qual hoje, mas depois, quando entro pelo suplemento das artes do DN adentro a coisa ameniza-se um pouco e depois de feitas com sucesso as palavras cruzadas, quando farto de ler e de olhar para o palco e para o lago tranquilo lá atrás me lanço ao regresso a casa para um almoço tardio que ainda não sei o que vai ser, não resisto, volto a ir pelo caminho mais longo, pelo caminho da sombra dos JACARANDÁS...
João Conde Valbom
(Olisipógrafo de Valmedo)
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