A AVE DE MAU AGOIRO...
- Que fazem aqui, canalha? - tal qual assim naquela voz rouca e tenebrosa nos recebeu o imponente Augusto do carro de praça...
E eu, que não gostava nada da criatura porque sempre que ele se cruzava com algum gaiato numa rua da aldeia desatava a fazer caretas a um ritmo diabólico e ainda hoje consigo ver aquela bocarra aberta que mostrava uns sujos e enormes dentes lupinos e que tinha o condão de me dar corda às pernas ligeiras para fugir dali a sete pés! Brincadeira, diziam-me uns, até é engraçado, lançavam outros, tens medo daquilo? perguntavam-me todos a rir, o certo é que encontrar o homem das caretas era um pesadelo para mim... Até a minha avó me fazia lembrar que ele não era assim tão má pessoa quanto isso e que eu deveria até estar-lhe grato porque se não fosse ele e o seu carro de praça anos antes a altas horas da noite a servir de ambulância não estaria agora aqui a contar estas aventuras devido a uma apendicite quase peritonite, mas mesmo assim isso não me sossegava... E a culpa toda era do Márito dos Plásticos, alma danada e orfã que vivia com o avô negociante dos antepassados pré-históricos dos recipientes tupperwarerianos, era um deleite ver passar o velhote com ar achinesado na sua motoreta ensurdecedora de dois lugares a caminho das feiras, com o Márito à pendura e rebocando os plastificados utensílios ainda estranhos numa era em que no país profundo ainda imperavam os tachos de barro e os fornos a lenha... Dias antes tinha-me ele confessado:
- Sabes, o Augusto do carro de praça tem um CORVO numa gaiola!
- Um corvo? - repeti apesar de ter ouvido muito bem logo à primeira...
- Sim, não acreditas? - e sem dar tempo para resposta - Fui lá com o meu avô entregar-lhe uma caixa daquelas que ele vende e ele mostrou-nos o bicho!
E o Márito, que de tão inocente e puro que era não sabia inventar nem mentir, ali estava dois passos à minha frente a encarar o terrível homem das caretas, vínhamos nós de fisga na mão após uma excursão exploratória pelos campos primaveris e ao passar pelo barraco do Augusto até me arrepiei quando vejo o meu amigo a bater no portão de lata e virando-se para trás encarou-me e disse:
- Não é tarde nem é cedo, vamos ver o CORVO!
- Encontrei-o lá em baixo ao pé do ribeiro, muito quieto e encolhido... Tem uma asa partida... Se ele recuperar e conseguir voar hei-de libertá-lo!
E para espanto meu, a voz do caramunheiro até me soou humana enquanto ia olhando de boca aberta para a enorme gaiola onde o corvídeo, assustadoramente negro e brilhante e de asa à banda ia saltitando e mirando-nos por um olho escuro como o bréu...
- Como se chama ele? - ouve-se então o Márito.
- VICENTE!
- Porquê? - saíu-me baixinho da boca sem eu o querer.. E até fiquei vaidoso por essa coragem...
- Então? VICENTE é nome de CORVO, todos os corvos se chamam VICENTE... E que espertos são estes bichos, não se deixam enganar, não...Mas daí a serem o Diabo, isso não!
E foi aí que cintilou a primeira faísca de simpatia que senti pelo homem das caretas, alguém que gostava assim tanto das criaturas da natureza e cuidava delas não podia ser um monstro e já muitas vezes tinha eu ouvido contado pelas velhas à braseira nas noites invernais que havia muitos bichos maléficos por aí, desde o gato preto ao corvo que era para muitos a reencarnação das almas condenadas e que às vezes representava o próprio Diabo! E quando um corvo grasnava à noite isso significava que era a alma de uma pessoa assassinada em busca de auxílio... Ave de mau agoiro!
E depois, quando já estávamos para sair dali, o Vicente do Augusto falou para meu arrepio:
- "Eusébio"
- É, ele também é do Benfica....
E depois o Vicente desata a fazer um estranho barulho que me pareceu familiar mas que não estava a identificar...
- "Vrrrrrumm uummmmmm vrum"
- É o barulho do meu carro... - sussurrou o Augusto, de olho preto brilhante e suave sorriso na carranca...
- Sabes, senti uma coisa muito esquisita, um arrepio, é como se aquele corvo soubesse o teu destino, tás a ver? - disse-me o Márito já na rua crepuscular...
E eu, que nem dei resposta de tão impressionado que ia, desde esse dia aprendi que a primeira impressão pode ser muito errada e hoje passado tanto tempo ainda penso no Márito e naquele bicho negro de mau agoiro, é que passado pouco tempo desde aquele dia o meu amigo se enforcaria numa madrugada de domingo, na oliveira mais recatada do adro da igreja, todo vestido de negro...
João Pena Seca
(Escritor de Valmedo)
- Sabes, o Augusto do carro de praça tem um CORVO numa gaiola!
- Um corvo? - repeti apesar de ter ouvido muito bem logo à primeira...
- Sim, não acreditas? - e sem dar tempo para resposta - Fui lá com o meu avô entregar-lhe uma caixa daquelas que ele vende e ele mostrou-nos o bicho!
E o Márito, que de tão inocente e puro que era não sabia inventar nem mentir, ali estava dois passos à minha frente a encarar o terrível homem das caretas, vínhamos nós de fisga na mão após uma excursão exploratória pelos campos primaveris e ao passar pelo barraco do Augusto até me arrepiei quando vejo o meu amigo a bater no portão de lata e virando-se para trás encarou-me e disse:
- Não é tarde nem é cedo, vamos ver o CORVO!
- Encontrei-o lá em baixo ao pé do ribeiro, muito quieto e encolhido... Tem uma asa partida... Se ele recuperar e conseguir voar hei-de libertá-lo!
E para espanto meu, a voz do caramunheiro até me soou humana enquanto ia olhando de boca aberta para a enorme gaiola onde o corvídeo, assustadoramente negro e brilhante e de asa à banda ia saltitando e mirando-nos por um olho escuro como o bréu...
- Como se chama ele? - ouve-se então o Márito.
- VICENTE!
- Porquê? - saíu-me baixinho da boca sem eu o querer.. E até fiquei vaidoso por essa coragem...
- Então? VICENTE é nome de CORVO, todos os corvos se chamam VICENTE... E que espertos são estes bichos, não se deixam enganar, não...Mas daí a serem o Diabo, isso não!
E foi aí que cintilou a primeira faísca de simpatia que senti pelo homem das caretas, alguém que gostava assim tanto das criaturas da natureza e cuidava delas não podia ser um monstro e já muitas vezes tinha eu ouvido contado pelas velhas à braseira nas noites invernais que havia muitos bichos maléficos por aí, desde o gato preto ao corvo que era para muitos a reencarnação das almas condenadas e que às vezes representava o próprio Diabo! E quando um corvo grasnava à noite isso significava que era a alma de uma pessoa assassinada em busca de auxílio... Ave de mau agoiro!
E depois, quando já estávamos para sair dali, o Vicente do Augusto falou para meu arrepio:
- "Eusébio"
- É, ele também é do Benfica....
E depois o Vicente desata a fazer um estranho barulho que me pareceu familiar mas que não estava a identificar...
- "Vrrrrrumm uummmmmm vrum"
- É o barulho do meu carro... - sussurrou o Augusto, de olho preto brilhante e suave sorriso na carranca...
- Sabes, senti uma coisa muito esquisita, um arrepio, é como se aquele corvo soubesse o teu destino, tás a ver? - disse-me o Márito já na rua crepuscular...
E eu, que nem dei resposta de tão impressionado que ia, desde esse dia aprendi que a primeira impressão pode ser muito errada e hoje passado tanto tempo ainda penso no Márito e naquele bicho negro de mau agoiro, é que passado pouco tempo desde aquele dia o meu amigo se enforcaria numa madrugada de domingo, na oliveira mais recatada do adro da igreja, todo vestido de negro...
João Pena Seca
(Escritor de Valmedo)
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