terça-feira, 2 de abril de 2019



ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - IV


JORGE LUÍS BORGES


A ironia era um dos inestimáveis atributos de Jorge Luís Borges que não se cansava de dissertar sobre a a surrealidade deste mundo cão e não se coibia, antes pelo contrário, de abordar os assuntos mais sensíveis, como a sua cegueira por exemplo, ao afirmar aos quatro ventos que Deus possuía uma magnífica ironia pois o tinha abençoado com «os livros e a noite»...  Mas a ironia não tem fim, tal qual a Biblioteca infinita de Borges, e quem hoje deambular pelas Avenidas Novas da capital portuguesa acabará por avistar um pequeno mas simpático jardim no exacto local onde existiam há anos as oficinas da Carris, chamam-lhe, a propósito, o Jardim do Arco do Cego, por se situar no bairro também assim misteriosamente chamado, Arco do Cego, e o que se encontra no centro desse jardim? Jorge Luís Borges, ou melhor, o seu memorial! Macabra ironia, poder-se-á pensar ao primeiro impulso, mas é aquele um monumento à cegueira ou ao escritor? Não havia melhor sítio do que aquele cego jardim para honrar a memória do cego escritor? Deliciosa ironia geográfica, amigo leitor de Borges, é que por coincidência a Embaixada da Argentina, pátria do escritor e de onde tinha saído anos antes a ideia de criar o memorial, fica ali mesmo na esquina e então que melhor local para honrar o grande vulto das letras argentinas do que este, afinal?




Mas, gostaria Borges da ironia, não é uma estátua do escritor que ali podemos encontrar mas sim a sua imaginação, a sua mão e as suas palavras! Uma NUVEM em mármore simbolizando a imaginação encima a obra que mede dois metros de altura e pesa duas toneladas e onde, no meio da estrutura, se logra a MÃO do escritor retirada de um molde feito pelo escultor argentino Federico Brook no tempo em que com Borges conviveu, e ainda há lugar e tempo para a leitura de um excerto do poema "Os Borges" onde o poeta alude com orgulho às suas origens lusitanas, o bisavô era natural de Torre de Moncorvo e daí emigrou para a América do Sul... E fica bem a todos saber que o material principal utilizado na obra foi o granito português cinzento escuro! E também ficaria Borges imensamente feliz e orgulhoso se soubesse que no dia da inauguração do seu memorial em terras lusas no longínquo ano de 2008, lá esteve, numa das suas últimas aparições públicas, o nosso SARAMAGO...



OS BORGES

Nada ou pouco sei dos meus ancestrais
Portugueses, os Borges; vaga gente
Que na minha carne, obscuramente,
Prossegue os seus hábitos, temores e rituais.
Ténues como se nunca houvessem existido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo, da terra e do que é esquecido.
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E se deu ao mar e a outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu mas jura estar perto.

(Tradução de José Mário Silva)


João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

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