sexta-feira, 29 de novembro de 2024

 

ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - XIV

É DE PRAGA, SIM SENHOR!

Assim que saio para a rua cai-me em cima o ar fresquinho da Boémia outonal, componho melhor o cachecol, puxo o fecho do casaco para além do limite e começo a andar pelo ainda quase deserto e amplo passeio da rua 28 Rijna, que é como quem diz a 28 de Outubro, data sagrada para os checos pois nesse longínquo ano de 1918 tanto eles, fartos do domínio dos austríacos, como os eslovacos, há muito subjugados pelos arrogantes húngaros, decidiram formar o estado independente da Checoslováquia... Antes de atravessar a Václavské Námêsti, que é como quem diz a nobre Praça Venceslau, quase que sou abalroado por uma daquelas várias estranhas criaturas com que me tinha já cruzado noutras ocasiões e que perigosamente deambulam pela cidade nas horas matinais com um objecto numa mão levantada à altura dos olhos e espante-se, não é um telemóvel, é mesmo um livro aberto que vão lendo enquanto caminham! E não me pareceram ser estudantes a caminho do exame a ler matéria à última da hora, tentando compensar noites perdidas pela noite de Praga, antes são pessoas que vão a caminho do trabalho e lendo, talvez, Kafka, Kundera ou Hrabal... Esta é, afinal, uma cidade que respira livros e literatura...


E depois, na Rua Na Prikope, mesmo ao lado do Lidl onde iria comprar os croissants para o pequeno-almoço, sou surpreendido com alguém a olhar-me lá de cima, nada mais nada menos do que Rainer Maria Rilke! Mas o que fazia ele ali em Praga, ele que muitos consideram um dos maiores símbolos da poesia alemã do século XX? Não era ele alemão? Pois bem, o poeta nasceu de facto em Praga a 4 de Dezembro de 1875, ali bem perto, na rua Jindrisská, era então a Boémia uma possessão do império austro-húngaro e o busto que agora observo foi montado na fachada de uma antiga escola alemã que o poeta frequentou quando era criança...


E depois do almoço com o M. no seu bairro de Holesovic, deambulando pelas imediações da Galeria Nacional, não é que dou de caras novamente com Rilke? Ali está ele num bloco de granito, imortalizado com os últimos versos da sua Nona Elegia...

João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

 

OS LIVROS DE PRAGA

Chegámos cedo, antes das dez, a anunciada hora de abertura das portas mas mesmo assim já existia fila, uma vintena de curiosos como nós já aguardava impacientemente à nossa frente... Estamos na Mariesnski Namesti, uma nobre praça rodeada por um palácio, pelo novo edifício da Câmara Municipal, pela Biblioteca Municipal e ainda pela Biblioteca Nacional, esta última aquela onde desejamos ansiosamente entrar para ver o infinito...



O infinito? Sim, tal qual assim o viu o artista eslovaco Matej Krén ao empilhar cerca de 8 000 livros numa torre hipnótica a que deu o nome de "Idiom", também conhecida pela "Coluna do Conhecimento" e que graças a um sistema de espelhos gera a sensação de parecerem muitos mais livros, tantos que parecem ser infinitos, tal qual o infinito a que nos pode transportar a leitura dos mesmos... 


O curioso é que esta obra de arte já está ali no átrio da Biblioteca Nacional de Praga desde 1998, vai para 26 anos, e ali esteve tranquila e quase despercebida durante muitos anos, acessível e de uma forma gratuita já que a Biblioteca é uma instituição pública, mas um artigo publicado no guia de viagens "Lonely Planet" fazendo referência ao local descambou numa viral busca por parte dos visitantes de Praga, especialmente daqueles que gostam de livros... Não admira pois que na minha primeira visita à cidade, há seis anos atrás, com um guia velho e desactualizado na mão, embora da Lonely Planet, nem sequer soubesse da sua existência, hoje é uma atracção turística tão importante e imperdível como os museus do Kafka ou a Galeria de Arte...

JoãoVírgula
(Leitor de Valmedo)


 ESCRITO NA PAREDE - XXXVII




quinta-feira, 21 de novembro de 2024

 

A ÚLTIMA VOLTA PELA ILHA

É sempre assim, quando visito uma ilha e se no dia da partida o horário do voo ainda permitir umas últimas horas estas são gastas numa derradeira volta, quase sempre pela costa como se quisesse sentir o que é ser ilhéu e comprovar a definição dada por Nemésio, ele próprio um ilhéu: "um corpo rodeado de mar por todos os lados"...  

"Biscoitos" - Jean-Charles Forgeronne

Pela terceira vez demandamos os Biscoitos e novamente sem conseguir ir ao banho, na primeira visita estávamos digerindo uma alcatra que dava alimento para três dias, na segunda íamos apenas de passagem para a Agualva e o tempo urgia mas agora sim, seria o banho sonhado, mas eis que o mar estava bastante agitado e pouco convidativo... 


"Palmilha ao banho" - Jean-Charles Forgeronne

Mais tarde virou o tempo, chuviscos e o céu pintado de cinzento, mas os 25º da água da Baía do Refugo, em Porto Judeu, foram irresistíveis, um maravilhoso banho de despedida, com as Cabras a meia dúzia de braçadas...
Almoço no Boca Negra, uma alcatra de peixe sem mácula, que é como quem diz em açoriano uma caldeirada à maneira e depois ala que se faz tarde para a tourada à corda na vila das Lajes, a última da temporada...

"Valentia à prova" - Jean-Charles Forgeronne

Depois da festa taurina, esse tamanho mistério entranhado nestas gentes da Terceira e que talvez só possa ser explicado por acontecimentos tão remotos e extraordinários que escapam à nossa história e ao nosso entendimento, atalhamos pelo centro da ilha até sermos barrados por uma caravana de simpáticas bestas...

"Manda o gado!" - Jean-Charles Forgeronne

E chegando finalmente a Angra para recolher a bagagem e abalar, foi inevitável contornar a rotunda onde impera o monumento aos toiros, e então ecoam as palavras de Joel Neto no seu hino à Terceira: "toiros protegendo a paisagem como outros iguais a eles protegendo o templo de Poséidon, ao qual corriam os dez reis atlantes, vindos dos reinos a poente das colunas de Hércules para os desafiar com recurso apenas a varas e cordas".

"A dança dos toiros" - Jean-Charles Forgeronne

 
João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

 

ESCRITO NA PAREDE - XXXVI


Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

LENDAS E NARRATIVAS - XXIV

BRIANDA, UMA MULHER DE CORNOS

Nunca a ilha Terceira mostrou obediência ou vassalagem aos Filipes de Espanha que ocuparam o reino de Portugal durante 60 anos e essa rebeldia era uma espinha atravessada na garganta dos invasores devido especialmente à enorme importância do porto de Angra no comercio entre a Europa e as Américas... Assim, querendo resolver rapidamente essa questão, em Julho de 1581 os castelhanos desembarcam em força contra os insurrectos terceirenses, convencidos de que seria uma fácil vitória tal a desproporção das forças em contenda...

"Passagem do gado bravo", Figueiras Pretas- Jean Charles Forgeronne

Embora não conste dos registos oficiais da época, o destino da batalha da Salga seria bem diferente graças a uma mulher, Brianda Pereira, que por ter marido e filho reféns dos invasores convenceu outras mulheres nas mesmas  circunstâncias a insurgirem-se contra o inimigo, vai daí teve a ideia de lançar lá do alto o gado bravo de cornos afiados contra os espanhóis e foi tudo a eito, na baía da Salga os arrogantes espanhóis acabaram dizimados...

"Baía da Salga"- Jean-Charles Forgeronne 


Claro que, apesar de cruciais, não terão sido apenas os cornos afiados do gado bravo a ditar o desfecho da contenda, muito importante também terá sido, segundo a lenda, o contributo dos valorosos camponeses que se lançaram contra o inimigo logo atrás das bestas, mas diz-se de geração em geração que o que ditou mesmo o destino da decisiva batalha foi a inteligência e a coragem de Brianda...  E não voltaram os espanhóis a tentar subjugar a Terceira, um brinde pois a ela...

João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

 

"Avião perturba o culto do Divino Espírito Santo" - Carlos Carreiro, 2006; Foto- Jean-Charles Forgeronne

 

OS IMPÉRIOS DA TERCEIRA


Os impérios são pequenos templos, únicos na arquitectura portuguesa, construídos graças à devoção que os açorianos, especialmente os terceirenses, nutrem pelo culto do Espírito Santo... Só na ilha Terceira existem 45 (!) destes pequenos templos, todos muito mais coloridos do que nas outras ilhas...

"Império da Caridade", Praia da Vitória - Jean-Charles Forgeronne

Além disso, os impérios da Terceira são também mais vistosos e ornamentados, afinal é reflexo da alegria esfuziante com que os terceirenses vivem o divino, de um modo muito mais positivo e festivo do que os seus vizinhos de São Miguel, por exemplo...

"Império dos Biscoitos"- Jean-Charles Fogeronne

E enquanto que os são-miguelenses vivem as suas festas religiosas debaixo de um manto de penitência e coitadismo, quase que em modo obscurantista, fruto do facto de as garras da diabólica Santa Inquisição lhes terem terem amarfanhado a alma, já os terceirenses, livres dos diabólicos justiceiros católicos que nunca chegaram à indómita Terceira, felizmente, mantiveram a ancestral alma pura e festiva...

"Império do Cabo da Praia" - Jean Charles Forgeronne

Entre o domingo de Páscoa e o de Pentescostes, isto é 50 dias depois e onde se comemora a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e demais seguidores de Jesus, ocorrem por toda a ilha Terceira um número infinito de festas e rituais em redor dos impérios... E ainda bem...

"Império de São Sebastião" - Jean-Charles Forgeronne

 E eles são tantos que apetece coleccionar, tal qual os cromos da bola... Ou então fazer um jogo entre amigos: lançam-se as fotos para a mesa e ganha pontos quem identificar o império... 

"Império-mistério" - Jean-Charles Forgeronne

João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo) 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Praia da Vitória" - Jean-Charles Forgeronne

 
ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - XIII

NEMÉSIO, A CONSCIÊNCIA DOS AÇORES

Pode acontecer antes ou depois da alcatra ao almoço, pode acontecer antes ou depois da obrigatória ida ao miradouro da Serra do Facho onde a vista sobre a marina e a cidade é inebriante, pode ser até sem planeamento prévio mas em qualquer passeio a pé pelo centro histórico da Praia da Vitória é inevitável passar por ali, pela pequena praça onde Vitorino Nemésio nos espera com a sua paciência de ilhéu... Ali está ele, em frente à chamada "Casa das Tias", antigo solar da família onde o escritor passou grande parte da sua infância e adolescência e que hoje, a preceito, alberga a Biblioteca e a sede da Assembleia Municipal, de ar sereno e com os inevitáveis óculos de aro grosso na mão, aqueles de que nos lembramos quando o víamos a preto e branco no "Se bem me lembro...".


"Vitorino Nemésio à porta de casa" - Jean-Charles Forgeronne

Vitorino Nemésio honra a etimologia do seu nome, Vitorino porque da Praia da Vitória e Nemésio porque tem origem no grego nemesis e que significa não só "justa indignação" como também " partilhar, distribuir a cada um o que é seu", e muito partilhou ele da sua sabedoria....

"Sou ilhéu. E tanto ou mais do que a ilha, o ilhéu define-se
 por um rodeio de mar por todos os lados."
                                                          (in "O Corsário dos Mares")

João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

"Lenda da Lagoa do Negro"- Nuno Confraria

 

LENDAS E NARRATIVAS - XXIII

A LAGOA DO NEGRO

Diz-se que há muitos muitos anos vivia na Terceira uma nobre família, um casal com uma única filha e que como era normal então tinha ao seu serviço escravos negros. A jovem donzela, submissa, aceitou um casamento sem amor imposto pelo seu pai embora vivesse uma paixão secreta com um escravo... Os amantes encontravam-se em segredo, como era conveniente, e porque sabiam que ali nunca poderiam ser felizes ainda chegaram a combinar uma fuga para a felicidade mas uma aia que os espiava a mando do desconfiado marido denunciou-os provocando a ira do cornudo que ordenou a prisão do escravo; este, ouvindo os cães de caça e os cavalos ao longe que vinham na sua direcção fugiu o mais que pôde para o interior da ilha e após ser encurralado e sem forças para continuar a fuga caiu de joelhos em desespero e a chorar a sua triste sina... Chorou tanto, mas tanto, que as suas lágrimas criaram uma linda lagoa, hoje chamada Lagoa do Negro, para a qual o infeliz se atirou para aí morrer afogado...  

"Lagoa do Negro" - Jean-Charles Forgeronne


João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXXIV

DE CANADINHA EM CANADINHA... 


Tal como o gigante Anteu, filho de Poseidon, que na sua titânica luta com Hércules cada vez que ia ao chão ganhava para a batalha novas forças ao regressar para os braços da sua mãe, Terra, assim nós, derrotados e expulsos da Grota do Medo, regressamos a casa para ganhar novo ânimo, deixamos para trás aquela canadinha de bagacina que leva ao Outeiro das Pedras e regressamos a Angra para recuperamos forças n' "A CANADINHA", uma casa-de-pasto-e-bem-comer, felizmente situada mesmo ao lado do alojamento e ainda com o bónus de ter o enorme Pantonio mesmo em frente...  A primeira boa impressão que se tem d' "A Canadinha" é a simpatia e eficiência dos seus funcionários, quer de quem gere as mesas como de quem as serve, mas claro que a impressão mais forte que se  leva dali e que perdurará na memória por longo tempo é a qualidade dos repastos que nos são oferecidos... Não seria necessário porque já tínhamos a casa referenciada e também porque graças à sua proximidade mais cedo ou mais tarde lá iríamos dar mas ao pequeno-almoço já a Isabel, simpática terceirense de gema e conhecedora de tudo o que é bem-comer, nos tinha recomendado a alcatra da Canadinha... 

Vimo-la sair várias vezes, vaidosa e a largar aromas celestiais pelo caminho, mas como já tínhamos comido alcatra na véspera optámos por outras ofertas, começando por uma sopa de carne que já ela por si própria seria uma refeição integral em casa, depois vieram as obrigatórias lapas na chapa, que delícia, e depois ainda uns chicharritos fritos, bem servidos, e obrigatoriamente um peixe, boca-negra  grelhado! Que festival... 
Para o fim estava reservada a derradeira e agradável impressão, aquilo que se paga pela qualidade das iguarias leva-me a afirmar que ali se come muito bem e barato, comparando com os carregados menus turísticos que abundam pela ilha... A voltar, sempre que possível...




João Ratão
(Chef de Valmedo)

 
TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO - XIV

A GROTA DO MEDO E O MEDO DA VERDADE...


"Império da Grota do Medo"
Antes de mais devo confessar que o principal farol desta intrépida aventura que aqui se relata foi aquela outra do José Artur, personagem central do romance "Arquipélago", de Joel Neto, e tal como ele, perdidos na demanda das secretas pedras da Grota do Medo, também pedi informações num café à beira da estrada em Posto Santo onde me indicaram as montanhas lá em cima sobre a freguesia, por onde eu e a N. já nos tínhamos perdido naquela manhã por caminhos sem saída e aí chegados, perdidos novamente, tal como ele, voltei a indagar junto do café situado mesmo em frente ao império... Dessa vez, e seria a última tentativa porque já íamos desesperando, especialmente a N. que tem para contar várias expedições minhas em busca de tesouros arqueológicos que depois se revelam pouco gratificantes para o esforço e paciência investidos... -"Calma - ia eu moralizando ao mesmo tempo que consultava pela enésima vez o pequeno mapa que tinha rabiscado ainda no continente e olhando ao redor em busca dos pontos cardeais - está quase, deve ser mesmo por aqui, cheira-me que é por esta mata adentro." - "E vale mesmo a pena, vais ver!" Tinha que ser mesmo ali, tínhamos estacionado o carro mesmo ao lado do império e seguido a pé pela canadinha de bagacina de que falara o homem do café, e agora ali estava à esquerda aquela que só poderia ser a vereda mencionada que entrava mata adentro pelo Outeiro das Pedras, assim lhe chamavam as pessoas dali...

"N a caminho da Grota"
Ignorando umas pequenas tabuletas presas ao tronco de duas árvores avisando de que ali era propriedade privada começamos a subir a ladeira e passadas umas dezenas de metros já se viam algumas prometedoras e curiosas formações rochosas cobertas de verde e pensei para comigo que nem valeria a pena começar logo aí a tirar as obrigatórias fotos, o melhor seria investigar tudo a eito no regresso, primeiro iríamos até ao fim e dele faríamos o principio da nossa investigação... Que bom, a coisa prometia, chegamos depois lá ao cimo onde o caminho vira à direita e quando o fizemos vinha alguém em passo estugado a descer na nossa direcção, abrindo os braços e dizendo algo que eu não consegui, ou antes não quis, perceber logo... Dizia a jovem repetidamente: -"Não podem estar aqui! Isto é propriedade privada, não viram os avisos lá em baixo?" E que não, que não podíamos estar ali mesmo depois de eu afiançar que éramos apenas turistas e que queríamos apenas dar uma olhadela às pedras que alguns dizem ser monumentos megalíticos, que seria uma visita rápida e mesmo depois de ter lançado como causa da nossa intromissão a leitura do livro do Joel Neto na esperança de que talvez a moça fosse uma leitora e fã do escritor e assim baixar a guarda, mas nem uma nem duas, não deu um sinal sequer de saber quem ele era, antes mostrou à evidência que a missão de que estava incumbida era mesmo expulsar-nos dali mas isso não foi necessário, saímos a bem pelo próprio pé... Novamente na canada de bagacina de regresso ao carro não pude evitar a mesma sensação que o José Artur sentira ao descobrir a reunião da sociedade secreta em plena Grota do Medo, algo me dizia que alguém queria manter o local inacessível aos meros curiosos como nós, e depois pensei se não teria sido alguém com quem falámos nos cafés a avisar a guarda do território para a nossa intenção de visita, afinal aquela moça era a mesma que tínhamos visto logo de manhã aquando da nossa primeira tentativa de achar o local, várias vezes a víramos andar por ali de carro... Que desilusão, estar tão perto e nada, nem uma simples foto, mas é a vida de explorador, há que saber lidar com os fracassos, resta-me depois voltar a ler sobre o assunto e rever os vídeos que circulam pela net... 


"Túmulo com mais de 2500 anos" - Foto: Angroesfera 

O chamado Complexo Megalítico da Grota do Medo foi descoberto apenas em 2012 e logo provocou uma acesa polémica: por um lado muitos especialistas, alguns estrangeiros, a defenderem que o sítio é de facto neolítico e pré-histórico, do outro a arqueologia "oficial" portuguesa" a defender a tese de que os 6 dolmenes identificados pelos primeiros não são mais do que penedos soltos que caíram naquela posição, aquilo que em geologia se chama "caos de blocos"... Claro que é uma coincidência muito forçada, chocante até, os grandes blocos de traquite expelidos pelo vulcão Guilherme Moniz há milhares de anos terem-se naturalmente encaixado de tal forma a criar estruturas similares aos túmulos megalíticos que existem pelo norte da Europa, acredita quem quer! Além disso, as formações rochosas da Grota do Medo estão repletas de pias, canais e orifícios abertos na rocha e de inscrições, aliás cada dolmen tem uma pia na sua parte superior... 

                                                                                                                            Grota do Medo


"A investigadora terceirense e o dolmen

Construção ou processo natural? Escolho a primeira, afinal isso esclarece-me o porquê do local estar interdito e ao abandono pelas entidades oficiais, quase apetece dizer que quem fala do assunto é olhado de lado, é que a primeira hipótese levanta outra incómoda questão: se há milhares de anos já havia na Terceira quem construía estruturas megalíticas como sustentar a verdade histórica oficial de que foram os Portugueses os primeiros a chegar à ilha no século XV? E levanta-se ainda outro véu, aquele que encobre a hipótese de as ilhas açorianas serem aquilo que restou da Atlântida engolida pelas águas...

"Foi então que começou a vê-las: pias de diferentes dimensões, entalhadas em rochas dispersas por entre as árvores - e logo a seguir, à beira de um pequeno precipício, três grandes lajes assentes sobre fragas, com as quais formavam construções semelhantes àquelas a que, em certos lugares da Irlanda e da Escócia, se chamavam bullauns.
Arregalou os olhos.
- Dólmenes?
Todas as três construções tinham a entrada virada a leste,  cada uma - imaginou- na direcção da aurora de um momento particular entre solstícios.
- Dólmenes...Aqui debaixo do meu nariz. A cinco minutos de casa!"

                                                                                    (in Arquipélago, Joel Neto)

João Parte Pedra
(Geólogo de Valmedo)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

 

LIVROS 5 ESTRELAS - XXXIX

O ARQUIPÉLAGO DA MEMÓRIA

Avisa-se na capa que é um romance e os avisos, todos sabemos ou julgamos saber, à laia de precaução devem ser levados em consideração para que se evitem consequências desastrosas, mas neste caso, e bastam poucas páginas lidas para isso acontecer, o ávido leitor cedo se consciencializa de que está na presença de algo muito maior do que uma mera trama de ficção, "Arquipélago" pode ser encarado como um romance, sim, mas é na realidade muito mais do que isso, é um testemunho de memórias da Terceira e uma declaração de amor à sua terra por parte de Joel Neto, ele próprio um terceirense inquieto...  




A memória é feita de tempo, de gente e de histórias e nada disso falta neste romance, centrado no terrível terramoto de 1980 que assolou a Terceira e arrasou Angra do Heroísmo mistura num delicioso caldinho o mistério de uma criança desaparecida e o mistério de um homem incapaz de sentir os terramotos com outro mistério maior: a possível ligação dos Açores ao mítico reino da Atlântida! Um grande romance, uma epopeia, uma homenagem à história e às gentes do arquipélago... 

"Sentiu que descobria outra Terceira ainda: uma ilha fechada sobre si mesma, cujo centro de gravidade era já não o mar, mas as próprias entranhas da terra. Atravessou a Caldeira de Guilherme Moniz, tentando sentir as vibrações dos vulcões que respiravam sob os seus pés, e passeou-se pelo Biscoito da Ferraria, perdendo-se até por dar por si no meio de grandes toiros pretos que pastavam entre a laurissilva."

João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

"Vulcão de Santa Bárbara visto do Vulcão do Monte Brasil"

Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)


A RAIVA DO VULCÃO - XI 

DENTRO DE UM VULCÃO!

O que não falta nos Açores são vulcões, só na ilha de São Miguel contabilizam-se cerca de 500(!) e em todo o arquipélago 26 estão activos, 8 dos quais submarinos e apesar de não darem sinal há séculos podem entrar em erupção a qualquer momento... Na Terceira e desde 2022 tem o Vulcão de Santa Bárbara dado sinais de reactivação colocando em alerta os cientistas e a população, a ele se deve a actividade sísmica registada nos últimos tempos, felizmente com fraca intensidade...


"Cratera do Vulcão de Santa Bárbara" - Jean-Charles Forgeronne

Aos amantes da vulcanologia não faltam motivos de interesse para uma exploração da ilha Terceira, não pela quantidade de vulcões mas sim pela sua variedade e beleza, no meu caso o prazer da descoberta começou logo aquando da chegada a Angra do Heroísmo ao levantar o olhar para a imponente montanha a que chamaram Monte Brasil e que domina lá do alto a baía e a cidade, e é bem possível que os mais distraídos não sonhem sequer que estão a olhar para um vulcão submarino, é necessário subir lá acima e descobrir a cratera para tirar as dúvidas....

"Cratera do Monte Brasil" - Jean-Charles Forgeronne

Para encontrar sinais de outro vulcão submarino basta olhar para leste e contemplar o Ilhéu das Cabras, um conjunto de dois rochedos e que, sendo a parte visível das paredes da cratera, é hoje uma zona de nidificação de aves marinhas...

"Ilhéu das Cabras" - Jean-Charles Forgeronne

Mas o clímax acontece quando entramos  Algar do Carvão adentro, um dos poucos vulcões visitáveis no mundo inteiro! A cratera do vulcão é a céu aberto e deixa entrar a luz natural, e que sensação e que deslumbramento é depois a descida pela chaminé do vulcão até aos 100 metros de profundidade, por entre paredes revestidas a vegetação, estalactites e estalagmites, até encontrar lá no fundo uma lagoa de água cristalina... E dá para imaginar se ali não estamos em pleno Agartha, esse mítico reino subterrâneo...  

"Algar do Carvão" - Jean-Charles Forgeronne

João Lava
(Vulcanólogo de Valmedo)

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

 

"Iluminação das Cabras" - Jean-Charles Forgeronne

 
ANGRA, O REFÚGIO ABENÇOADO POR POSEIDON...

Poseidon, o senhor da Atlântida, era para os antigos e sábios gregos o deus dos mares, dono de um temperamento difícil, talvez até bipolar, se ontem estava com os azeites lá vai disto e desatava a criar terríveis tempestades e terramotos mas se hoje o dia lhe calhasse tranquilo lá ele protegia as águas e os marinheiros, tornava-se até afável e um bom companheiro e a prova disso está em Angra... A importância da ilha Terceira deve-se antes de mais à sua miraculosa localização, a meio caminho entre a América e a Europa, e depois às magníficas condições da baía de Angra, um abrigo seguro que protegia de ventos, correntes e outras fúrias de Poseidon e onde todos os galeões que vinham do Novo Mundo carregados de ouro do Brasil e daquele roubado aos Maias e aos Incas e também de preciosas especiarias aportavam para abastecimento de provisões, reparações e tratamento de doenças, até para o caso de fuga aos piratas era o refúgio ideal...


"Angra segura..." - Jean-Charles Forgeronne

O crescimento de Angra, sempre ligado ao florescente comércio de Portugal e Espanha com as Américas, foi rápido e intenso, menos de oitenta anos depois da chegada dos primeiros povoadores foi elevada a cidade, em 1834, orgulhosamente a primeira cidade moderna dos Açores e do Atlântico, e em 1983, três anos apenas depois do devastador terramoto e após uma notável reconstrução, foi eleita pela Unesco Património da Humanidade...  

"Da Memória ao Brasil" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

terça-feira, 5 de novembro de 2024

 
TERCEIRA, A ILHA DA MEMÓRIA


Aí vamos nós a caminho da ilha dos espíritos, o santo e o popular, a ilha dos impérios, dos toiros, dos vulcões, das gentes heroicas, das tragédias e da resiliência, da irmandade e da partilha, da festa antes que o mundo acabe e da festa depois porque o mundo continua a existir, a ilha rebelde que desafia decretos e conjunturas, a ilha que faz frente à natureza e à ira dos deuses da Atlântida e mesmo que algum dia tudo acabasse ficaria para sempre a ilha na memória...  

"Pico da Memória", Angra- Jean-Charles Forgeronne

Porque o presente não é apenas feito da memória do passado, porque também importa aquilo que é feito hoje e que será memória honrosa no futuro, quando se chega à Terceira e primeiro se olha para a esmagadora beleza da paisagem respira-se fundo e celebra-se o momento, mas depois rapidamente nos apercebemos que é muito mais do que isso, respira-se muito mais do que o turístico cenário, sem dar por isso já fomos contaminados pelo espírito festivo e pulsante da ilha, como se o vento nos dissesse "aproveita o momento, quem sabe se terás outro..." 


Quis o destino que a nossa estadia na Terceira coincidisse com a apresentação do novo livro de um ilustre terceirense, Joel Neto, e claro que era obrigatório estarmos presentes mais que não fosse pela exigência da Susana, fã devota do escritor há longos anos... E que rica foi a conversa entre um ateu e um padre, Júlio Rocha, da Praia da Vitória, já agora um padre daqueles que eu gosto, daqueles cultos e vividos e que mete as pessoas e a memória à frente dos dogmas e da cega praxis...
E diz Joel Neto, na carta ao seu filho terceirense que um dia haverá de descobrir a Terceira, que o amor também é uma memória:
"Amamos a memória, e o mais que ouso dizer-te é que nem sempre deves confundi-la com o passado. A memória é uma reacção química, incandescência, faísca entre o tempo que vivemos e aquele que julgamos ter vivido, e nenhuma das suas demandas - parece retórica - será tão relevante como a do futuro, da mesma maneira que aquilo que os gregos tinham pela frente era a história."  


João Palmilha
(Viajante de Palmilha)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

 
AS BOAS-VINDAS DO PANTONIO

Primeiro o mundo pareceu-me enorme, infinito, especialmente depois de termos sobrevoado durante duas horas e meia uma imensidão de água atlântica que até enjoa, mas depois revelou-se-me não só pequeno como bastante curioso... Vindo directamente do aeroporto acabo de estacionar no parque do alojamento, em plena avenida Infante D. Henrique, ali em baixo adivinham-se a marina e o porto de Angra, que ainda desconhecemos porque era preciso fazer quanto antes o check-in, quando ao olhar para o outro lado da rua petrifico e desabafo: 
- Caramba! Como o mundo é pequeno!

"Pantonio" - Angra do Heroísmo, 2016, - foto: Jean-Charles Forgeronne

Ali, mesmo à frente daquela que seria a nossa casa durante a estadia na Terceira, uma pintura revestia uns gigantescos silos abandonados, umas criaturas marinhas esvoaçantes num estilo que eu bem conhecia... 
E como a N. olhou para mim com ar curioso acrescentei:
 - Não vês que isto é um sinal do Espírito Santo, sei lá, o Pantonio aqui, mesmo à frente do sítio onde vamos ficar, dia e noite!

Pantonio - Torres Novas
E depois lá fui encenando a trama que me ia no pensamento: então não sabes que o António Correia, já agora nascido na Terceira e com o nome artístico de Pantonio, está por todo o lado, repara que "pan" significa "o mundo inteiro", "universal", "todo", e que ele tem obras espalhadas por mais de 30 países?! 
 -"E depois repara ainda, até estou arrepiado, não é que ele me persegue desde que nasci?"
  -Como assim? 
Pantonio - Moledo
 - Então, tem os cavalos em Torres Novas, onde nasci, coincidência podes dizer, tudo bem, mas depois vai até ao Moledo pintar o moinho? Onde vivo? E agora está aqui, onde estou? Aliás, isto é mais do que o Espírito Santo aqui da Terceira, isto é mesmo a Santa Trindade! - exclamei - Nascer, viver e estar!
 - Vamos, precisamos de arrumar as malas... - disse ela.
 - Vamos... - respondi, de cabeça às voltas...


João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

domingo, 3 de novembro de 2024

 

ROMANTIC LISBON CITY


"Estava bonito o Campo Pequeno, pá!" - respondo àqueles que me perguntam como achei o concerto da última sexta-feira dos FONTAINES D.C em Lisboa... Os rapazes que vieram de Dublin e que são das melhores promessas musicais dos últimos tempos vieram apresentar o seu último e recente álbum "Romance" e pelo que se viu arrebataram todos os corações que esgotaram a lotação da engalanada arena... Há quem diga que aquela força inexplicável que faz as coisas acontecer e funcionar, seja nas equipas de futebol (e o vocalista Grian Chatten apresentou-se equipado a preceito como se viesse disputar uma peladinha) ou nas bandas musicais ou noutros inúmeros projectos artísticos já acompanha os Fontaines, diz-se até por aí que eles querem ser os novos U2, ou seja, querem sair do nicho pós-punk e conquistar o mundo, para já Portugal já foi tomado de assalto depois deste concerto, isso eu afianço, mas também depois daquele que deram há meses em Paredes de Coura e que, dizem, impressionou...

"Campo Pequeno" - Jean-Charles Forgeronne

Portugal parece ter o condão de acolher e abençoar certas bandas ainda em crescimento e afirmação e que depois se tornam grandes, lembre-se os outros irlandeses e maior banda das últimas décadas, os U2, em 82 em Vilar de Mouros, parece que o gosto musical dos portugueses, um gosto especial e intenso, ajudam certos projectos a dar o salto e parece ser este o caso, aquele coração pendurado no palco pulsou e fez pulsar o imaginário dos espectadores, a partir de agora os Fontaines, que parecem ter uma mensagem e não apenas mais um grupo de rapazes rebeldes e chateados com o mundo, serão certamente uma banda de culto por terras lusitanas... Aguardemos com expectativa, apesar de tudo não passou de um excelente espectáculo e de uma bela noite em redor do Campo Pequeno, que está mesmo muito bonito...

                                                               In the modern world -FONTAINES D.C


João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)