ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - V
RAMALHO ORTIGÃO
Foi mesmo um encontro imediato e intenso, depois de um turno da noite razoável e por isso mesmo surpreendente porque navegamos à vista num mar repleto de exacerbados alertas epidemiológicos, decidi no último instante atalhar caminho para evitar a estúpida rotunda-cruzamento (ou será antes um estúpido cruzamento-arrotundado?) da Rainha e enveredei pelas "traseiras", pela rua que do Hospital Termal me leva para fora da cidade... Desculpem a farpa mas adiante fará ela sentido! E foi ali, ao passar ao lado da Fábrica Bordallo Pinheiro que o meu dia mudou, ao passar resvés ao muro do Parque D.Carlos reparo na azáfama de muita gente, uns a entrar de carrinha, outros a montar banca e ainda alguns de cócoras a mexer em inúmeros objectos dispostos no chão: "Ah!" - exclamei, era dia de feira dos usados, e não hesitei, encostei na primeira oportunidade e lá fui à descoberta dalguma pechincha que valesse a pena, afinal a desculpa da falta de tempo não valia nesta manhã...
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"Ramalho Ortigão" - Leopoldo de Almeida, Caldas da Rainha |
Aos mais distraídos é hora de lhes dizer que estamos nas CALDAS DA RAINHA e que, por isso mesmo, estranhei encontrar um RAMALHO ORTIGÃO imponente e orgulhoso numa curva do caminho enquanto mirava livros fora de circulação, discos que já não se ouvem, curiosidades domésticas que já não devem funcionar e outros ferrugentos objectos que fogem ao entendimento prático... Que encontrasse o José Malhoa, o Zé Povinho ou até a Rainha D. Leonor a sair de um jacuzzi sulfuroso e não estranharia eu, agora o que fazia ali o Ramalho?
Lá tive eu que ir ao baú dos velhos livros à procura das célebres "FARPAS", essa magistral colectânea dos folhetins mensais que Ramalho Ortigão publicava nos jornais e que desassossegava o país puritano com a sua mordaz crítica à sociedade da época e opinando sobre todos os temas possíveis e imaginários, desde a política à economia, da cultura aos costumes, da religião às artes e numa prosa de alto nível que mereceu então a opinião (neste caso suspeita) de um grande amigo e colaborador, Eça de Queiroz, para quem as "As Farpas" eram então "a obra mais viva da literatura portuguesa"! Mas Ramalho também era um cronista de viagens, como se pode comprovar pela leitura do primeiro volume da obra e foi numa das suas deambulações pelo país que, talvez a convite de outro amigo seu e parceiro de lides artísticas, Rafael Bordalo Pinheiro, se deixou encantar de tal modo pelos ares das Caldas que lhe dedicou o seguinte hino:
"Caldas da Rainha é o centro da mais histórica, da mais
pitoresca região de todo o país"
Mas Ramalho Ortigão também escreveu sobre a faiança das Caldas, sobre as águas termais e sobre os caldenses, e estes, gratos, trataram este portuense de nascimento como se de um honroso filho da terra se tratasse... Não admira agora que encontremos por aqui colégios e ruas com o seu nome, e quanto à estátua de Leopoldo de Almeida só lhe falta uma coisa, a meu ver, para honrar a ironia e a caricatura caldenses: no lugar da bengala em que o nosso herói se apoia deveria estar um florete como aquele com que andou à espadeirada com Antero de Quental num célebre duelo para lavagem da honra em plena questão coimbrã!
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
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