quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Nau dos Corvos


"Quando soube que estava doente convocou os amigos próximos para um jantar, informou-nos de que decidira não aceitar os tratamentos de quimioterapia prescritos pelos médicos sem convicção nem esperança, disse-nos que pretendia ser cremado, e pediu-nos que lançássemos as cinzas no mar do Cabo Carvoeiro, numa cerimónia íntima com a leitura do poema «Nau dos Corvos», do Ruy Belo, e demais algum que achássemos adequado ao momento."

in "Habeas Corpus",  Carlos Querido



"Nau dos Corvos" - J.C.Forgeronne


"Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
(...)

in "Nau dos Corvos", Ruy Belo

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