quinta-feira, 5 de dezembro de 2019




LIVROS 5 ESTRELAS -  XVII


OS VIVOS CADÁVERES E OS MORTOS VIVOS...


Mais uma vez fica provado que o tamanho não interessa por aí além, grandes calhamaços há que são enormes misérias enquanto que um pequeno livro consegue extravasar muito para além das suas cento e quarenta pequeninas páginas, como é o caso deste "HABEAS CORPUS", da autoria de Carlos Querido. Aliás, este é um verdadeiro livro-de-bolso, não só porque é pequenino por ser impresso num formato 13x17cm que permite levá-lo bem aconchegado na algibeira do casaco para qualquer lado mas também porque o seu conteúdo foi fragmentado em minúsculas histórias, mais concretamente micro-contos como se avisa no ante-rosto da obra... E cada micro-conto, de três ou quatro micro-páginas no máximo, tem o condão de apresentar um micro-cosmos superior a este nosso pequeno mundo e onde coexistem personagens que já morreram mas que ainda estão vivas e outras que ainda vivem mas que já morreram sem saber, muitas vezes culpa do amor... O título aponta para o corpo, que todos tenham direito ao seu corpo como se dizia em latim, mas a essência da narrativa vai muito para além do carnal e chega a tocar por vezes o religioso quando mistura este mundo de cá, físico e mensurável, e o além, misterioso... 




Talvez não seja por acaso que a obra seja constituída por 33 micro-contos, a idade de Cristo aquando da sua morte e símbolo da transcendência, e também não surpreende que o narrador desertor tenha enfrentado as suas dores a partir da página 33 de um romance inacabado, tal como muitas vidas... 

"Nasci no Ribatejo, interrompeu-o o narrador, num assomo de bravata. Gosto de pegar os toiros pelos cornos. Fale à vontade, doutor, sem eufemismos nem lamechices. Quero a verdade nua e crua, e ergueu o peito orgulhoso, com uma inspiração profunda, punhos nas ilhargas, como se enfrentasse uma ameaça bovina nas lezírias da infância. Inebriado com a sua própria ousadia, incentivou o médico. Desembuche, doutor, deite cá para fora tudo o que sabe, sem rodeios nem panos quentes." 

Uma leitura deliciosa, especialmente agora no Outono, estação propícia a pensamentos profundos sobre a existência, e que tem o condão de pôr o leitor a pensar sobre o seu corpo e as pequenas e importantes coisas da vida mas também sobre a sua alma e sobre a existência que ainda lhe resta... 


João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

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