quinta-feira, 23 de agosto de 2018



O BICHO-DA SEDA OU A BORBOLETA-ESCRAVA


Vamos perdendo amigos de infância pelo intrincado labirinto de caminhos que a vida tece e se alguns, poucos e com sorte, ainda encontrámos por vezes em cruzamentos de ocasião, outros, decerto a maioria, nunca mais lhes pomos a vista em cima e apenas vão sobrevivendo nas nossas memórias...
Do Samuel, três ou quatro anos mais velho e meu vizinho, rapaz esquivo e que só dava sinais de vida de vez em quando e do qual, frequentando eu a 4ª classe e ele já há muito liberto da escola para ajudar na faina das fazendas da família, recordo essencialmente três coisas: uma habilidade natural para o desenrascanço que culminou na resolução de várias avarias mecânicas da minha primeira bicicleta, um dom inato para construir os mais vertiginosos baloiços a partir de um pedaço de tábua grossa e de uma robusta corda enrodilhada em complicados nós dos quais só ele sabia o segredo, e, finalmente mas o mais importante, lembro-me da sua esquisita mania pelos BICHOS-DA-SEDA... 


As lagartas...

O Samuel tinha inúmeras caixas de sapatos forradas com folhas da amoreira que havia no quintal do avô e, depois de acertar o olho no lento reboliço que por lá acontecia, apercebia-me das pequenas lagartas às riscas que por lá se espraiavam...
   - "Mas qual é a piada disto?", interrogava-me.
  - Sabes que estas lagartas vão-se transformar em borboletas? - perguntava-me ele do fundo dos seus olhos cor de breu.
   - A sério? Não acredito! - disse eu, embora eu na altura acreditasse em tudo, o que eu queria era mais conversa....
O que é certo é que passadas umas semanas lá me chamou novamente o Samuel para ver a a próxima fase da transformação, já não havia lagartas mas sim casulos, estruturas formadas a partir de fios de seda......


Casulos...

 - Repara! - dizia ele - dali vai sair uma borboleta!
E eu condescendia com o movimento da cabeça mas não interiorizava lá muito bem o significado de todo aquele processo...
  - E depois ficamos com a seda! - rematava o Samuel como se fosse o corolário  de uma fantástica epopeia...
As borboletas dos bichos-da-seda, meus amigos, para quem não as conhece, são uma grande desilusão, feias, descoloridas, canhestras! São sem dúvida as borboletas mais feias de todo o universo e nada têm a ver com a exuberância de cor e actividade que as outras espécies exibem pelos nossos parques e jardins, muito menos ainda com a beleza de uma singela malhadinha nos bosques de Valmedo...


A borboleta do bicho-da-seda

Coitado deste bicho, domesticado desde há 5000 anos pelos Chineses para a produção intensiva de fios de seda, perdeu a capacidade de voar e ficou dependente do homem para sobreviver, limitando-se a produzir e a trabalhar, a trabalhar e a produzir, um escravo... Cada lagarta da Bombyx mori produz  durante a sua breve existência mais de um quilómetro de fio de seda e a industrialização levou à implementação de unidades de SERICICULTURA por todo o planeta...

Não sei o que o Samuel fazia com os fios de seda que lhe ficavam dos casulos, se os vendia para grandes empresas de têxteis ou não, o que sei é que me lembro dele sempre que falam de borboletas, e isso é bom...


João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)

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