EFEMÉRIDE # 50
O REALISMO DA REALIDADE IRREAL...
Há 147 anos, o dia 14 de Agosto de 1871 foi uma dia escaldante por Paris e arredores, em calor e em emoções... Todos os caminhos e atenções da classe política e dos artistas desembocavam em Versalhes onde se iria reunir o tribunal que ia julgar as acções e o destino de 19 réus, acusados de atentado à moral e à ordem pública da nação, destacando-se à larga de entre eles um homem já entradote e gasto, 52 anos de idade, gordo, cabelos já brancos e desalinhados, olhos febris e raiados de sangue, tez pálida e inchada reveladora da dependência do absinto e ainda, pormenor que escaparia à sala repleta mas que era a sua maior tortura, sofredor de hemorróidas... Quando este homem sobre o qual todos os olhares recaíam entra na sala e coloca a protectora almofada de couro no banco onde vai assentar o seu traseiro com um esgar de dor, um burburinho ecoa por Versalhes, todos gozam com o tormento desta criatura e se regozijam com o seu sofrimento, numa onda de raiva sem limite... Porquê tanto ódio concentrado neste homem que não roubou nem matou ninguém, mais perseguido e torturado que os piores criminosos da época?
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"Auto-retrato com cão negro" - 1842 |
A história começa quando GUSTAVE COURBET, então um belo jovem de vinte anos, magro, espirituoso e bon-vivant, com fama de amigo fiel e excelente amante, chega a Paris, não para estudar Direito como julgava o seu pai, mas para mergulhar a fundo na boémia vida dos artistas e nos círculos políticos de esquerda... O desenho e a pintura sempre haviam sido as suas maiores paixões e assim haveria de ser até ao fim, criando pelo caminho fama de artista revolucionário, provocador, indecente, arrogante, brutal, até perigoso para os poderes políticos e artísticos instalados... O próprio Courbet fazia apanágio de alimentar essa aura à volta da sua pessoa vindo a tornar-se numa verdadeira lenda de tudo o que era contra as convenções sociais da época, começando pelo brilhante golpe de 1855, quando, ao ver recusada a entrada de várias obras suas para o Salão da Exposição Universal, fruto da monolítica apreciação da Academia das Belas Artes, o rapaz não esteve de modas, decide organizar ele próprio, mesmo ao lado, uma exposição independente com 50 obras suas, expostas num barracão improvisado em plena rua e à qual chamou "REALISMO"... Não teve muito sucesso nas vendas mas marcou o rumo da história da pintura ao criar uma nova abordagem do mundo através de cenas do quotidiano, retratando o povo e a vida sem fabulações... Uma heresia! Aquilo que os seus inimigos chamavam de cenas vulgares e irrelevantes....
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Uma das obras que escandalizaram mas que levou o embaixador turco a encomendar a célebre "Origem do Mundo" |
A sua actividade política de esquerda haveria também de estar na origem da sua queda, pois enquanto membro da Comuna de Paris, em 1871, empossado no cargo de Presidente da Comissão de Museus, propôs, como muitos já tinham feito antes, a demolição da coluna da Praça Vendôme, um caro símbolo do exagero napoleónico... Não interessou para o assunto que, quando a coluna é de facto deitada abaixo, Courbet já não ocupe nenhum cargo político, tinha-se demitido de todos eles, o que interessava à elite reposta no poder era a vingança burguesa sobre alguém que tinha posto tudo em causa, havia que encontrar um bode expiatório! O artista foi condenado a 6 meses de prisão, cumpridos com denodo, mas o castigo iria muito mais além, os seus bens seriam todos confiscados, a sua imagem, honra e valor artístico lançados à lama putrefacta da inveja e da calúnia, e finalmente viu-se obrigado ao exílio na Suiça onde passaria os últimos tempos de vida a pintar castelos e paisagens bucólicas de lagos...
Mesmo assim, enquanto decorria o julgamento em Versalhes, alguém o homenageou de uma forma especial: o responsável pelo Palácio do Luxemburgo pendurou no muro do museu uma das grandes paisagens de Courbet, uma das 600 obras que nos deixou...
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"A origem do mundo" |
João Plástico
(Artista de Valmedo)
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