segunda-feira, 3 de julho de 2017



EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO  - VII


Mas enquanto a máquina debulhadora laborava desde o raiar ao pôr do sol e o calor abrasador obrigava à busca de sombra e sesta, havia actividades agrícolas às quais não se podia escapar e que iam preenchendo os dias e os hiatos entre brincadeiras e aventuras...  Uma dessas obrigações era a apanha do figo preto, uma imagem de marca da região torrejana e uma verdadeira tortura para mim na altura! Convém frisar que este Ribatejo em que nasci e cresci não tem bois, nem toiros nem cavalos, antes é feito sobretudo de figueirais, olivais e vinhas, aqui e ali pontilhados por ciprestes, carvalhos, amendoeiras, nogueiras, cerejeiras, laranjeiras, nespereiras, romanzeiras ou medronheiros... Claro que há éguas e mulas e burros, animais utilizados apenas nas fainas agrícolas, mas por ali não existe tradição cavalar e taurina, isso é outro Ribatejo, o do cavalo da Golegã, o do campino de Santarém ou o do toiro da lezíria a sul....


As odiadas figueiras
Uma coisa positiva era que a família tinha apenas duas pequenas fazendas compostas por uma vinhazita herdada do avô, meia centena de figueiras, outras tantas oliveiras e uma horta que era o tesouro da minha avó.... Regar a horta era engraçado, abriam-se os regos com a enxada de sachar entre os pés de feijão-verde e depois era só controlar o afluxo de água que inundava o terreno semeado de tomate, alface e pepinos... Havia, claro, que dar aos braços para alimentar a rega, balde a balde, das profundezas do poço... E esse trabalho, por vezes penoso, era pago com 25 tostões... A rega da horta era o trabalho mais fixe da época, feito pela frescura do final do dia e ainda por cima com a compensação financeira que tanto jeito dava para outros investimentos! Já o figo era uma seca, embora o figo seco, com uma amêndoa dentro, seja um petisco dos deuses!  A apanha do figo compunha-se de três fases: o empoleiranço nas ramadas da figueira e o derrube dos frutos já maduros com a ajuda do caimbo (um desafio interessante e varonil), a apanha dos figos debaixo da figueira (penoso) e a escolha dos figos já secos nos tabuleiros após dias de exposição solar na eira (menos mal!)...  O chato da questão é que isto se repetia durante semanas, os figos não amadurecem todos ao mesmo tempo e todas as semanas lá se tinha que repetir todo o processo, correr as mesmas figueiras vezes sem conta! Quando acabava a safra era um imenso alívio... embora houvesse a recompensa de 10 tostões ao balde de figos apanhados e que me valeu. assim de memória, a compra das minhas primeiras botas de futebol! E quando os figos secos eram pesados e colocados na camioneta que os iriam transportar para a destilaria, um sentimento de orgulho invadia-me, afinal tinha contribuído para manter uma tradição milenar e única....


Tabuleiros para a seca dos figos
E depois havia outra dimensão da actividade agrícola, outro encanto e muitas memórias que perduram até hoje! A agricultura, aprendi desde pequenino, é muito sacrifício e muito suor mas, no final, também é festa e partilha, comunhão de saberes e de prazeres! Os nossos vizinhos da frente, os Gaspar (a Ti Maria, simpática e lhana, amicíssima da minha avó e por arrastamento com uma especial simpatia por mim, e o Ti Manel, mais austero e de poucas falas, mas, sei-o hoje, homem de carácter e grande amigo), tinham algumas fazendas e uma padaria, a melhor da região por sinal e que bom que era passar apenas para o outro lado da rua e ir comprar o pão mais tradicional que se pode imaginar...




A nora dos Gaspar


Mas também tinham a melhor nora das redondezas, movida por duas éguas que me faziam lembrar as montaduras dos BONANZA e que, de tempos a tempos, eu admirava no seu mágico circular que abastecia o tanque que alimentava a horta... Aquilo era muito à frente, muitos anos-luz de distância da pequenina horta da minha avó que eu regava a trabalho braçal!


J.C

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