terça-feira, 29 de janeiro de 2019


ENCONTROS IMEDIATOS COM ESCRITORES - II


FRANZ KAFKA

Poucos escritores se podem identificar tanto com um lugar como Kafka e PRAGA, cidade onde nasceu, onde viveu toda a vida e onde morreu, numa relação tão intensa e estranha que saltava de um ápice da paixão ao ódio, da exaltação à depressão, tal qual as suas histórias sem enredo nem heróis que narram o absurdo da existência... Quem se perder pelo antigo bairro judeu de Praga, o Josefov, acabará fatalmente por encontrar o nosso herói numa pequena praça, e onde poderia ser senão ali, pertinho da casa onde morou, das sinagogas e do famoso cemitério, por entre ruelas intrincadas e vielas outrora escuras que serpenteavam desde a Praça da Cidade Velha e a celebérrima Ponte Carlos, na fronteira entre o que era o gueto opressor e a cidade livre dos sonhos, sob o signo da corrente libertadora do Moldava...

Franz Kafka - por Jaroslav Róna

KAFKA, que despudoradamente nem sequer se arvorou em herói defensor das causas judias, ele, judeu antes de tudo mas um apátrida e um desenraizado deste mundo, e depois uma mente atormentada, é certo, mas livre de qualquer apego a ideologias políticas ou sociais, tem a coragem de gritar a um mundo esquizofrénico: "O que é que tenho em comum com os judeus? Nem sequer tenho nada em comum comigo próprio."
Fantasista, bizarro, esquisito, de um ténue mas dilacerante humor, corajoso ao expôr as suas mais profundas misérias interiores ao ponto de se ridicularizar, Kafka abriu-se qual caixa de Pandora de tal forma que os seus conhecedores e amigos de então diziam que ele vivia por detrás de uma parede de vidro... 

E ali vem ele, às cavalitas de uma enorme e vazia personagem, uma estrutura sem cabeça nem mãos nem pés, apenas um fato suspenso, alegoria da dupla existência  do ser humano, entre o mundo material e o mundo espiritual, entre o ego e a essência;  tal qual a curiosa personagem que fez passear por Praga aos ombros de alguém no seu juvenil conto "Descrição de uma luta", alguém ao mesmo tempo frágil e inseguro quanto ufano e triunfal,  o nosso escritor, ainda desconhecedor de que muito tempo depois iria mudaria os paradigmas da escrita universal e dos significados, nem sequer repara em nós, o seu olhar sobrevoa-nos, desprendido do solo, fixo num horizonte longínquo ...
Hoje, kafkiano significa algo ilógico, estranho, absurdo, incompreensível, e, afinal de contas, quantos escritores se tornaram importantes ao ponto de se tornarem adjectivos? Pois é, kafkianamente, muito poucos...


João Pena Seca
(Escritor de Valmedo) 

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